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gerardo mello mourão


dois fragmentos

 

GERARDO MELLO MOURÃO é uma das figuras mais controversas da literatura brasileira atual. Considerado por alguns o maior poeta do Brasil, e por outros um reacionário intelectual, é desconhecido pela grande maioria dos leitores. Acusado de posições políticas controversas e de uma literatura por demais erudita, talvez tenham sido esses os motivos de seu quase anonimato entre as grandes celebridades literárias em destaque hoje. No entanto, sua escrita poderosa, uma das mais elevadas já produzidas em território nacional, é de valor inegável, reconhecida no exterior, e por poetas do porte de Michel Deguy e Pablo Neruda. Em 79 foi indicado ao prêmio Nobel pela Universidade de Nova York, com recomendações do Instituto de Estudos Latino-americanos de Stocolmo e em 99 foi premiado com o Jabuti pela Invenção do Mar. Seus livros mais conhecidos são o Valete de Espadas (1986), também publicado na França pela Gallimard, e a trilogia Os Peãs (1972-1977). Foi este último que levou Ezra Pound a comentar com entusiasmo: "em toda minha obra, o que tentei foi escrever a epopéia da América. Creio que não consegui. Quem o conseguiu foi o poeta de O país dos Mourões".

 

Neste número de aniversário da revista Confraria, dedicado aos seus quase 90 anos, procuramos trazer para o Phantascopia alguns fragmentos pontuais de sua obra: A Invenção do Mar e a primeira parte da trilogia Os peãs, O país dos mourões. Com este último, segundo Rodrigo Petrônio, "Gerardo deu à língua portuguesa uma prosódia e um tratamento do verso livre até então inexistentes entre nós; sua inflexão épica, cuja matéria foi toda colhida no imaginário nordestino e na história da formação do Brasil, traçada sem qualquer tipo de nacionalismo ou regionalismo reducionista, também é ímpar no nosso contexto".

 

Além destes fragmentos, publicamos também nesta edição uma nota introdutória de Alexei Bueno sobre a obra de Gerardo Mello Mourão,  o conto A ponte e o poema O Nome de Deus, manuscrito inédito, cedido pelo próprio autor à revista Confraria.

 

 

 

fragmento de O País dos Mourões

 

 

Naquele tempo
chiava o ferro no quarto dos bois
 

                  

 

e o gado do capitão mugia gordo
nas soltas dos Mourões
e as cabras eram assinadas na orelha e as éguas e os jumentos ferrados
e o ferro negro marcava o gibão dos vaqueiros, os bancos da alpendrada, a aroeira dos currais de tronqueira
e as camas de couro cru onde nascemos e a marca
dos Mourões marcava
homem alimária e coisa
naquele tempo:
cabo de osso do facão mateiro
coronha do rifle papo-amarelo lâmina
do terçado de três palmos
 

                   
 

e este
é o ferro de meu avô e Estevão
ferrou com ele a testa do cabra Amarante no Cabaret Iracema, sertão de Crateús e João Mello
ferrou a bochecha de um senhor de engenho no caminho de Águas Belas e Antônio
ferrou a banda da bunda do sírio David em plena feira de São Gonçalo dos Mourões
a outra banda fora ferrada por Alexandre num terreiro de engenho, Canabrava dos Mourões

                   

e este é o ferro
de Josué nas vacas de Água Verde
e com este

                   
 

desenho de meu avô tenho ferrado
o corpo da viola em que te canto
as cantigas que cantavam os machos à janela das fêmeas
no país dos Mourões
in illo tempore.
 


E caíram as chuvas e rompeu-se
o ferrolho das tempestades e os rochedos
rolaram no tempo e abriram-se
as sepulturas e

                    
 

a gravura de fogo permanece
na tampa do baú na tampa
do caixão dos mortos
além do tempo e o tempo
aquele tempo
marcado pelo ferro dos Mourões e o lombo
do touro em que viaja
teu alvo corpo de cintura fina
entre o peito e as romãs floresce
a possuída marca a negra flor

                    
 

à sombra do longo cílio à luz
dos olhos verdes.

Herdei o ferro em fogo — herdeiro
e do ferro e do fogo
fazenda, cabedal, moeda
gasto ferro e fogo na compra
das noites e dos dias e das fêmeas
na compra da lágrima e sorriso
e compro eu mesmo a minha própria dor
e lavro o mármore
do chão de viver e do chão de morrer
marcada a letra a fogo e ferro
 


                    
 

a mão de minha raça
sobre o lombo da pedra:

Vexilla Regis ao seu campo de prata
a flor de lys de ferro em brasa de ouro
na lapela no anel de brazão no quarto dos bois e dos cavalos na barriga do barril de aguardente de Benedito Torres, São Miguel dos Campos, no país de Alagoas,
no passaporte no casco do navio e em volta
da branca flor de teu umbigo
no rastro de meus pés por todos os caminhos

 

                    

 

Mourão.
 

 

 

fragmentos do canto primeiro de A Invenção do Mar

 

1

Ai flores do verde pinho
ai pinhos da verde rama
coroado das flores do verde pinho
eu não quero este mar - eu quero o outro:

quero o mar das parábolas e elipses
dos cones helicôneos dos abismos
o mar sem fim - o mar
com seus heliotrópios suas ninfas
seus cavalos-marinhos, seus tritões
e seus lobos do mar:

e tu, Pater Poseidon,
com teu tridente em teu palácio de águas.
E era uma vez Diônisos - poeta e rei
e um dia a flor do pinho será tábua
e um dia a tábua será sonho quando
o pinho de novo verde sobre as águas verdes
talhado a enxó
entre as espumas talhar as ondas: - então
o mar libidinoso irá lambendo
as ancas das caravelas redondas.

Ai flores
do verde pinho
ai ramos de Leiria
ai flor dos linhos do Alentejo.

E a flor das velas nesse baile
bailando ao vento cada vez mais longe
cada vez mais perto - Diônisos -
dos sonhos que sonhavam
os olhos de Isabel -
e um dia os pinhos serão galgos
e esses galgos do mar irão galgar
das pupilas do Infante
a latitude e a longitude das lonjuras
ao sal da lágrima - ao sal das águas.

E no chão das águas
ai flores do verde pinho
ai linhos do branco linho:
caminhos dançam sobre o chão do abismo
sobre o chão dançador da esmeralda revolta
a dança da saudade marinheira
cantada nas violas:
ai tábuas que foram verdes
tão tábuas para fragatas
tão tábuas para guitarras.

No mesmo pinho, Luís Vaz,
cantavam cantos do mar
das partidas não chegadas
dos amores desterrados
pelas várzeas do Alentejo
de Teresas e Marias.

E as moças de seios redondos
de Traz-os-Montes, das Beiras de Portugal
gemiam canções de amor:
ai flores do verde pinho
ai pinhos da verde flor:

na flor, na frôl e na fulô e seus aromas.


2


Boa noite, Isabel,
vagam verdes as duas luas de teus olhos
nesse verde luar ao lírio de teu rosto
e aos botões de rosa das rosas de teus seios
sobre os bosques e os mares de Diônisos.

E as redondilhas de seus versos cresçam
e o criador de verdes e de versos
nos cerque de jograis e de segréis.

Pelas várzeas a flor do trigo a flor
do linho a flor do decassílabo
de teu corpo ondulando entre os pinhais.

Entre a cintura e as ancas e o regaço
em teu passo de pássara inventavas
a graça nupcial das caravelas.

(...)
 


3

E era uma vez um mar e em seus
      pergaminhos de esmeralda
os reis e os pontífices lavraram
a escritura das ilhas, das antilhas
dos continentes com seus promontórios e seus vales
e as ribeiras de rios e outros mares
nos reinos de talvez
onde donde por onde para onde - Miguel -
não importa chegar - o que importa é partir.

E o vento e as ondas,
ventos alísios e ondas alísias
alisaram a esmeralda da caligrafia
e era lida nas águas à luz da estrela
e à luz das velas que tremiam
nas capelas de ouro dos pontífices
nos tetos dos reis
no chão de pedra onde se erguia
sobre a rosa-dos-ventos rupestre
o Infante com seu rosto rupestre -
                                          e ali

as espumas e o vento soletravam
o diálogo do Príncipe
com a lonjura do mar e a lonjura do céu.

E Gil e Dias e Vasco e Pedrálvares e Pero Lopes
e de seus bagos venho -
Gonçalo Velho, Diogo Cão e Antônio Cão
mais a matilha toda dos mastins do mar
iam riscando mapas, portulanos,
no mesmo pergaminho de esmeralda onde
                          jaziam
escrituras datadas e assinadas
ao escrivão de Deus Nosso Senhor.

E brotava a caligrafia dos palimpsestos
por onde
era o delírio de Cristóforo
tu, lobo do mar, tu, cordeiro do mar, tu
genovês de Portugal e português de Gênova
português de Castilha a navegar os olhos
de outra Isabel que te fez

nascer nalguma onda do mar - daquele
mar oceano de Diônisos e do Infante
no fim do mar sem fim.

E as sereias os golfins o peixe-galo - ariacó
o cavalo-marinho o lobo-marinho o leão-marinho
o peixe-espada o peixe-boi e o salmão e a garoupa e os meros
e o peixe-gato e os portugueses - naquele tempo
habitavam o mar dos mares e as sereias das águas.

E os que nascem no mar são portugueses
e o mar é o chão maior de Portugal.


8


E os cavaleiros do mar galopam as águas
no sertão do mar
e as mãos salgadas dos marinheiros
seguram dia e noite
                                 e aos quartos d'alva
a rédea das espumas
e navegam o espaço -
                                 para onde?
e navegam o tempo -
                                 para quando?
e navegam a espuma -
                                 para que?

(...)

Caçavam a aventura e não caçavam nada e caçavam tudo
no sertão do mar
e então o mar era sertão e o sertão era mar:
iam em busca apenas de uma rima e de uma oitava rima
a rima rúnica dos papiros e a rima rupestre que rimasse,
                      Infante,
com a rima de pedra de teu promontório.

Sonhava Henrique a rima de rimar o mundo

                      - e assim

nesse Patmos do Algarve descobrimos:
no princípio era a rima e a rima era diante do mundo
e o mundo era a rima e o poema estava na rima
                      e descobrimos as rimas e
escrivão e
cartógrafo sou de rimas no papel do Egito
no papiro augusto
no papel das ovelhas da serra.
 


9


(...)

Este é o catálogo das rimas
poucas para rimar as terras a que chegamos,
em todas fincadas no alto
dos Himalaias, das Ibiapabas, das Ibiturunas
as bandeiras das quinas e da Cruz
belas como as mãos das bordadeiras de Alcobaça que as bordaram
para Diônisos e Vasco e Dias e Pedrálvares e os outros
e para Manuel, por isto o Venturoso.


 


 

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