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gerardo mello mourão


a ponte

 

 


Naquele tempo, começaram a construir a ponte. No princípio, houve um grande entusiasmo, pois a ponte vinha sendo, há muitos anos, reclamada por diversos setores da opinião pública. Haviam mobilizado vastos recursos para sua promoção e constituíra-se uma Associação Nacional de Partidários da Ponte, composta por grande número de mulheres, que desfilavam pelas ruas da cidade, exibindo cartazes e cantando hinos. O sentimento da ponte dominou de tal forma a vida do país, que os partidos políticos começaram a ter suas fileiras desfalcadas pelo poderoso aliciamento de uma nova agremiação que se fundara: o PP ou o Partido da Ponte. Organizou-se um Instituto de Estudos da Ponte, e foram criadas diversas doutrinas filosóficas, estéticas e logísticas em torno da matéria.

Um dia, a Idéia tornou-se vitoriosa, e foi quando começaram a construir materialmente a ponte. O acontecimento alcançou aspectos de pompa histórica. Houve discursos, ordens-do-dia, banda de música, pedra fundamental e uivos de vitória e tripúdio contra as águas, sobre as quais a vontade de um povo faria passar a ponte, triunfante. Iniciada a obra, verificou-se a necessidade de mais dinheiro e mais operários. Como o Congresso teria que levar alguns dias para aprovar as novas verbas reclamadas, resolveram dissolvê-lo sumariamente como uma instituição obsoleta e lerda, e possivelmente sediciosa. Pois ninguém tinha dúvida de que era uma sedição deter a marcha da ponte. Aumentou-se, assim, por decreto, o número de capatazes e engenheiros. Custasse o que custasse, cada dia se fincavam novas estacas no fundo das águas, sobre cuja superfície avançavam, diariamente, alguns metros da ponte. Depois de longo tempo de trabalho, os engenheiros verificaram que a ponte já avançara tanto, que não viam mais a margem de onde haviam partido, perdida no horizonte. Mas, apesar disso, ainda não podiam ver também a margem para onde se destinavam. Com o correr dos meses e dos anos, a frente de trabalho se tomou tão remota da terra firme, que os operários eram levados à vanguarda da ponte em pequenas embarcações a vapor. Depois, construiu-se uma estrada-de-ferro ao longo da ponte. Com o crescimento da distância, o governo começou a instalar cidades-dormitório sob as arcadas da ponte, onde passaram a residir os trabalhadores. Morar embaixo da ponte era, assim, uma honra e um serviço à pátria.

Aos poucos, à medida que aumentava a necessidade da mão-de-obra, a população ia sendo transferida para os núcleos residenciais da ponte, transformada ao mesmo tempo numa cidade e numa batalha, cujos comandantes receberam das autoridades o título de “Pontífices”. Talvez por essa designação, a ponte, que fora a princípio uma idéia política, transformou-se também numa religião. Nas escolas e nas igrejas, o povo era implacavelmente mobilizado para dar à ponte o seu esforço exclusivo. Alguns cidadãos objetaram um dia que era preciso reduzir o número de trabalhadores da ponte para garantir a continuidade das colheitas e, pois, a subsistência do próprio pessoal da empresa sagrada. Foram queimados vivos, como perjuros e infiéis, em piras exemplares acesas no meio da ponte. E a construção continuou. Os viajantes que chegam à cidade não conseguem informações sobre o progresso da obra, porque não há ninguém que as forneça: a população inteira está trabalhando no front. Alguns correspondentes estrangeiros que conseguiram chegar até lá, não foram melhor sucedidos: os “Pontífices” proibiram aos trabalhadores de darem qualquer esclarecimento sobre a obra, pois seria um sacrilégio roubar ao trabalho, para gastar com palavras que nada constroem, um minuto de tempo. Além disso, aguardavam-se as previsões da inauguração, para anunciá-la como um impacto, na cidade e no mundo, dentro das modernas técnicas de comunicação, estudiosamente elaboradas pela Assessoria de Relações Públicas da Ponte.

Por tudo isso, na verdade, não se sabe muita coisa sobre a ponte. O que se sabe é que o último habitante a restar na cidade fora o encarregado de um posto de observação, instalado numa torre no alto da montanha. Com poderosos telescópios e outros instrumentos, estava incumbido de fixar distâncias e paralaxes no horizonte, para localizar, na outra margem, a segunda cabeceira da ponte.

Depois de observações e cálculos científicos, chegara a uma conclusão, logo transmitida ao Governo, que contrariava as teses e hipóteses do Instituto de Estudos da Ponte e de outras entidades. Os “Pontífices” enfurecidos o enforcaram no meio da ponte. Sua comunicação informava que a ponte estava condenada a ter um lado só. Não havia margem do outro lado. Não havia outro lado. Mas os “Pontífices” continuavam a construir a ponte sobre as águas infinitas.

 

 

GERARDO MELLO MOURÃO, homenageado nesta edição pelos seus quase 90 anos, é uma figura lendária na literatura brasileira atual. Amigo íntimo de Guignard, de Michel Deguy e de Pablo Neruda, foi quase prêmio Nobel em 79 e é um dos mais respeitados escritores brasileiros no exterior. Seus livros mais conhecidos são A Invenção do Mar, o Valete de Espadas e a trilogia Os Peãs. Este último levou Ezra Pound a comentar: "em toda minha obra, o que tentei foi escrever a epopéia da América. Creio que não consegui. Quem o conseguiu foi o poeta de O país dos Mourões". O conto acima faz parte de seu livro Piero della Francesca ou As Vizinhas chilenas.


Leia também nesta edição uma nota introdutória de Alexei Bueno sobre a obra de Gerardo Mello Mourão, assim como O Nome de Deus, manuscrito inédito, cedido pelo próprio autor à revista Confraria,  e, no Phantascopia, fragmentos de A Invenção do mar e de O País dos Mourões.
 

 


 

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