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luiza lobo
Heloísa Maranhão - do Rio (memorial)
A primeira coisa que me
intrigou em Heloísa Maranhão foi o sobrenome. Sempre me interessei pela
história dos sobrenomes, principalmente quando dizem respeito a lugares,
como França, Maranhão, Costa etc. Depois de tomar coragem, perguntei-lhe a
origem do seu nome e se era parente de meu grande amigo de longa data
Haroldo Maranhão, falecido em 2004. Eram primos. E a história da família é
interessante. O sobrenome de Heloísa e Haroldo derivou-se do Governador
Jerônimo de Albuquerque, que teve o nome Maranhão acrescido ao sobrenome
por concessão do Rei de Portugal, quando expulsou os franceses daquele
Estado, em 1614. Heloísa adveio do ramo Albuquerque, português de longa
cepa, poderoso e belicoso – digo, com armas de fogo. Já Haroldo adveio do
outro ramo, indígena, também de longa cepa, do poderoso Cacique Pena
Branca, que vivia em guerra com tudo e todos, portanto também belicoso –
só que com flechas e tacapes. Essas duas linhas se misturaram e resultaram
em personalidades completamente distintas, mas igualmente letradas.
Heloísa, enfant do Sion de Petrópolis, fluente em francês, refinada
professora de dramaturgia da Escola de Teatro, tradutora da rádio MEC e
membro do Pen Clube do Brasil. Haroldo, monolíngüe, advogado da Caixa,
colecionador de quadros, de livros, de histórias saídas das matas não do
Maranhão, mas de Belém, onde nasceu e onde exerceu o jornalismo no jornal
do pai e do avô. Ambos radicados no Rio. A própria Heloísa já escreveu
sobre a origem da família Albuquerque em diversas ocasiões.
Ao conhecê-la melhor, pude apreciar seu pioneirismo, trabalhando em
diversos empregos, sem se casar para não perder a autonomia de escritora,
morando com a irmã, como a Raquel de Queiroz depois de viúva. Teve uma
peça montada no Teatro Municipal, é verdade que devido ao prestígio
paterno. Mas qual a escritora brasileira que, até a metade do século XX,
não começou sua carreira pela mão do pai? Isso ocorreu com Dinah Silveira
de Queiroz, com Rachel de Queiroz, com Júlia Lopes de Almeida, e tantas
outras. As que não tinham pai a avalizá-las, tiveram vida difícil, na
forte sociedade patriarcal brasileira, como Gilca Machado...
Heloísa tem uma refinada cultura francesa, que passa pelo perfeito domínio
da língua, inclusive a capacidade de tradução, o profundo conhecimento do
teatro universal e da literatura francesa e européia em prosa de ficção e
poesia. Todos os requisitos para uma cultura humanística foram reunidos em
seus romances em que maneja a alternância entre o real e o imaginário, com
grande ênfase no imaginário teatralizado. Desde seu primeiro livro de
poemas, Castelo interior e moradas (1974), baseado no livro de Santa
Teresa d´Ávila, reviveu a poesia barroca espanhola, identificando-se e
integrando-se a sua vida. Nos demais romances, como Lucrécia (1979), Dona
Leonor Teles (1985) e A rainha de Navarra (1986), os jogos cervantinos e
shakespeareanos entre ilusão e realidade são explorados ao máximo, numa
linguagem ousada para seu tempo e seu sexo. Produz textos habitados por
monstros perversos, com desejos impublicáveis, mas publicados por ela,
obsessivos sexuais e mulheres impudicas, sejam rainhas ou plebéias, que
compõem um transbordante quadro barroco digno de Rubens.
Tudo isso me deixou um pouco perplexa ao conhecer Heloísa Maranhão. Como
pôde se gerar, no tradicional colégio Sion – ainda por cima no
fechadíssimo internato de Petrópolis – dirigido por freiras rigorosas, uma
mente essencialmente liberta de todas as amarras da sociedade repressiva e
patriarcal? Este mistério, só a própria Heloísa poderá desvendar. Da minha
parte atribuo esta capacidade da menina educada em francês, para casar-se,
que se transformou em tradutora, professora, viajante sofisticada e autora
de obras fesceninas, ao que Wolfgang Iser denomina os vazios do texto.
Heloísa sem dúvida fala das fantasias que permeiam as mentes de reis e
rainhas, de loucos e possessos, de devassos do passado e na memória do
presente, mas muito mais é deixado à mente e à conclusão de cada um do que
ela realmente expressa.
Explicou-me ela, a respeito do jogo oscilatório entre real e fantasia,
presente no romance Rosa Maria Egipcíaca de Vera Cruz (1997), que, para
escrevê-lo, primeiro pesquisou em detalhe a vida da escrava Rosa Maria
Egipcíaca, freira e prostituta em Minas, que ia ser queimada pela
Inquisição em Portugal, se não tivesse morrido antes, assim como a de
Chica da Silva, a escrava amante de um rico contratador português João
Fernandes de Oliveira, de Diamantina. Na sua obra, Chica da Silva
tornou-se um misto de escrava fugida, vinda do Nordeste em companhia de um
padre, e uma cortesã portuguesa com laivos de freira visionária.
Talvez no cordel se esconda parte do mistério da escrita de Heloísa. Sua
técnica deve muito aos cordelistas do sertão. Guarda com eles a completa
liberdade imaginativa e o desinteresse pela factualidade histórica. Mais
do que a verdade, interessa-lhe a metaficcionalidade historiográfica, ou a
história das mentalidades. A grande influência da sua juventude, recebeu-a
de Câmara Cascudo, o grande folclorista nordestino, por quem sempre nutriu
grande apreço. Como Clarice Lispector, em A hora da estrela, e Lygia
Fagundes Telles, em Pomba enamorada ou uma história de amor (1999),
Heloísa também criou, neste romance, sua personagem sonhadora e pobre,
oriunda das páginas de cavalaria dos cordéis nordestinos, uma escrava
mística e bem-sucedida, muito diferente do retrato realista pintado por
Agripa Vasconcelos na biografia romanceada de Chica da Silva.
Como nos revelam Propp e Bakhtin, a riqueza da literatura erudita tem suas
raízes na oralidade do povo, como ocorre com a sátira menipéia e o riso de
Rabelais. É o riso brasileiro, o deboche e a insurreição que fornecem a
seiva da literatura de origem européia desta grande erudita. Esta seiva é
infinitamente transformada, até chegar à forma literária. Mas o cerne, o
coração da história, está lá, no fundo da emoção. Obrigada, Heloísa, por
sua coragem em reescrever, a partir de sua infância, as histórias de fadas
e de castelos, de gnomos e anões, de loucas no hospício de Botafogo e das
pistas de Carnaval, ou rainhas encerradas atrás de grades de castelos e
freiras encerradas em mosteiros, todo um mundo de reinos renascentistas
europeus revividos no imaginário brasileiro das histórias de cordel
transformadas em livros de ficção.
Abril 2005.
leia também neste número um
conto inédito de Heloísa Maranhão e, no
Phantascopia, a
Morada Segunda de seu poema Castelo
Interior e Moradas
LUIZA LOBO é
professora, escritora, tradutora e intensa divulgadora da literatura
brasileira. Além de pessoa bacana é autora de uma vasta lista de
publicação de textos literários e acadêmicos. Traduziu Robert Burns,
publicou estudos pioneiros sobre Sousândrade, escreveu Sexameron.
Atualmente mora na Dinamarca, palestrando sobre sua obra e literatura
brasileira em geral.
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