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ronaldes de melo e souza
o magistério erótico de A estória de Lélio e
Lina
Miguilim e Rosalina se
associam como contadores de estórias que transfiguram o sentido da
existência. Por isso mesmo, Campo Geral e A estória de Lélio e
Lina são narrativas interligadas pela parábase denominada Uma
estória de amor, que se representa como súmula mitopoética do poder e
da origem das estórias. Ao amor à vida em si mesma, que se poematiza no
estilo do canto e da saga dos festejos de Manuelzão, especialmente no
Romanço do Boi Bonito, corresponde o romance de amor de Lélio e Lina, que
se caracteriza pela urdidura mítica de motivos maravilhosos, e não pela
motivação realista da trama de efabulação. O mito da mulher encantadora de
palavras configura o entrecho fabuloso da união amorosa do jovem e da
velha que ostenta o portentoso poder de se revelar como anciã e menina.
Rosalina traz no próprio nome o símbolo da natureza ritmada no ciclo
perpétuo do envelhecimento e do rejuvenescimento. Desflor e flor ao mesmo
tempo, Rosalina simboliza o eterno feminino no mundo rosiano do sertão.
Ela se inclui no elenco das protagonistas do drama ritual da celebração da
força formativa e metamórfica da natureza eternamente viva.
A estória de Lélio e Lina constitui o testemunho eloqüente de que
Guimarães Rosa elabora cada uma de suas sagas sertanejas como forma
revitalizada pela interpenetração dinâmica de dramas rituais, contos de
fadas e lendas populares. O erotismo romanesco de Lélio e Lina se reporta
ao substrato mitológico das divindades que congregam os extremos
contrapolares da vida e da morte. Deméter e Perséfone são aspectos
complementares de uma mesma potência divina, que morre e se metamorfoseia
em uma nova vida. O ritual de ressurreição dos antigos mitos celebrados
nas religiões de mistérios subage na trama simbólica das estórias de
fadas. Nos contos maravilhosos, as sucessivas metamorfoses dos personagens
representam a essencial heterogeneidade do ser humano. O drama iniciático
da conversão da carência em plenitude vital nada tem a ver com o jogo
livre da imaginação, porque se fundamenta na alteridade radical, que
singulariza os entes que somos. Os motivos rituais das estórias feéricas,
depreendidos por vários especialistas e sintetizados por Mircea Eliade no
ensaio intitulado Os mitos e os contos de fadas, apresentam-se
redivivos nas sagas rosianas do sertão.
A estrutura ritualística da estória de Lélio e Lina se traduz na iniciação
de Lélio nos mistérios do amor, que lhe são revelados por Rosalina, a
mulher revestida do duplo desempenho mítico da mãe Deméter e da filha
Perséfone. A velha Rosalina e a jovem Lina não se contradizem, porque
simbolizam o eterno feminino. A força da natureza, que se manifesta na
mediação eterna da formação e da nadificação, congrega em si mesma os
extremos contrapolares da vida e da morte. Antes de encontrar Rosalina,
que o inicia no ritual erótico, que lhe transfigura a existência, o
vaqueiro Lélio sofre o impacto dúbio do amor. Em viagem pelos caminhos
sertanejos, apaixona-se à primeira vista pela Mocinha de Paracatú, que se
lhe afigura quase uma menina “pequenina, brancaflôr, desajeitadinha,
garbosinha, escorregosa de se ver”. O extraordinário fulgor dos olhos da
Sinhá-Linda suscita a paixão repentina do vaqueiro, que se reconhece
compelido a “imaginar em anjos e nas coisas que os anjos só é que estão
vendo”. O amor incorrespondido pela Mocinha de Paracatú converte a
existência de Lélio na experiência dolorosa de “uma saudade sem razão”.
Sob o acicate da paixão que o domina, Lélio chega à fazenda do Pinhém,
onde se emprega como vaqueiro. À noite, não consegue conciliar o sono e se
entrega ao devaneio que o transporta para o lugar do encontro com a
Sinhá-Linda. Na excursão anímica, que o põe diante da Mocinha de Paracatú,
sente-se como se “precisasse de repente de ser no pino de bonito, de
forçoso, de rico, grande demais em vantagens, mais do que um homem, da
ponta do bico da bota até o tope do chapéu”. Na condição de vítima de um
amor irrealizável, vislumbra, “na vivice do rosto daquela Mocinha, nos
movimentos espertos de seu corpo”, o resumo de “uma lembrança sem
paragens”. Fulminado pelo olhar de Sinhá-Linda, começa a sofrer a sua
lembrança como fogo que arde e queima, como se “em alma, uma tatarana
lagarteasse”. O terrível sofrimento amoroso perdura até o dia em que
avista a figura feminina “diversa de todas as outras pessoas”, que o seduz
pela magia da “voz diferente de mil, salteando com uma força de sossego”,
e pelo poder metamórfico, que se irradia de seu corpo. Na visão embevecida
do vaqueiro, a mulher se revela como mocinha subitamente metamorfoseada em
velhinha. O ritmo de transe da jovem Lina na anciã Rosalina atua como
signo e pressentimento da transmutação existencial de Lélio.
Na utilização ficcional do dispositivo artístico da interação com o
refletor, o narrador sublinha o estatuto mitopoético da mulher que difere
de todas as pessoas. Na percepção de Lélio, Lina parece “Velhinha
como-uma-flôr”. Os índices que se lhe aplicam sugerem magia pessoal,
atestada no calor íntimo da voz, no “acêso rideiro dos olhos”, no riso
festivo e no olhar reto, e não furtivo, como o da Mocinha de Paracatú. Ao
contrário da Sinhá-Linda, que provoca o sentimento nostálgico, Rosalina
inspira quietação e felicidade, o que induz o vaqueiro a chamá-la de
santa. A resposta de Lina, no entanto, desestimula qualquer idéia
teológica de santidade: “Meu Mocinho: nunca fui soberba... E acho que nem
não fui tola. (...) Não fui maninha: tive um filho”. A insinuação de que
virgem equacionada com santa redunda em tolice prefigura o magistério
erótico de Lina, que preconiza a conjunção amorosa do corpo e do espírito
em oposição ao ditame puritano do dualismo psicofísico. No tom brejeiro
que a singulariza, a velhinha de cabelos brancos declara que gosta de
Lélio e reconhece que seria bom se o Mocinho a tivesse conhecido há uns
quarenta anos, pois teriam dançado uma quadrilha e ele a chamaria de Zália.
Insinuante, acrescenta que não se lamenta do tempo transcorrido, porque o
“coração não envelhece”.
No primeiro encontro com Rosalina, o vaqueiro Lélio aprende que amor
abstraído do corpo significa saudade sem razão. Sob o impacto das palavras
da mulher que “tinha vida ensinada”, ele se dirige para a casa das
prostitutas, lembrando-se de que Lina havia estranhado que ele não tivesse
procurado os corpos aprazíveis das Tias. Enquanto encalça os passos para
satisfazer o desejo sexual, o vaqueiro sente repentino “bem estar, de
espírito e de corpo”, que o faz recordar o instante em que, na tentativa
confusa de explicar a sua estória, que já não sabe se de amor ou bobagem,
Rosalina lhe responde que se engana com ilusões amorosas do páramo empíreo,
pois ele “tem coração lavradio e pastoso”. Desde então, Lélio sempre
retorna à casa da Velhinha em busca do cuidado e carinho com que recebe
lições “em belas palavras que formavam o pensar por caminhos novos, e que
voltavam à lembrança nas horas em que a gente precisava”. Encantado, ouve
a suave voz, que “sabia esperanças e sossego”, admira o rosto viçoso e
risonho da Velhinha e percebe que de seus olhos mágicos se desprende o
poder capaz de lhe curar a “banzeira da vida”.
A magia da fala de Rosalina se manifesta na força mitopoética de animar os
entes que nomeia. Ao se referir à moita de bambu, o “bambual se encantava,
parecia alheio uma pessôa”, como se “ela estivesse ensinando outro poder
inteiro de se viver”. O efeito mágico do dizer e do afazer poético de Lina
resulta do magnífico dom apotropaico, em que o encantamento verbal se
intimiza com o saber acerca da seiva das coisas naturais. A Velhinha
exorciza o distúrbio amoroso de Lélio com palavras encantadas e, quando o
vaqueiro se torna doente do fígado, ela o cura com o auxílio de ervas e
flores de sua hortaliça. No duplo desempenho mítico de encantadora de
palavras e senhora de plantas curativas, Rosalina se reveste da função
hierática da protagonista intimizada com a potência regeneradora da
natureza verdejante: “Ali, dona Rosalina ainda parecia mais fazeja e mais
senhora, dona de ervas e flores, sabedoria do mundo seu”. A correlação de
logoterapia e fisioterapia, que singulariza a atuação de Rosalina como
curadora, constitui mais um traço que a irmana com o eterno feminino, que,
desde os mais remotos tempos, detém o privilégio da ciência terapêutica. A
cura pela magia das palavras e plantas, analisada e interpretada por Pedro
Lain Entralgo no contexto da cultura grega, em que sobressai o maravilhoso
mito de Calipso, persiste na saga rosiana de Rosalina.
Logo que Lélio se restabelece, Lina o inicia nos mistérios do amor. A
lição fundamental do magistério erótico da mistagoga do sertão começa com
a advertência de que o vaqueiro necessita esquecer-se da “Mocinha de
fantasma” se não quiser tornar-se prisioneiro do madrastio que o
atormenta. De nada vale a saudade sem razão, pois a amada de seus sonhos
“nem saúde verdadeira de mulher ela não demonstra ter”. O ensinamento
amoroso prossegue com a revelação de que a experiência genuinamente
erótica supõe a hierofanização do sensível: “Escuta: mulher que não é
fêmea nos fogos do corpo, essa é que não floresce de alma nos olhos, e é
seca no coração...”. A dicção sentenciosa de Lina, em que se revela a
verdade original de que o corpo erotizado constitui o suporte da epifania
anímica, termina com o ditame categórico de que deve o Mocinho apagar de
sua memória a “tetéia coitadinha”, porque “ela nunca vai saber o que a
vida é”. A originalidade do magistério de Rosalina se evidencia quando se
verifica que o dualismo psicofísico preside à gênese e ao desenvolvimento
da civilização ocidental. O puritanismo religioso das seitas
órfico-pitagóricas, o platonismo e as doutrinas judaico-cristãs
promoveram, no decurso histórico da cultura do Ocidente, o litígio
perpetuado na oposição antagônica da matéria e do espírito, do corpo
sensível e da alma inteligível.
À saudade sem razão, que faz Lélio errar na lembrança sem paragens,
Rosalina contrapõe o sentimento festivo da vida: “Festa, meu Mocinho, é o
contrário da saudade...”. Com o deliberado propósito de dar continuidade à
iniciação de Lélio nos mistérios do amor, Rosalina decide realizar uma
festa. O cantador Pernambo, que “sabe tudo quanto é moda e cantiga, os
estilos todos”, põe em versos os predicados incomparáveis da festeira
Rosalina, que se apresenta para animar “o engenho da festa” como “uma das
pessôas mais influídas e alegradas”, vestida de preto lustroso em nítido
contraste com os seus belos cabelos tão branquinhos, que alumiavam. Ao
dançar a mazurca com Rosalina, Lélio sente “uma ausência de si, feito
fosse aquela dança uma arte de religião”. Na representação da dança como
folguedo religioso, o narrador sintoniza emocionalmente com a maravilhosa
visão em que Lélio surpreende o rejuvenescimento da Velhinha dançarina,
que se metamorfoseia em criança:
“Al a Velhinha se asia tão delicada, senhora de serenim, em giro baile,
leve espécie de criança, que sabia ser e sorrir e olhar, sem estorvo
nenhum.”
Ao estatuto arcaico das metamorfoses celebradas nos contos maravilhosos,
que remontam ao substrato mítico das religiões de mistérios, corresponde o
antigo pronome popular Al, que significa “outra coisa”. A Velhinha se
torna outra, transforma-se em criança. O arcaísmo do termo pronominal se
compreende no contexto geral da mundividência mitopoética de Guimarães
Rosa. No vasto âmbito da literatura ocidental, a saga rosiana
singulariza-se pela invenção do mito do sertão. A representação do
ordenamento mítico do mundo sertanejo se realiza através de uma
perspectiva narrativa em permanente diálogo intertextual e interdiscursivo
com as mais diversas manifestações culturais. “A estória de Lélio e Lina”,
por notável exemplo, reencena o sentido religioso do canto, da dança e da
festa, que pertence à tradição cultural dos povos primevos, que nada têm
de primitivos. Rosalina celebra a festa como ato de culto. Na ação
jubilosa da dança de Lélio e Lina, a experiência religiosa suplanta a
atividade meramente lúdica dos dançarinos. De acordo com as festas
sagradas e ritualmente celebradas, que transmutam a clausura da realidade
puramente humana na abertura teofânica da possibilidade do encontro com
potência divinas, que cantam e dançam com os homens nas cerimônias
religiosas, a dança festiva de Rosalina assume a função hierática da
conversão existencial do vaqueiro Lélio.
Na condição de aprendiz do amor de corpo e alma, Lélio se dá conta de que
Rosalina “semelhava pertencer a outra raça de gente” e reconhece que as
suas palavras abriam “uma claridade em seu espírito”. Numa das lições do
magistério erótico, a Velhinha ensina ao jovem discípulo que Jesus Cristo,
o deus encarnado por excelência, santificou Maria Madalena, “que tinha
sido dos bons gostos”, mas não fez Santa nenhuma virgem “moça-de-família,
nem uma marteira senhora-de-casa, farta-virtude”. O poder de abrir as
portas da percepção e descerrar o amplo horizonte da transfiguração
existencial de Lélio se manifesta particularmente nas estórias de Rosalina,
“que eram tão verdadeiras que fugiam do retrato do viver comum”. O ritual
amoroso de Lélio e Lina se representa no simbolismo metamórfico da
Velhinha transformada em Menina, no magistério erótico da alma epifanizada
pelo calor do corpo, nas palavras encantadas, nas estórias contadas, no
canto, na festa, enfim, dos dançarinos de mazurca, que formam o corpo de
baile, na acepção genuinamente rosiana da mobilidade pura do sentimento
festivo da vida.
Os problemas amorosos de Lélio funcionam como contraponto dramático do
magistério erótico de Rosalina. Inexperiente na arte de amar, ele sofre
três amores, que o deixam desnorteado. No primeiro, com a Mocinha
idealizada de Paracatú, que mais parece uma valquíria assexuada, contrai a
enfermiça saudade sem razão, que o faz errar nas lembranças sem paragens.
No segundo, com Mariinha, ingenuamente vivencia o amor como tocar de sinos
e anúncio de casamento. No lãodalalão do devaneio amoroso, que o faz ouvir
o badaladal do sino, confunde solicitude com amor, e não consegue perceber
a paixão de Mariinha pelo seo Senclér. Ao desabafar com a confidente
Rosalina, Lélio recrimina a falta de juízo de Mariinha, que se deixa
apaixonar pelo patrão. A Velhinha minimiza suavemente a recriminação do
Mocinho desolado com o argumento de que amor e juízo não se
compatibilizam. O erro de Lélio não decorre apenas da idealização
angelical da mulher amada, mas também da inversão dialética, que o induz
ao desfrute sexual da mulatinha cor de violeta e olhos verdes, chamada
Jiní. A errância amorosa resulta da separação do corpo e do espírito, que
tanto se manifesta no espírito sem corpo da Mocinha de Paracatú, quanto no
corpo sem espírito da Jiní.
A iniciação de Lélio nos mistérios revelados por Lina somente se consuma
quando o aprendiz de amor reconhece a indissolúvel união da matéria
sensível e da alma inteligível, que se concretiza na encarnação do corpo
espiritual e do espírito corporal. O ritual erótico, que subage na trama
simbólica da estória de Lélio e Lina, consiste na celebração festiva do
vínculo nupcial do homem com a força formativa da natureza. No desempenho
mítico da função de mãe primordial, que simboliza o eterno feminino,
Rosalina inicia o vaqueiro Lélio na misteriosa intimidade da matéria ávida
de vida, que constitui o suporte materno, a matriz de todos os viventes.
No exercício sacerdotal do magistério amoroso, Rosalina celebra o eros
cosmogônico, que inclui e transcende o amor puramente humano, porque se
fundamenta no princípio primevo da nascitividade em geral. A união amorosa
de Lélio e Lina, que se representa como casamento sagrado no final feliz
da estória, constitui um hino de louvor ao divino zoogônico, que preside à
origem primeira e ao fim último de tudo que existe:
“Ele a ela: – “É nada?” E ela a ele: – “É tudo. E vamos por aí, com chuva
e sol, Meu-Mocinho, como se deve...” O Formôs corria adiante, latindo sua
alegria. – “...Chapada e chapada, depois você ganha o chapadão, e vê
largo...” Lélio governava os horizontes. – “... Mãe Lina...” “– Lina?!” –
ela respondeu, toda ela sorria. Iam os Gerais – os campos altos. E se
olharam, era como se estivessem se abraçando.”
RONALDES DE MELO E SOUZA é
Doutor em Teoria Literária pela UFRJ, onde dá aulas de literatura
brasileira. Em sua linha de pesquisa busca, entre outras coisas, elaborar
uma teoria hermenêutica da narrativa e uma nova poética do romance para se
compreender a revolução estrutural do romance regido pelo perspectivismo
narrativo. Tem publicados diversos livros e artigos, dentre os quais O
narrador e o refletor em "Os Sertões" (2003), As máscaras de
Gregório de Mattos (2000) e O estilo narrativo de Machado de Assis
(1998). Recebeu, em 1978, o Prêmio Nacional de Crítica Literária, da
Fundação Cultural do Distrito Federal, e, recentemente, em 2002, o prêmio
do Concurso Euclides da Cunha, da Casa de Cultura Euclides da Cunha.
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