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diário de guerra
A beleza do caos, qual
é? Estou falando da dissolução, da desintegração progressiva do indivíduo
na mesa de bar, na pista de boate. O que comemoramos então? O fato de
estarmos vivos? O rompimento da medida cotidiana? O esquecimento de nós
mesmos? A rotina da autodestruição? Há beleza nisso, realmente, ou sequer
é essa a questão?
Kill Them’All! Fast
Fast Pussy Cat!
***
Tudo parece estar
pronto.
***
***
Escolham, amigos.
Mulher – O apartamento
ficava no Centro da cidade, em um prédio antigo entre outros prédios
antigos, cortiços apinhados de velhos e cães nas janelas, cemitérios
verticais que só se diferenciavam dos verdadeiros cemitérios por causa da
sujeira – os verdadeiros cemitérios costumam ser limpos. Nas paredes
daquela cobertura, quadros com algum valor e outros sem nenhum, pintados
por seus dois filhos. Uma garrafa de uísque nacional, a capa de um disco
de vinil estampando sua foto jovem ainda, lembrança dos tempos de glória.
Despejou dois gramas de cocaína sobre a mesa de vidro, bebe o quê? Tem
água? Na geladeira. Frases coladas por imãs, uma foto da ex-mulher ao lado
de um cartão postal torto. Abri e fiquei ali, de pé, respirando o ar frio
do refrigerador, sentindo o gelo acordar meu corpo de dentro pra fora,
minha cabeça, meu coração. Na volta, o pó intocado e o copo de uísque
vazio, ele cochilando no sofá, a barriga imensa vazando da camisa aberta.
Seu Miles Davis favorito ecoava pela sala. Esperei que a música acabasse
antes de continuar. Em silêncio, tirei o bisturi da minha bolsa, caminhei
até ele, me ajoelhei como se rezasse e fiz um círculo em volta do seu
umbigo, a lâmina cirúrgica deslizando fácil, lacerando com delicadeza a
carne, como faca de pão na manteiga, patins no gelo, uma dança. O sangue
demorou pra brotar, o tempo de uma respiração. Aí escorreu pele abaixo,
desenfreado, grudando nos pêlos, rio de água lamacenta abrindo caminho.
Acorda. Acorda, querido. Seus olhos se abriram, eu já de pé, como se
velasse por ele, protegendo de todo mal, abriu os olhos, no rosto a
mansidão de quem bebe habitualmente, abriu os olhos mansos, me viu. E
então veio, do fundo de sua alma, que ficava na sola dos seus pés, veio
subindo a custo dali do fundo pelas veias entupidas de suas pernas,
devagar, atravessando lentamente o entulho de sua massa até brotar em seu
rosto como um movimento sísmico – um sorriso. O sangue brotando quente de
sua barriga aberta, encharcando sua calça, e ele sorrindo como quem
passeia ao Sol do jardim depois da doença. Eu te amo, me ouvi dizer,
sorrindo de volta com tanto carinho, eu te amo. E minhas lágrimas e seu
sangue escorreram juntos, nos derramando a nós dois no carpete sujo.
Roberto Alvim é dramaturgo, diretor, ator e professor de História do Teatro na CAL (Casa das Artes de Laranjeiras). Autor de 11 peças, seus últimos trabalhos no Rio foram: PELECARNESANGUEOSSOS, Todas as Paisagens Possíveis, Qualquer Espécie de Salvação, Às Vezes É Preciso Usar um Punhal para Atravessar o Caminho, Vagina Dentata e Mundo Pânico. Atualmente exerce a função de Diretor Artístico do Teatro Ziembinski.
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