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roberto alvim


diário de guerra
 

 

 

A beleza do caos, qual é? Estou falando da dissolução, da desintegração progressiva do indivíduo na mesa de bar, na pista de boate. O que comemoramos então? O fato de estarmos vivos? O rompimento da medida cotidiana? O esquecimento de nós mesmos? A rotina da autodestruição? Há beleza nisso, realmente, ou sequer é essa a questão?
 


***
 

Kill Them’All! Fast Fast Pussy Cat!
 


***

 


A partir de tablóides esquecidos num banco de metrô: por que se importar com jornais, se merda é tudo o que eles oferecem? Agnew estava certo. A imprensa é, de modo geral, um bando de viados cruéis. Jornalismo (quase sempre...) não é uma profissão ou um comércio. É uma saída barata para fodidos e desajustados, uma entrada falsa para o outro lado da vida, um buraco imundo, fundo só o suficiente para um tarado se agachar e se masturbar como um chipanzé no zoológico.

 

***


É que de vez em quando você se encontra num desses dias em que tudo é em vão... Um doidão do começo ao fim; e se você sabe o que é bom fazer nessa hora, você se encosta num canto seguro e observa. Talvez pense um pouco. Recosta-se numa espreguiçadeira, bem longe do tráfego, e abre inteligentemente umas 5 ou 8 latas de cerveja... Fuma um maço de Marlboro, come um sanduíche de presunto e finalmente no finalzinho da tarde engole um comprimido de mescalina... E depois dirige até a praia. Sai no meio do vento gelado e anda até o mar.
 


***


Ouvi de novo a merda do barulho – um sussurro? Levantei sem acender a luz. Na quase escuridão do corredor, vi que ela caminhava devagar na minha direção. Não dissemos nada até que chegasse bem perto; aí pude ver o bisturi em sua mão e o sangue em seu rosto.
 


***
 

Tudo parece estar pronto.
Você está pronto?
Está?
 

***
 


O suicídio é um caminho pra morte.
O assassinato é um caminho pra vida.
O suicídio é sobre nós.
O assassinato é sobre o outro.
O suicídio é pra dentro.
O assassinato é pra fora.
O suicídio é autocomiseração.
O assassinato é compaixão.
 

***
 

Escolham, amigos.
E comprometam-se.
O resto é bobagem.
Amem-se uns aos outros e não voltem a pecar.
Eu tenho que ir agora.



***
 

Mulher – O apartamento ficava no Centro da cidade, em um prédio antigo entre outros prédios antigos, cortiços apinhados de velhos e cães nas janelas, cemitérios verticais que só se diferenciavam dos verdadeiros cemitérios por causa da sujeira – os verdadeiros cemitérios costumam ser limpos. Nas paredes daquela cobertura, quadros com algum valor e outros sem nenhum, pintados por seus dois filhos. Uma garrafa de uísque nacional, a capa de um disco de vinil estampando sua foto jovem ainda, lembrança dos tempos de glória. Despejou dois gramas de cocaína sobre a mesa de vidro, bebe o quê? Tem água? Na geladeira. Frases coladas por imãs, uma foto da ex-mulher ao lado de um cartão postal torto. Abri e fiquei ali, de pé, respirando o ar frio do refrigerador, sentindo o gelo acordar meu corpo de dentro pra fora, minha cabeça, meu coração. Na volta, o pó intocado e o copo de uísque vazio, ele cochilando no sofá, a barriga imensa vazando da camisa aberta. Seu Miles Davis favorito ecoava pela sala. Esperei que a música acabasse antes de continuar. Em silêncio, tirei o bisturi da minha bolsa, caminhei até ele, me ajoelhei como se rezasse e fiz um círculo em volta do seu umbigo, a lâmina cirúrgica deslizando fácil, lacerando com delicadeza a carne, como faca de pão na manteiga, patins no gelo, uma dança. O sangue demorou pra brotar, o tempo de uma respiração. Aí escorreu pele abaixo, desenfreado, grudando nos pêlos, rio de água lamacenta abrindo caminho. Acorda. Acorda, querido. Seus olhos se abriram, eu já de pé, como se velasse por ele, protegendo de todo mal, abriu os olhos, no rosto a mansidão de quem bebe habitualmente, abriu os olhos mansos, me viu. E então veio, do fundo de sua alma, que ficava na sola dos seus pés, veio subindo a custo dali do fundo pelas veias entupidas de suas pernas, devagar, atravessando lentamente o entulho de sua massa até brotar em seu rosto como um movimento sísmico – um sorriso. O sangue brotando quente de sua barriga aberta, encharcando sua calça, e ele sorrindo como quem passeia ao Sol do jardim depois da doença. Eu te amo, me ouvi dizer, sorrindo de volta com tanto carinho, eu te amo. E minhas lágrimas e seu sangue escorreram juntos, nos derramando a nós dois no carpete sujo.

 

 

Roberto Alvim é dramaturgo, diretor, ator e professor de História do Teatro na CAL (Casa das Artes de Laranjeiras). Autor de 11 peças, seus últimos trabalhos no Rio foram: PELECARNESANGUEOSSOS, Todas as Paisagens Possíveis, Qualquer Espécie de Salvação, Às Vezes É Preciso Usar um Punhal para Atravessar o Caminho, Vagina Dentata e Mundo Pânico. Atualmente exerce a função de Diretor Artístico do Teatro Ziembinski.

 


 

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