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aderaldo luciano


testamento

 


 

Uma noite tranqüila. Dormi bem. Meu sonho? Acho que não sonhei. Não me lembro. Lembro apenas do despertador. Tristemente encastelado neste 402, no Bancários, penso na mulher. Penso em seu nome, preciso pesquisar esse nome. E, sabendo disso, fica muito pouco a dizer.

O pôr-do-sol me trará trevas. Talvez a lua, com sua cor avermelhada, povoe o negro espelho e prenuncie tempestade ou, talvez, cintile poderosa, rasgue o negror rotundo, espalhe prata, entre nesta cela e me sugue em forma de alma, misturando-me com o éter escuro, escuro...

Vejo meu corpo morto, frio e sangue... Foi a última vez, o último punhal, a última noite. O derradeiro sono e o sonho eterno. Um coração cíclico, em rotação precisa, trazendo estações cronologicamente precisas. Um sorriso para ela. A última janela donde sei que a noite não é eterna.

Por ela retirei meu coração do congelador, meio passado. Ressuscitou do gelo, caiu no vinho e encantou-se. E penso nela. Não como mulher especial, mas como mulher. Que armazena sonhos e desejos e quer construí-los. Gente, e por isso chora e ri. Ousei perguntar: será que conversaria com ela 60 anos pela frente? Bebi o cálice da curiosidade. Varei noites e ruas. Vezes perdido, vezes desiludido.

A palavra morrendo na língua paralítica. O som sucumbindo na traquéia raquítica. Um violão no colo, um olho no solo. A TV nega novidades. No rádio, a CBN me fala de massacres, furos na economia, política e fofocas. Meu coração foi mais além essa noite. Fez estripulias, tripudiou sobre as armadilhas do tempo. Bebeu vinho, comeu pizza, fumou um cigarro e descansou em paz. Mas indagou ao computador, só mais uma vez: — Por que terei pensado nela? A resposta não virá rápido, mas virá.

Antes do sono, resolvi ler Camões em seus sonetos. O amor é fogo que arde. O sexo é corpo que arde, digo eu. O corpo é amor, fogo e sexo. Não necessariamente nessa ordem. Às vezes o corpo é só amor, outras, só fogo e, ainda outras, só sexo. O ideal seria a combinação em doses equânimes. Nada impede que as três facetas se realizem em profusão momentânea e causem cataclismas, subvertendo os sentidos, extrapolando lençóis, portas, paredes, edifícios, ruas, cidades, países e cabeças. Cabeças, exatamente! Cabeças, com todas as implicações metafóricas e políticas. Depois disso, resolvi ensurdecer. Me evitaria uma série de paixões e seus dissabores. Queria o corpo sentindo mais, sendo mais falo.

Agora, acordado, recolho as folhas da minha pequena árvore. Junto-as devagar, apanhando-as para incineração. Busquei sonhos, carinhos, amor, felicidade. Encontrei realidade, vários pesadelos, algum desprezo, solidão e medo. Em casas frias deitei em camas geladas. Certo dia, meu olhar escondeu luz quase morta.

Nesse momento, abro o peito e deixo sair o mutante e suas faces: o condenado, o mendigo, o santo, o músico, o egoísta, o poeta, o estudante, o bêbado, o sonhador, o mau, o pilantra, o escritor, o homem, a mancha, o louco, o fiel, o infiel, o amante, o herói e o covarde. Ela não está ao meu lado. A flor que, de manhã, no alvorecer da minha existência, me cobriu de pétalas e me transcriou.



* * *
 

Deixo para ti as últimas lembranças de felicidade que me acompanham: o sorriso de minha mãe e a beleza dos meus três pequeninos samurais. Cantigas descobertas na vida. Um rádio ligado à noite e um violão sobre o guarda roupa... O filme pornô que nós não vimos e o motel que nunca freqüentamos...

Deixo ainda um rol de coisas em que acredito, não são muitas, mas o suficiente para não morrer demais: acredito no sol, em sua força criadora. Na água movendo moinhos e secretando a vida. No fogo capaz de mudar a história e as histórias. No homem domador do raio, do trovão, da gravidade, vencedor de distâncias, inclusive a dos corações. Acredito na Língua, união e desunião de povos. Na lança que fere e que salva. Na selva e sua sudação e fotossíntese. Na vida além da morte. Na morte por amor e no amor de morte. Na matemática financeira e no computador.

Deixo para ti, enfim, os insondáveis mistérios e as perguntas tantas que não desvendei. Por que te conheci? De onde venho, para onde vais? Quem somos e o que não sou e o que queres ser? As respostas, talvez, nunca conheçamos. A impossibilidade de habitá-las é meu pesar. A necessidade de compreendê-las é estrada afora. Vejo as Mangabeiras e suas trevas.

Escrevo este testamento, pois bem sei que amanhã não existirei mais como agora o sou. Cansado e só, um peito morto e um rosto pálido, o sexo inerte e a mão trêmula, o estômago vazio e os pés esquimós, escuto os sussurros do coração e da aorta, espero o desfecho, como num conto de Poe. As luzes se apagam, busco duas coisas para continuar respirando: a dor da solidão de dor e o prazer de saber cantar. Antes do fim te deixo meu canto, mistura de cisne e guriatã.



ADERALDO LUCIANO é paraibano, nascido em Areia, poeta, professor de Teoria da Literatura e cozinheiro amador.
 


 

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