|
|

|

eduardo portella
propostas para discussão
cisões e
decisões da modernidade, I
1. Para compreender a literatura precisamos acompanhar o seu processo: o
interminável diálogo da linguagem com o tempo.
2. A literatura, como realidade, é um processo, mesmo ou sobretudo quando
se trata de rejeitar, de denegar, de acusar — um processo animado pela
esperança. O não que leva dentro freqüentemente carrega ou dissimula um
sim.
3. Todo processo aberto comporta interpretações outras, sucessivas e
simultâneas. O processo se esquiva a qualquer visão continuísta da
história.
4. A razão não é proprietária exclusiva da verdade. Ela pode perder a
razão no seu desesperado esforço de autoproteção. Creio que foi Franz
Kafka o primeiro a chamar a nossa atenção para esse perigo.
5. Compreender-se porque a ambigüidade, o formato, o caos, a velocidade,
constituem instâncias destacadas da última modernidade.
6. Tudo se agrava quando o existir se confunde com o consumir. E o
cartesianismo degradado eu consumo, logo existo. E a orgia indiferenciada
das multidões consumidoras.
cisões e decisões da
modernidade, II
As cisões e decisões da modernidade estão o tempo todo atravessadas pelos
espectros do risco, mais oneroso para nós, mais rentável para eles.
1. A internacionalização, ou a equalização equânime de risco, somente será
possível se for conduzida e combinada como reinvenção da democracia. Aí
então o risco será um impulso orientado reconstrutivamente.
2. Não se pode negar que há um quadro supranacional que nos abarca a
todos. E fragiliza consideravelmente as representações nacionais.
Mesmo a "democracia cosmopolita", suas diversificadas instâncias, dependem
fundamentalmente de legitimações advindas das sociedades civis.
3. É possível sustentar-se no vigor coletivo de "partidos cosmopolitas"?
As legislações trabalhista e ambiental traduzem e regulam esses desafios?
Fica difícil supor que a sociedade tecnocrática pós-política, ou seus
ateres mais ou menos inidôneos, guarda as chaves do tesouro.
4. A apoteose e o risco são representações inacabadas de um caminho
interminável. Se a primeira incluísse o segundo, perderia a ênfase. E a
apoteose sem ênfase é um risco a mais.
5. E o que dizer do cânone literário em tempos de recessão? Seria
certamente uma imprevidência canonizar a fugacidade ou a velocidade, ou
ainda as histórias sem pé nem cabeça.
6. A auto-ajuda reforça o indivíduo abstrato. O esoterismo é a metafísica
sem metafísica.
o declínio do progresso, I
1. A idéia de progresso se encontra no centro da cultura moderna. Para o
bem e para o mal.
2. As relações econômicas e sociais, as trocas interpessoais, os
movimentos do espaço público, o fazer cultural, o trabalho da linguagem,
costumam adotar uma postura concentracionária e ascensional.
3. Esse acontecimento adquire maior relevância a partir do momento em que
se pode observar que a história do Ocidente tem sido a história do
progresso. E sob as ordens do progresso, a modernidade foi percorrendo
caminhos díspares e cruzados.
4. Mas o progresso agora, como a ciência que o sustenta e potencializa,
já não pacifica nem reconcilia. A ciência prometeu o progresso porque
acreditava em si mesma. Dispunha das chaves da evolução. E não se deve
concluir que esteja perdendo essa batalha.
5. A idéia de progresso deixou de mobilizar porque se desmascarou como
idéia total, como expressão do todo compacto. E as totalidades ou se
mostraram totalitárias ou se tomaram parcelares, afastando-se
progressivamente do homem novo.
6. Há todo um caminho a percorrer no amplo itinerário que vai do "paraíso
perdido" (Milton) ao "paradigma perdido" (Morin).
7. Faz-nos lembrar o cego combate pelo progresso absoluto. Alguma coisa da
figura melancólica do ex-combatente, na hora em que a história demonstra
que, mesmo ganhando, combateu por uma causa perdida.
8. Também se abala a noção de progresso enquanto "grande narrativa", em
meio à vida parcelar — e aqui recorremos às antenas parabólicas de Robert Musil
— do cotidiano cindido.
o declínio do progresso, II
1. "Le progrès est le développement de l´ordre" é a positivista frase de
August Comte, que serviu de epígrafe ao livro Ordem e Progresso, de
Gilberto Freyre. Creio que hoje, depois de tanto progresso ordeiro e de
tanto resultado desordenado, seria oportuna uma errata que dissesse: a
ordem é o desenvolvimento equânime do progresso. O que deixa de acontecer
quando, no lugar do "bem estar", se encontra o bem protegido. E o
progresso, que fora programado para ser o reino da ordem, termina sendo a
última estação do caos, o primeiro degrau da "interiorização do mal".
2. No plano mais amplo da cultura, o predomínio da razão instrumental, o
expansionismo da técnica, muito contribuíram para deserção e
desertificação literárias.
Quando na cultura desaparece a ficção, desaparece com ela a cultura, a
sociedade, a livre manifestação do real.
3. O realismo-naturalismo, pelo menos no manifesto da escola, entregou-se
às determinações da ciência experimental. E só conseguiu salvar-se quando
desobedeceu. Quando se tomou mais progressivo, e mais inclusivo.
4. A cristalização histórica da linguagem poética vem ser o cânone. Que
emerge com os seus dias contados, até o aparecimento do novo cânone, com o
qual terá de compartilhar o seu protagonismo.
5. A literatura não deve ser considerada como empresa fatalmente
progressiva, nos termos da retórica ascensional da estética da apoteose.
Mas nos desagrada quando registra baixas ostensivas, em meio à
desqualificação da subjetividade ou ao crescente descrédito das ficções.
6. O desvirtuamento da ficcionalidade pode ser surpreendido na "literatura
trivial", na "inteligência" burra, na publicidade, na contra-informação.
Em todas elas é possível observar a derrocada das mediações.
EDUARDO PORTELLA é escritor,
ensaísta e professor emérito da UFRJ, onde oferece semestralmente cursos na Pós-graduação
de Letras sobre Crises da Modernidade e Pensamento Contemporâneo. É o idealizador de uma das mais importantes revistas do
pensamento nacional: a Tempo Brasileiro. Fundador do Colégio do Brasil, foi Diretor Geral Adjunto e Presidente da Conferência Geral da UNESCO
(Paris), na qual coordena o Comitê Caminhos do Pensamento Hoje, além de
presidir o Fundo Internacional para a Promoção da Cultura.
voltar ao índice |
imprimir
|