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joão perré
noite
Me lembro ainda de quando eu
era criança. Vivíamos em Maceió, capital de Alagoas, em uma casa pequena
do subúrbio, eu, minha mãe e meu pai. Havia um quintal por trás da casa
onde eu passava as tardes mexendo na terra, subindo nas árvores e no muro.
Passávamos a noite assistindo televisão, alguma novela. Logo depois
dormíamos. As noites eram melhores quando faltava luz. Ficávamos no
terraço olhando a rua apagada. Não passava gente, as outras casas ficavam
distantes. Fazia um silêncio leve. Um pouco do ruído dos grilos chegava a
nós. No entanto eram raras essas noites.
Recordo a noite em que a história do telhado começou. A casa parecia
tranqüila, enquanto assistíamos tevê. Fomos dormir depois. No escuro, luz
apagada, eu ouvia o ruído de fora da casa. Uma luz muito fraca entrava
pelas frestas da janela, tornando azuladas as paredes do meu quarto. O
quintal ficava muito escuro. Eu temia passar por lá à noite. Um sussurro
entrou no quarto. Meus pais estavam brigando. Não consegui dormir. As
brigas eram freqüentes, mas cada vez estavam mais espaçadas. Antes era
pior, eles de repente começavam a gritar. Eu ficava com medo, não sei ao
certo de quê, mas meus olhos se arregalavam e eu esperava. Agora apenas
sussurros incompreensíveis. Um ruído diferente se juntou às vozes deles,
já um pouco alteradas. Não dava para saber o que era. Depois, porém, o
ruído se tornou mais intenso. As telhas estavam tremendo. Ouvi minha mãe
perguntar:
- O que é isso?
Eles se levantaram, enquanto
eu não conseguia mover minhas pernas na cama. Minha mãe veio à porta do
meu quarto. Mal dava para ver seu rosto, mas seus olhos estavam tão
assustados quanto os meus. O ruído se fez mais forte. Algo muito pesado
estava em cima do telhado. Não tínhamos coragem para sair e ver o que era.
Do meu quarto, eu via meus pais na sala, próximos um do outro, mas sem se
tocarem.
Só mais ou menos uma hora depois, a casa voltou ao silêncio. Mesmo assim,
não conseguimos dormir, estávamos muito aterrorizados. Meus pais
permaneceram na sala. Falavam baixo, não queriam despertar o que quer que
fosse. Havia o risco de o telhado ceder, se o peso sobre as telhas
continuasse a se movimentar. Quando o dia começava a clarear, adormeci.
Faltei à escola. Meu pai saiu logo cedo, sem pronunciar nenhuma palavra.
Ficamos eu e minha mãe em casa com medo de que o barulho retornasse. Neste
dia não fui ao quintal, quis ficar perto de minha mãe. Ela tinha o rosto
marcado pela noite. Meu pai retornou quando já anoitecia. Tinha o rosto
grave. O silêncio da casa se tornara pesado. O jantar já estava na mesa
redonda da sala. Enquanto comíamos, as telhas voltaram a tremer. Minha mãe
chorou em silêncio. Olhei para o meu pai de esguelha, para que não
percebesse. Ele se levantou e se foi. Escutei o portão da frente abrindo.
As madeiras do telhado rangiam, pareciam a ponto de se romper. Saí para o
quintal, sem saber muito o que fazia. A escuridão criava vultos temerosos.
Trepei no muro. Com as pernas tremendo, caminhei sobre ele até poder ver o
que estava sobre o telhado. Quando vi o cavalo, me desequilibrei. Minha
perna vacilou uns instantes no ar, por pouco não caí no chão. Fui chegando
mais perto. Era um cavalo negro. Parecia ferido. Me sentei no muro e
fiquei o observando. Estava mesmo ferido, seu sangue escorria pelo telhado
e gotejava lentamente no quintal. Os olhos negros estavam pálidos, mas
refletiam a luz do poste da rua. Ele sentiu minha presença e se moveu um
pouco. Se movia a muito custo, pesado. Estava quase morto. Minha mãe saiu
pela porta dos fundos, se aproximou de mim, mas parecia não me notar. Uma
inquietude atravessava seu olhar. Viu as patas do cavalo, que
ultrapassavam o fim do telhado. Ela ainda chorava. Voltou depressa a casa.
Um barulho seco e repetido
veio de dentro de casa. O cavalo começou a se mover muito, assustado. O
telhado estava quase cedendo. Temia ser o que eu achava que fosse. Me
pendurei no muro, estiquei os braços e me joguei no chão. Corri, e vi pela
janela lateral minha mãe sobre um banco batendo com o martelo na madeira
do telhado no lugar onde o cavalo se estendia. Seu desespero fazia-a bater
com uma força que não tinha. O telhado cedeu e o cavalo caiu sobre minha
mãe. Fiquei olhando pela janela minha mãe morta, sós, eu e ela.
JOÃO PERRÉ é uma incógnita.
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