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boaventura de sousa santos


Mister Book em Nova York

 


Para MIR


Não é simples dizer-te por que estou aqui. O autor é sempre uma morada errada que facilmente passa por exacta. E um microcosmo cabe sempre dentro doutro microcosmo. É uma questão de acumular exigências. Lembras-te de te contar que andava a escrever na água, com ambas as mãos, a caneta a flutuar e a tinta sem qualquer concisão? Um livro escrito, como qualquer outro, ao balcão dos efeitos vitaminados da ambição. As coisas são o que são. Só até certo ponto. Depois mudam de dono ou de lugar e quase sempre passam à clandestinidade. As surpresas também são o que são, mas por menos tempo. Lembras-te de estarmos juntos na página trezentos? Era tudo enorme como um crucifixo. Um pasmo abundante que entrava em casa regularmente, como o correio. Falávamos com dificuldade. A verdade exigia ser dita com tantos conceitos, em tantas páginas! Sufocava-nos sempre que se dirigia a nós. O que acontecia raramente. O livro fazia acontecer tudo ao contrário. Tropeçávamos nas páginas. Desconfiava do amor. Deixava-nos à beira do último fôlego. Lembro-me que a princípio entravas e saías dos capítulos quando querias. Depois reparaste com alguma surpresa que as páginas são o que são. Mesmo em desequilíbrio. Quando as viramos, raramente entornam tinta. Mesmo assim, convidei-te a subir. Um livro de oito andares sem elevador. Lá do alto avistava-se o tráfego até ao University Place. Era tudo nítido e sem sentido. Só o livro parecia entender tudo. Concluímos então que o importante é não ter de ler. Ainda agora continuo a escrever de braços cruzados. As coisas são o que são. Por exemplo, um hot bagel em Union Square. Os livros nunca comem, estão sempre a fazer a digestão. Quando terminam não se lembram de nada. É um velho costume da escrita, estar acima das circunstâncias. Outro exemplo: não distinguem entre o jazz comercial do Fat Tuesday e a verdade íntima do Bradley's. Por isso se alongam em explicações. Deviam ser proibidos. Pelo menos, nos bares, onde a realidade está colada a nós confortavelmente. Hoje, quando decidiste não vir comigo, fiquei aliviado. Estava concentrado no adeus a um monte de papel demasiado competente. Eu próprio tinha de trepar a esmo até ser visto. Não me conformo que ao fim de tanto tempo não seja possível convencer estes papéis a estar connosco. Naturalmente, como um whisky, a ouvir Ray Thur-mon, Charles Thomas, Marcus Roberts, Bruno Deztrez, Ray Hargrove, Ron Blake. Imaginas o livro a saber ler sinais tão simples como Walk, Don't Walk? Ou a pedir uma Omoleta Califórnia ou um Johnny Walker? Aqui, onde me vês, já atravessei páginas e páginas em branco. Aliás, atravessámos. Desertos crudelíssimos, às vezes entre capítulos contíguos. Lembras-te de estarmos sentados - tu no corno direito, eu no corno esquerdo - de uma idéia pesada e indomável? Por fim, convenceste-me que era possível escrever sem perder a minha dignidade. Mesmo assim, dada a posição, tive de escrever às avessas. A caneta dentro da pele e as palavras invertidas como os sinais das ambulâncias. Uma língua habituada a grandes empreendimentos, desigual de tudo. Um livro assim abre horizontes e depois fecha-os. Só não o mandámos prender porque somos anarquistas. Talvez pela proximidade, é-me cada vez mais difícil estar à sombra de razões fixas. Todos aguentamos um discurso da verdade mas ninguém aguentaria dois. Tu rias-te, mais consciente das mutações do que eu. O que me faltava quando tinha o livro entre as mãos! Deficiente de tanta força ilustrada, sem pensões nem condecorações. Deixei-me iludir por razões que só davam para as minhas razões. Em verdade, eu ia sendo expulso de casa, deportado para as teorias mais inóspitas, condenado a atravessar pântanos analíticos, um passo atrás doutro passo, de tanta erudição enredada nos pés. Quando deste comigo já eu estava incapacitado. Não te surpreendeu a minha falta de serenidade. Afinal, depois de tanta mutação, um livro estava ao espelho doutro livro. E só restava começar tudo de novo. Mas como - perguntava a tua lucidez múltipla - se a biografia era já um efeito bibliográfico? Estava aí talvez a redenção fechada, a reconciliação possível. Escrever mais devagar? Numa cadeira de rodas em itálico para circular melhor? Até que fiz uma proposta concreta: ir de braço dado com o livro à exposição do Roy Lichtenstein no Museu Guggenheirn. Chegámos e vi logo que ele ficou preso aos Benday dots, sobretudo na série dos espelhos ovais. Era afinal um menino de Lacan no espelho do espelho. Eu próprio me deixei cegar com tanta coincidência. Assisti a tudo com grande cumplicidade. Mas também com alguma reserva. Apetecia-me manter as distâncias. O livro, não. Sentia-se em casa. Tudo muito linear e geométrico, simples e comic strip como quem sabe o que quer quando sabe o que quer. O livro afastava-se de mim e entregava-se deleitado ao que via. Já não era o meu ritmo nem o meu olhar que o comandavam. De facto, eu fui ficando só e nu. E tanto assim que não saímos juntos. Ainda ouvi as suas gargalhadas repetindo obsessivamente Art e In dos quadros minimalistas. Sabia que a reconciliação de alguma condição deixa as demais ininteligíveis. Por isso aqui estou neste restaurante popular, à frente de duas sopas - chicken noodles e clam chowder - que, sei, vou acabar por comer sozinho. Regresso, pois, leve. Eu que cheguei ajoujado pela companhia. Regresso, pois, levíssimo. Um avião dentro doutro avião. De tão leve, nem sei o que regressa comigo. Triste por só ter razões para estar feliz. Estás a ver que tenho razão quando te digo que as coisas são o que são? Só eu é que não. Eu, ou o livro?

 

 

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS é diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison. É um dos principais pensadores das questões sociais contemporâneas em língua portuguesa. Sociólogo, autor, entre outros, da coleção Reinventar a emancipação social: para novos manifestos, em sete volumes, da editora Civilização Brasileira. Mais conhecido como pensador, é autor de Escrita INKZ, livro que o lançou como poeta no Brasil. O presente conto é inédito.


Leia também nesta edição alguns poemas de seu próximo livro, Viagem ao Centro da Pele.
 

 


 

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