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roberto alvim
diário de guerra
Parei de fumar, de
beber e de usar drogas. Não foi uma decisão, uma promessa – decisões são
revogáveis de acordo com as circunstâncias (qualquer homem sábio sabe
disso), promessas existem para serem quebradas (qualquer punk poderia lhe
informar). Não se trata também de repressão de vontades – o que cedo ou
tarde implicaria em neurose freudiana, explosões de frustração e novas
noitadas supostamente libertadoras. Parei há cerca de 10 dias, de repente,
como resultado inesperado de um insight. Ontem tirei a prova maior: um
amigo de esbórnia fez uma visita surpresa, sacou sua caixa de Marlboro,
acendeu, tragou. Vontade nenhuma, me surpreendi. Fomos a um restaurante:
lá ele (como manda o figurino) fumou mais, bebeu cerveja que nem gente
grande; enquanto isso nós conversamos, comemos. Depois nos despedimos,
apesar de seu convite pra estica tradicional. Ótima noite, sem tabaco, sem
birita, sem drogas (destino certo nos bares e boates da famigerada
seqüência). Enquanto estávamos no restaurante (e em minha casa), tivemos,
eu e meu amigo, uma puta conversa, minha inteligência mais viva que em
muito tempo. Pensamentos difíceis foram pensados, coisa rara de acontecer.
Imaginação solta, verbo livre. Nenhuma ansiedade me obliterando.
*
Como se deu o milagre do meu re-hab? Jesus? A iminência de uma doença
mortal? As advertências do Ministério da Saúde nos adoráveis maços
ilustrados? A promessa médica de uma melhor “qualidade de vida”?
Não, obviamente. Nunca fui estúpido o suficiente pra dar atenção a essas
porras – que pra mim sempre estiveram intimamente relacionadas com
mesquinharia de comercial de margarina, covardia, falta de ambição. Doença
e morte nunca me preocuparam muito (já fui preso em 3 ocasiões, briguei em
bar uma porrada de vezes (contra caras mais fortes e em maior número), fui
junkie de herô e pó durante anos, sou dramaturgo e diretor de teatro, ou
seja, tô claramente cagando pra quase tudo que diga respeito a “bem
estar”). Não, o motivo da minha mudança foi outro. A causa foi uma idéia.
Uma simples, poderosa idéia.
*
Antes de entrar no assunto principal deste texto, uma breve ratificação:
no Diário anterior, reduzi a três os motores que levam à construção de
obras de arte (a saber: raiva e/ou sexo e/ou dinheiro). Há um quarto, que
me ocorreu depois que meu cinismo deu trégua: alguns artistas (de um tipo
raro) fazem arte para não enlouquecerem. Fazem arte num esforço urgente
para preservarem a própria sanidade. Bom, isso não é garantia de grande
arte, mas de um modo geral é daí que saem os trabalhos que realmente
interessam.
*
Voltando à tal idéia a que me referi nos dois primeiros tópicos. O caso é
que vivemos POSSUÍDOS. Todas as pessoas, todas todas, não conseguem viver,
ou nem sequer pensar a vida, a não ser como POSSESSOS. Que entidade nos
possui? A SOCIEDADE DE CONSUMO em que vivemos. Cada vez que acendia um
cigarro, eu, no fundo, pensava em Sartre fumando, ou em Bob Dylan, ou em
Godard; cada vez que abria uma cerveja, no fundo pensava em Bukowski
bebendo, ou em Faulkner, ou em qualquer outro herói outsider; cada vez que
usava drogas, pensava em Burroughs, Hunter Thompson e cia. São meus
produtos pensáveis, os meus encostos, loucos para agirem através de mim;
outros caras fazem o mesmo (fumam, bebem, cheiram) pensando em outras
referências (filmes, astros de rock, etc). Isto é, não é que eu quisesse
fazer essas coisas – acho mesmo que nunca quis, porque agora não tenho
mais a menor vontade (o que me levou ainda à periférica mas surpreendente
conclusão de que não é uma questão física, mas cosa mentale, puramente). O
fato é que muito pouco em nossas vidas é feito realmente por nós, produto
de nosso desejo genuíno; a maior parte das coisas é gerida pela POSSESSÃO,
que toma conta da gente como um demônio medieval ou um orixá do candomblé.
Estamos possuídos pela sociedade de consumo; só conseguimos formalizar
nossos desejos, nossas vidas, nosso estar no mundo, através dos signos
propagados em nossa sociedade. Quando percebemos isso, nos iniciamos num
processo de exorcismo e principiamos a ficar livres; caem por terra sem
esforço (apenas porque nunca foram realmente partes constitutivas de nós)
uma porrada de hábitos (que, acreditávamos, definiam nossas identidades).
Perdi até peso nessa brincadeira; estou me sentindo leve pra cacete, e é
uma boa sensação.
*
Somaram-se então algumas outras idéias a essa: se estamos todos possuídos,
e não conseguimos viver ou sequer pensar a vida sem ser como possessos, e
se esta idéia expressa assim, literalmente, talvez não seja forte o
bastante para que todos compreendamos isto por inteiro (isto é,
organicamente), então de que modo pode se dar o EXORCISMO?
*
Bom, a resposta tem a ver com um certo tipo de obra de arte, com mass
media e com a dificílima busca de proposições que se constituam como
alteridades tão radicais que não possam sequer ser expressas... Mas isso
fica pro próximo Diário, se eu não for assassinado antes pela Sony Music
ou pela Shell ou pelo...
Roberto Alvim, 30(?) anos, é dramaturgo,
diretor, ator e professor de História do Teatro na CAL (Casa das Artes de
Laranjeiras). Autor de 11 peças, seus últimos trabalhos no Rio foram: PELECARNESANGUEOSSOS, Todas as Paisagens Possíveis, Qualquer Espécie de
Salvação, Às Vezes É Preciso Usar um Punhal para Atravessar o Caminho,
Vagina Dentata e Mundo Pânico. Atualmente exerce a função de Diretor
Artístico do Teatro Ziembinski.
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