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ferreira gullar
o musgo e
outros poemas
olhos
vejamos: este lagarto
(de um palmo, verde escuro,
desses que habitam
velhos muros)
esse organismo
chamado lagarto
quis ter olhos
ver o mundo
quis
deixar-se invadir
por ele
(como nós
pelo céu do verão)
a sua carne
de lagarto quis
abrir-se ao real
ou simplesmente
ver a presa
a vespa
e zás
a captura
e engole
a escuridão
exige o tato (nos
cegos)
o ouvido (nos
morcegos)
exige
o faro
já de si noturno
que
de qualquer modo
dispensam a luz
(ainda que
certos cheiros
nos ilumine
a vagina
num lampejo)
mas como
sem olhos
apreender a glória
desta manhã
de maio?
insônia
É alta madrugada. A culpa
joga dama comigo
no entressono. Cismo
que ela me engana
mas não bispo o seu logro.
Ganho? Perco? Blefo?
Afinal, qual de nós rouba no jogo?
falar
A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.
A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.
o musgo
Em frente à janela do alpendre
por volta de 1949
o musgo
tomou todo o muro com seu veludo vivo
e verde
assim o mantinha dominado
sob a multidão de suas patinhas macias
e ali ficava como se dormisse
grudado a ele
feito o pêlo de um bicho
prenhe de luz e noite
pois nele formigava um escuro, úmido alarido
e que
de qualquer ponto da cidade
eu podia escutar
eu e os mortos todos
cristalizados no chão da ilha
FERREIRA GULLAR,
considerado um dos mais importantes poetas brasileiros vivos, dispensa
apresentações. Autor do lendário Poema Sujo e de A Luta Corporal, transita
também pelos caminhos da ficção e da crítica da arte. Atualmente, é
colunista das revistas Continente Multicultural e Folha de São Paulo. Os poemas acima,
inéditos, são os mais recentes do autor.
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