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paula glenadel
Derrida e Glissant: poéticas da diferença
Uma lista exótica, quiçá à
moda daquela de Jorge Luís Borges, citada por Foucault na abertura de As
palavras e as coisas como meio de introduzir uma meditação sobre “nossa
prática milenar do Mesmo e do Outro”, misturando influências, vozes,
datas, perfumes, tons, margens, marcaria um desejo de mudar de episteme,
de reinventar uma relação ao saber, sendo que o não-saber interessaria
aqui obviamente muito mais: um roteiro, um cenário, um drama barroco,
algumas cenas, dois mares, duas viagens, duas margens, ao menos três
personagens, uma troca.
Para tramar uma palavra outra, para tramar a palavra “outro”, não bastaria
mais repetir a forma do discurso que se domina demonstrando seu domínio
sobre o tema tratado. Em concerto com Édouard Glissant em Poétique de la
relation, eu assumiria que a “prática do Outro”, a Relação, só pode ser
poética. Rota, roteiro. E iria deslizando até topar em alguma pedra no
meio da viagem, capaz de me partir. Pedra de escândalo ou de fundamento?
Não se pode saber ao certo: o deslize originário, a desmedida básica, é a
tomada poética da palavra.
O cenário é o mundo, mas que mundo, que parte dele, ou que imagem fornecer
valendo pelo todo? Mundo adjetivo-substantivo de Glissant, caos-mundo,
onde se perde e se refaz o saber do que é a coisa e do que é a qualidade
nela entrevista. Ou praia no fim do mundo, onde o caminhante mudo tenta
acertar o ritmo do planeta pelo ritmo da sua marcha, muito mais do que
acertar seu passo com o dele, ambos definitivamente “fora dos eixos”.
Mundo deserto de Fim de Partida, palco beckettiano esvaziado onde
deambulam mendigos, palhaços tristes isolados numa bolha, caricatural
mônada, olhando a terra por uma luneta, terra vazia, cinzenta, nada no
horizonte, “zero”. Como, ou em que ponto dela, se poderia ainda tomar o
pulso da terra? Como o “geo” (que a tradição modula em geometria,
geografia, geopolítica, geórgicas) faria sua aparição num mundo de
agricultores envergonhados, onde “A solidão tradicional do camponês é
exacerbada pelo pensamento confuso de que seu trabalho é anacrônico, nos
países desenvolvidos, ou irrisório, nos países de pobreza.”?
Mundo pintado em afresco contemporâneo do “dilúvio” na interpretação de
Michel Deguy em A rosa das línguas, apartheid dos continentes
clochardizados à deriva, verdadeiro quarteto para o final dos tempos,
música de esferas definitivamente dissonantes, desafiando nossa idéia de
terra e de humanidade.
Um “mundo” muito mudado, em suma. Mas que continua a repetir liturgias
nacionais cujos elementos são passaportes, vistos, consulados e
embaixadas, feiras de livros com estandes por países, departamentos de
literaturas nacionais nas universidades, nações unidas, ligas, ações
militares, invasões, guerras. Mundo que lavra a abolição de fronteiras
entre países de qualidade de vida comprovada, a igualdade entre iguais, a
Europa unida, mas que vê “nações” européias se posicionarem pela sua
soberania como entidades ainda paradoxalmente resistentes, como visto no
resultado dos recentes plebiscitos sobre a Constituição Européia.
Mundo morto ou, em todo caso, indefinidamente moribundo: o mundo que
conhecemos, seus esquemas mentais, políticos, econômicos, filosóficos. Com
Jacques Derrida, um trabalho de luto se investe no pathos da
“desconstrução” e comemora um drama barroco (um Trauerspiel, segundo a
leitura de Jacob Rogozinski na revista Rue Descartes em homenagem a
Derrida) na encenação de um dilaceramento que a constitui, indecidindo-se
entre os dois pólos da opacidade e da transparência. O drama barroco da
“desconstrução” encena a diferença de uma totalidade infinitamente
recomeçada, assim descrita por Glissant: “O frêmito barroco visa a
significar desse modo que todo conhecimento está por vir”.
No pólo opaco, o singular, o diverso, o obscuro, o outro; no pólo
transparente, o mesmo, o modelo vigente do compreender, exterminando o
inassimilável. Eles se conjugam num estremecimento do saber, numa tomada
insólita da palavra. Sendo ao mesmo tempo infra-europeu por seu traço
judaico-argelino e supereuropeu por sua cultura de colonizado francês, a
qual implica a adesão ao próprio traço universalizante que contribui para
desconstruir, do lugar de Derrida se abre a questão do Universal como o
devir da Europa, o monopólio europeu do Espírito e do Capital. Deste lugar
se mira o luto impossível da metafísica, se escreve poeticamente a
presença de ausência de um impossível, se guarda a promessa de uma
democracia por vir.
Algumas cenas: o western, porém não mais designando a expansão para o
oeste americano com massacre de índios e búfalos pelos caubóis. Esquecendo
de mencionar o animal como vítima da colonização, eu cairia num
antropoformismo sumário, “universal”; não há perda para os homens em serem
comparados solidária e poeticamente ao animal. Todos são, ao contrário,
arrebanhados, animalizados no sentido “naturalista” do termo na prática
política dos Estados, a tal ponto que “animalizar” poeticamente se torna
uma proposta revolucionária. O adjetivo western se aplicaria a todo o
projeto do Ocidente como bangue-bangue, como conquista sangrenta baseada
na supremacia do tiro mais rápido. O bandido, sempre um moreno
mal-apessoado, às vezes saca primeiro.
As torres gêmeas do Império queimando repetida e incansavelmente ao longo
daquele dia 11 de setembro de 2001, em todos os televisores disponíveis,
para pasmo dos passantes, como eu, subindo o Boulevard Saint-Michel em
Paris, olhando da rua o interior das lojas, recém-chegada mais uma vez,
sentindo nas pernas e na cabeça a terra jogar como se estivesse singrando
o Atlântico no sentido Brasil-França, como se não tivesse vindo muito
rápido (rápido demais talvez) de avião, como se não acabasse mais de nunca
chegar. À deriva.
O universal: estúdios universais preparam a narrativa que interessa
contar. Onde um país, um pedaço de terra, representa a si mesmo no
imaginário de seus cidadãos e no imaginário mundial como uma entidade
nacional ocupada com o devir do mundo, dando-se o direito de intervenção
em qualquer ponto do globo.
O globo terrestre: o mundo menos as culturas, o grau zero da geodesia.
Medir, dividir, conquistar. O globo das viagens marítimas, pedestal de
madeira sólida. Nada a ver com o desejo de Glissant pela forma redonda,
acolhedora e capaz de integrar, mas em liberdade, espiralada.
Dois mares: o Atlântico do tráfico de escravos, das missões de
colonização, das peregrinações das elites em culto à Capital e ao Capital,
ao Espírito que “sopra onde quer” mas na margem de lá, parece, sopra mais
forte; o Mediterrâneo inventor da cultura e testemunha das cruzadas, as
medievais e as hodiernas, no ódio à outra margem, à margem do outro. Com
que instrumento de navegação se poderia enxergar o “outro da margem” de
que fala Derrida em L’autre cap?
Duas viagens: a viagem no ventre abissal do navio negreiro ignorante do
desenho que descreve sobre o pergaminho instável das águas profundas,
travessia dilacerante para o desconhecido da Relação; e a viagem da
expansão européia, trajetória da cabeça ou do falo que avança para a
conquista do desconhecido calculado, para o encontro perdido, para o
consabido, o sem Relação.
Ao menos três personagens: o xerife, o turista, o poeta. O primeiro toma
conta do condado, faz do mundo o seu quintal, extrapola. “Atirei no xerife
mas juro que foi em defesa própria”, cantava o apimentado Bob Marley,
parido para a Relação entre o ventre do navio negreiro, a Plantação e a
língua inglesa, “eco-mundo”, que dá a escutar o encontro turbulento das
culturas dos povos que compõem o caos-mundo.
O segundo passa direto pela diversidade e só procura se divertir ou se
dispersar, cruzando indene lugares, pessoas, linguagens. O turismo é
devoração de mundo, invasão movida por uma paradoxal “curiosa
incuriosidade”, como aponta Deguy: a marca de um tempo veloz, de “niilismo
trivial”. Tempo de declínio das antigas estruturas coloniais, porém de
manutenção do consumo da diversidade sem Relação.
O terceiro foi aquele a quem Derrida e Glissant deram a mão, a quem
cederam a mão que escreve em seus textos, a quem passaram a palavra na
qual se pensa: o poeta. A poesia, como reserva ecológica de opacidade,
apresenta, relaciona, não conclui, não exclui. E aponta, sobretudo, para
um conhecimento sempre em aberto, por vir, diferido, relativizando a idéia
de transparência com fins de dominação.
O drama barroco da diferença se entrelaça na trama da Relação. Haveria,
assim, uma troca entre essas duas poéticas do mundo, que busquei
intermediar aqui, acrescentando ao monte das oferendas alguma vivência e
alguma palavra minha. A troca dá o tom, convoca, convida, porém não se
sabe se ela pode existir globalmente, a não ser no modo da promessa.
Atravessamos o apocalipse da hospitalidade, nas palavras de Deguy:
Outra noite, na TV, um filme sobre a Amazônia. Chuva; margens; pântanos;
palafitas. Ei-los – “eles”, os índios, eu ia dizer os índios “em geral”, e
eles estendem, estendem-nos suas coisas, seu mundo; e nos estendem isso
através da tela, sem nos ver e nos sabendo muito bem “presentes”, aqui, do
outro lado – nós, os turistas banqueiros, os voyeurs ocidentais. Eles,
observados como os feridos graves em reanimação do outro lado da bolha, do
lado errado do panóptico. Gestos da oferta, mas de uma oferta implorando o
pedido, não gesto de oferenda ritual na troca da hospitalidade. A oferta
tornou-se mendicidade. Não é o gesto do mercado local ou regional; do
mercado deles. Mas de seu insignificante acesso ao mercado “mundial”; de
sua infinita e quase imperceptível “mundialização”; isso equivale a dizer
de sua virtualização ou fantasmalização in extremis.
Cacatuas, pequenos sáurios, preguiças, isso equivale a dizer “uns
nadas”; já nem mesmo as coisas deles, mas arrancadas a seu mundo. Mudadas
em valores de trocas minúsculas, “objetos” desprezíveis, suas margens,
suas plumas, seus costumes... Eles os estendem para nós com o mesmo gesto
da mendicidade, na borda da tela, em direção da tela e dentro dela.
Dir-se-ia uma oferenda, e é uma liquidação, uma ponta de estoque. Passam a
sacola propondo sua floresta, seus céus, suas cabanas, seu odor; na troca,
o que têm não vale nada. Não há troca. Vale um nada para as fotos, a
coleção do ocidental. Tudo se tornou espetáculo e lamaçal; triste, sim, o
tempo que faz, ele próprio.
Glissant, desde a sua margem, também faz, por sua vez, o inventário dos
bens disponíveis para a troca:
Ter algo a trocar, que não seja apenas a areia e os coqueiros, mas o
resultado de nossa atividade criadora. Integrar esse haver, mesmo que ele
seja de mar e sol, à aventura de uma cultura de que teríamos a herança
compartilhada e a responsabilidade.
Entre a fala compungida do poeta europeu e a fala esperançosa do poeta
antilhano, há convergência na certeza de que é preciso se permitir
oferecer mais do que os pedaços de alguma suposta natureza bruta, mesmo
com o risco de não encontrar parceiros interessados na troca.
PAULA GLENADEL é
doutora em Letras Neolatinas pela UFRJ e professora adjunta de língua e
literatura francesa na Universidade Federal Fluminense. Autora de Em torno
da poesia, atua também como tradutora de textos teóricos e literários.
Como poetisa, publicou Quase uma arte, na coleção Ás de Colete, da editora
CosacNaify, e A vida espiralada, entre outros. A autora também integra o
conselho editorial da revista Inimigo Rumor.
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