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emmanuel carneiro leão
a música em Mozart
Aos 27 de janeiro passado fez
250 anos que nasceu em Salzburg, na Áustria, Wolfgang Theophilus Amadeus
Gottlieb MOZART. A fonte da música, que nele vibrava, jorrou pelos quase
36 anos da existência de seu gênio e continua a jorrar, sem cessar, em
todas as formas conhecidas e desconhecidas da escritura musical. MOZART
nasceu na música, viveu da música e morreu de música. É o fenômeno musical
por excelência.
Tanto outrora, como agora, como em qualquer hora, o que sempre evoca
admiração, o que sempre provoca espanto, o que sempre convoca pensamento é
o fenômeno. Fenômeno diz espetáculo, o espetáculo da realidade explodindo
nas realizações do real. Por isso o princípio da Filosofia não é nem pode
ser a dúvida universal, seja real ou metódica. Não é nem pode ser a
certeza inabalável. Não é nem pode ser a falta radical. Não é nem pode ser
a abundância do excedente. O princípio da Filosofia é sempre o fenômeno.
Quem perdeu a capacidade de espantar-se com os fenômenos e vê em tudo
banalidade e evidência herdou pouco do fogo que Prometeu nos trouxe do
céu.
Mas, então, que espanto nos convoca a pensar este fenômeno providencial da
música dado e acontecido em MOZART? Resposta: MOZART nos faz escutar
Filosofia na música de toda e qualquer vibração de um real. É o sopro
criador que nos arrebata a alma até com tripa de ovelha, como nos lembra
ao coração Shakespeare em MUCH ADO ABOUT NOTHING (Act II, Sc, III): “Now
divine air, now is his soul ravished! Is not strange that sheep’s gut
should hale souls out of men’s bodies?” – “agora, divina vibração,
agora a alma lhe foi arrebatada! Não é estranho que tripa de ovelha
arranque as almas do corpo dos homens”?
Mais do que conhecimento dos objetos, a Filosofia é a escultura das
objetivações. Antes que uma teoria das idéias, a Filosofia é a pintura das
ideações. Ao invés de uma reapresentação do real, a Filosofia é a música
das realizações. Mas, o que é que todo este ser mais e ser menos nos quer
dizer e fazer pensar na e da Filosofia? – Trata-se de um ser mais e ser
menos que estende o horizonte e desdobra a envergadura da Filosofia desde
a plenitude cheia do ser através do vazio esvaziado do vir a ser até o
vazio vazio do nada e do não ser. É que, antes de tudo, ele nos quer fazer
pensar duas coisas essenciais: de um lado, que, na Filosofia, está sempre
em jogo um comparativo ôntico-ontológico de ser e não ser e, de outro
lado, que uma pergunta, cujo horizonte não se esticar entre os extremos do
ser e do nada, pode constituir um problema do e para o conhecimento, mas
nunca será questão do pensamento. Pois toda questão do pensamento vem do
mistério, vive no mistério e vai para o mistério.
Muito bem! E o que tem tudo isto a ver com o fenômeno da música e a música
dos fenômenos? Como tudo isto nos remete para o gênio dos criadores e a
criatividade musical de MOZART? – Resposta: tem tudo a ver e não tem nada
a ver, justamente por ser, para ser e deixar de ser questão filosófica na
e da música, caso naturalmente consigamos chegar até lá onde já estamos,
mas nunca somos inteiramente, onde sempre não temos nada de tudo, mas já
nos descobrimos sendo de alguma maneira tudo, como diz Aristóteles,
Panta pws estin!
A Filosofia nasce sempre de um transe e vive de transiência: o transe da
sobre-vivência e a transiência da realidade. Uma embriaguez instala por
toda parte a Filosofia: a embriaguez provocada pelo espírito das
realizações. Enquanto o espírito do vinho desequilibra o pensamento,
interrompendo os ritmos do tempo e embaralhando as distâncias do espaço
nas coordenadas do movimento, o espírito das realizações liberta o
pensamento, tirando obstruções, opondo posições e compondo oposições. É
por isso que o filósofo consegue manter-se tranqüilamente sóbrio mesmo
quando está ou até por estar superlativamente embriagado de realidade. Sem
uma integração harmônica das diferenças de tranqüilidade e embriaguez nos
processos de retirar, opor e compor realizações, não há nem mesmo pode
haver Filosofia, como escultura, pintura e música da realidade.
O escultor é um prestidigitador de formas. Tirando coisa da mesma coisa,
faz aparecer outra coisa. O peso denso e opaco do real esconde, não de
certo a passagem, mas o mistério de passagem da realidade pelos limites do
real em suas realizações. Pois bem, retirando o excesso de mármore do
mármore, temos uma outra realização totalmente diferente do mármore, temos
Apolo. É o que fez Policleto, extraiu da pedra de mármore Apolo e assim
deixou brilhar para a história do mundo a luz do deus no mármore leve e
diáfano da escultura.
Ora, é isto mesmo que se dá e acontece na Filosofia com o real, toda vez
que pensa um filósofo. As formas, que nas mãos do escultor acordam do sono
ôntico-ontológico da pedra, da madeira, do metal ou da argila,
transformam-se nas mãos do pensamento em categorias e estruturas, em
processos e impulsos de realizações históricas. Se, tirando o excesso de
real, o escultor ex-trai figuras e configurações, o filósofo ab-strai
padrões mutáveis de relacionamento, para deixar aparecer o mistério da
realidade, instalando-se em novas épocas de advento. O “modus tollens” é o
procedimento tanto da ex-tração do escultor, como da ab-stração do
pensador. Pois pensar é saber tocar com mãos mágicas na membrana real das
coisas, para deixar re-saltar as matrizes do ser, para fazer saltar os
perfis das realizações. É por esta arte mágica que se abrem passagens
extraordinárias para novos desempenhos, para adventos inesperados do
mistério inesgotável, mas finito da realidade. A Filosofia se faz, então,
a escultura das objetivações.
Já o pintor é o mago das tintas. Sua mágica não tira nada de nada. Sua
mágica dá. Pois a pintura põe dentro das tintas e suas combinações uma tal
força de demarcação e termo, uma tal vitalidade de criação, uma tal
definição de limites e decisão de fins que as tintas se transformam em
cores, que o espaço das coordenadas se transfigura em territórios de
lugares, que os deslocamentos de posição passam para movimentos de
acolhida e rejeição. É, então, que do interior das cores surge a moldura e
o quadro, assim como no teatro o cenário emerge da ação simbólica da
comunidade e demarca o palco da presença nas representações. O “modus
ponens” impõe a interioridade das cores às tintas, confere o regaço do
espaço às formas e linhas de todas as conjunções e disjunções, de todas as
harmonias e contrastes. Se o pintor é o mago das tintas, o filósofo sabe a
magia das definições e opera o poder das representações. As definições têm
a força de realçar atos e palavras, de acentuar posturas e situações, que,
de outro modo, desapareceriam no ambiente das relações, que se afundariam
na tessitura das referências e se perderiam no tecido das realizações. As
definições operam como o fundo escuro que faz desprender-se a
circunferência do anel, os números de um mostrador ou a forma de uma
moeda. Este desprendimento permite, então, apresentar uma estrutura
independente e universal e com isso acena para a dinâmica de idealidade a
que nenhum limite poderá resistir. É, então, que a filosofia se torna a
pintura das ideações.
Na música tanto se retiram excessos como se põem limites. O procedimento
da música não se pode restringir nem ao “modus tollens”, nem ao “modus
ponens”, mas integra os dois num terceiro que, na verdade, é o primeiro,
no “modus componens”, numa composição. Que isto significa? Desde sempre os
homens são levados pelo ser de sua existência a transformar para dentro e
para fora tudo que recebem, ao nascerem continuamente. O fogo de Prometeu
é também o poder dado aos homens de substituir o ter pelo ser e de
sentir-se sempre de novo de maneira diferente em cada situação daquela que
já lhe foi concedida. Trabalhados pela angústia desta inquietação
ontológica, os homens forjaram padrões de comportamento e práticas de ação
destinadas a conter as inconstâncias de seus descontentamentos de ser e
não ser. Estar fora de si no êxtase e no transe, projetar-se para um outro
mundo em viagens e migrações, tornar-se estranho para si mesmo nas
possessões e incorporações são outras tantas tentativas do homem de romper
com seu ser e permitir a irrupção do não ser, nas peripécias de um dever
ser incontentável.
A música é a mágica que toca profundamente as vibrações do vir a ser de
nossos descontentamentos e mais do que qualquer outra realização mergulha
nossos projetos de ser nas ondas do vir a ser e no abismo do não ser. Na
profundeza das vibrações se torna presente, em todo detalhe, a pertinência
de todas as diferenças. Os gregos foram quem presentearam o Ocidente com
esta vigência ontológica da música. Pois na música eles não viam apenas
uma expressão imediata e penetrante da alma humana. Nas vibrações do som e
nas oscilações do ritmo sentiam desfazerem-se os limites e caírem as
barreiras das realizações e viam brilhar um relâmpago alvissareiro sobre o
abismo noturno da realidade, em que nasce e vive o universo, se constitui
e se perfaz a música originária de todas as realizações de ser. Para a
filosofia a música não é uma arte entre outras artes. Por quê? – Porque é
a música que se torna sempre a musa de todas as musas. As artes são todas
musicais neste sentido originário e são arte na medida de sua
musicalidade. Na música se dá o mais elevado modo e grau supremo de
realização de qualquer real. É o que nos mostra e faz viver Mozart em
todas e em cada uma de suas peças. Questionando em tudo e sobre tudo a
realidade de todos os empenhos e desempenhos de ser, vir a ser e não ser
do real, a filosofia apresenta em cada acorde do mundo a música das
realizações. É neste sentido que Mozart é o fenômeno musical por
excelência, a música kath’exochen!
Johann Scheffler (1624-1677), um médico de corte, que se converteu para a
vida mística, escreveu numa de suas famosas poesias sobre o Prazer Sagrado
da Alma, Heilige Seelenlust:
Die Seele, welche so ist,
wie Gott es will, ist sein Lautenspiel!
A alma que vive tal como Deus quer, é seu alaúde!
Numa preleção de 1956, Heidegger diz que a música transformou Mozart no
“alaúde de Deus”...
EMMANUEL
CARNEIRO LEÃO, filósofo, ensaísta e tradutor, é um dos pensadores mais
importantes da atualidade, autor do livro Aprendendo a pensar, entre
outros. Ex-aluno de Martin Heidegger na Universidade de Friburgo, é hoje
um de seus principais tradutores. Atualmente é professor emérito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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