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roberto alvim


diário de guerra
 

 

 

A arte sempre é feita sob pressão. Ninguém criou uma sinfonia ou um romance ou uma história em quadrinhos que preste sem ter um bom motivo pra isso. Mas a que espécie de motivos me refiro?

1- Raiva: também conhecida por nomes mais dignificantes como “ambição artística” ou “amor ao próximo”. A raiva que sentimos pelas outras pessoas (raiva do pai, de um rival específico, ou da humanidade em geral) é a mola mestra da maior parte da criação artística. É claro que estou me referindo a uma raiva arraigada profundamente, produto em geral da competição ou da inadequação social. Alguns sujeitos dizem que construíram suas obras por amor ao próximo, o que na verdade significa que o fizeram por estarem submetidos à pressão interna causada por um ódio profundo ao outro (ou seja, à diferença) e por um desejo de que todos lhe sejam semelhantes – daí serem estas obras invariavelmente de fundo moral, versando acerca dos grandes temas, além de extremamente elaboradas no aspecto técnico (outro fato notável: quanto mais preciosista é um trabalho, mais produto da raiva ele é).

2- Sexo: obviamente o motivo principal para se fazer qualquer coisa. Construir algo como uma obra de arte é um caminho para ser admirado e conseqüentemente vir a conseguir fazer sexo com alguém que lhe seja realmente atraente. Quanto maior o seu tesão acumulado (ou a sua ambição sexual), mais cheia de vitalidade será sua criação.

3- Dinheiro: sabe aquelas batidas que abrem a Quinta de Beethoven? Era o cobrador à porta, atormentando o gênio com uma dívida mesquinha... Já se disse que o grande tema da arte abstrata (que supostamente, por não ser figurativa, não teria temas) é a falta de dinheiro – certamente grande parte da obra de criadores como Schoenberg foi erigida pela pressão de conseguir algum.



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É necessária a pressão gerada por um destes motivos (ou por combinações entre eles) para que um artista consiga a energia necessária à criação de uma obra de arte. E uma vez que o indivíduo em questão consiga sexo satisfatório em profusão e/ou dinheiro no banco e/ou a derrota de seu pai ou de seus amigos de infância ao ter sucesso e provar ser melhor que eles, fatalmente sua arte entrará em declínio (a fonte da energia irá embora, e lhe faltará inspiração). Daí a razão pela qual a maior parte dos grandes artistas que fracassaram em vida mantiveram o nível de suas obras, enquanto aqueles igualmente grandes que obtiveram sucesso e reconhecimento entraram em decadência, graças ao hedonismo desmedido gerado pelo fim da motivação...



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Inspiração é tão somente a chegada da energia necessária para o trabalho de construção braçal da obra de arte.



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Dois livros fundamentais, simplesmente por serem muito divertidos: LAS VEGAS NA CABEÇA, de Hunter Thompson (jornalismo Gonzo na fonte), alguns dias em Vegas com uma mala cheia de coca, mescalina, anfetaminas, éter, ácido e garrafas de rum e tequila; e CÃO COME CÃO, do velho criminoso Edward Bunker. Este livro contém a cena mais violenta de toda história da literatura – e eu sei do que estou falando... Trata-se da porra do seu primeiro capítulo, que é fodidamente bem escrito e que deixaria Charles Manson enojado... Well, meninos, arte serve pra isso: somos feitos de carne e sangue, e o assassino pode estar espreitando na próxima esquina.
 


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Norman Mailer dizia escrever como quem luta boxe. Seu objetivo: nocautear o leitor.
 


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Me lembro da última vez em que vi meu pai com vida. Era uma tarde bonita, o céu azul, nenhuma nuvem. Completamente azul. A gente passeava no campo, perto da minha casa. Um campo que não existe mais, uma casa que já desapareceu faz tempo. A gente passeava no campo, ouviu um barulho. Meu pai apontou pro alto do morro: eram os bois, estavam juntos, fazendo barulho, no alto do morro. Fomos andando na direção deles, acho que meu pai queria me mostrar os bichos, fiquei com medo mas ele continuava e eu fui atrás. Quando chegamos perto eu vi: um dos animais estava caído no meio, os outros em volta. Morto, o que estava no meio, a barriga inchada, o couro coberto por um tapete de moscas, um cheiro forte de mato e vômito. Os outros, em volta, faziam o tal barulho estranho, nós chegamos mais perto e entendemos... Eles choravam. Choravam, aqueles bichos, choravam pelo morto. Meu pai pegou minha mão, e eu senti como a mão dele estava quente, úmida, me pegou pela mão, forte; ainda ficamos um pouco ali, olhando, e depois fomos embora. O campo, o céu azul. Aquele choro seguiu a gente por um tempão. Acho que meu pai chorou também, enquanto a gente caminhava de volta pra casa, acho que ele chorou, mas não tenho certeza. Depois do suicídio dele, vi seu corpo no caixão, durante o velório. O rosto inchado, tinha atirado na cabeça, a cara estava mais larga, feia. As pessoas, minha família, as pessoas em volta do caixão, estavam em volta mas não olhavam pra cara inchada dele. Diziam coisas, falavam bastante. Não tinha uma mosca no velório do meu pai. E ninguém, ninguém chorou.

 

 

Roberto Alvim, 30(?) anos, é dramaturgo, diretor, ator e professor de História do Teatro na CAL (Casa das Artes de Laranjeiras). Autor de 11 peças, seus últimos trabalhos no Rio foram: PELECARNESANGUEOSSOS, Todas as Paisagens Possíveis, Qualquer Espécie de Salvação, Às Vezes É Preciso Usar um Punhal para Atravessar o Caminho, Vagina Dentata e Mundo Pânico. Atualmente exerce a função de Diretor Artístico do Teatro Ziembinski.

 


 

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