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hugo harris
borgianas
“Sempre imaginei o paraíso como uma grande biblioteca”
Jorge Luis Borges
As folhas estalavam enquanto
os pés progrediam naquele jardim amarelecido. A cada passada, o rosto do
ancião buscava as imagens de sua memória, arquivadas através do tempo. Os
olhos caídos não disfarçavam a vista cansada, e o calo na ponta do nariz
acusava as repetidas horas que se manteve relendo os volumes da
biblioteca. Seus setenta anos deixaram marcas físicas. As pernas tinham
dificuldade em suportar o peso do corpo, e uma bengala era necessária para
sustentá-lo. O peito movimentava-se numa velocidade curiosa, pois
alternava o desespero em inspirar o ar com a sofreguidão dos espasmos do
diafragma. Enquanto andava, mirava a entrada do labirinto que gostaria de
percorrer.
É assim que imaginei Jorge Luis Borges caminhando num dos cenários
fantásticos que criou. Aquela figura respeitosa deve ter-se colocado
inúmeras vezes, nos mais variados ambientes, como personagem de alguma
trama mirabolante que pôde testemunhar nas páginas dos milhares livros que
leu. Foi um dos tripulantes comandados pelo Capitão Ahab, em busca da
enorme baleia branca que acabou por destroçar o navio. Sentiu na pele as
facadas de Martin Fierro, mas estas eram lâminas que não feriam, e sim
desenhavam marcas indeléveis em sua alma.
Sempre que possível, citava essa obra de José Hernandez. Num de seus
ensaios, fez questão de frisar a “não-intenção” deste em transformar
aquele poema numa das obras pontuais da literatura argentina, como acabou
tornando-se. Porém, foi desta falta de intenção que brotou o gênio de
Martin Fierro, e toda a cerne do gaucho (sem acento) dos pampas, que se
tornou figura lendária e folclórica. Nas palavras de Borges estava a
definição do que ele próprio se tornaria. Quando quis expressar a falta de
pretensão de Hernandez, descrevia o sucesso e o respeito que sua própria
obra viria a ter.
No momento que eu olho os volumes de suas Obras Completas expostos na
minha prateleira, tento descobrir dentro de mim quais as sementes que
foram plantadas no meu interior. É importante eu poder dizer que li a
respeito do Vathek de Beckford, ou que sou íntimo de Alonso Quijano. Que
sei a importância de um homem como Macedônio Fernandez na vida de Borges —
assim como este é importante para mim. Percorri os diversos poemas que
escreveu no início de carreira e emocionei-me com sua delicadeza
imagética, o detalhe de suas descrições. Porém, o que germinou nas minhas
entranhas foi esse interesse incondicional à absorção de quaisquer
leituras disponíveis.
Leio seus estudos e tento vislumbrar esse desespero que tinha pelo
conhecimento. Deixou de ser paixão pelos livros. A paixão, por mais que
dure, tem como característica a temporalidade e sua instabilidade. De
acordo com alguns, se não fosse instável, não seria paixão. A relação de
Borges com a literatura, na realidade, foi uma obsessão. Ao escrever esta
palavra veio-me à mente uma idéia negativa. Um homem enlouquecido,
escalando prateleiras para chegar ao topo e buscar um volume empoeirado.
Esta cena seria muito provável, mas, ao tratarmos deste escritor
argentino, está longe de ser uma situação negativa.
Na questão do conhecimento, acho difícil encontrar uma leitura mais
proveitosa do que aquela na qual podemos perceber o sentimento interno do
escritor. Em Dostoievski, podemos sentir o questionamento interior e os
dilemas de uma psique perturbada. Kafka demonstra o retrato da mente
caótica e ciente do universo nonsense no qual imergira — ou seja, o
paradoxo da perturbação, que consiste nesta junto à consciência da mesma.
Esses autores ativam em mim uma reflexão existencial que difere do
estudioso argentino. Enquanto descubro meandros inexplorados da minha
consciência, por meio de O Processo ou Memórias do Subsolo, Borges faz
pulsar outra parte de mim.
Quando leio Borges, percebo aquele homem plácido e de olhos vidrados
percorrer as linhas dos livros com o dedo indicador, e parar a cada
instante para anotar algo que lhe interessara. Procuro fazer o mesmo, não
tenho pressa em terminar. Assim como ele, tento buscar nas linhas ocultas
a essência da expressão do homem, que consiste em idéias escondidas entre
os espaços das palavras, que somente serão encontradas se analisadas com
cuidado. Após isso, colocava-se freneticamente a registrar suas
impressões, momento no qual surgiram seus reconhecidos prólogos e as
análises de Dante e Shakespeare — ou Carlyle e Whitman — e outra centena
de autores.
À medida que tanta criação acaba por inspirar os sentidos criativos, o
argentino enveredou pelos contos e poesias, os quais refletem ainda mais
suas referências culturais, desde a literatura erudita até a mitologia
nórdica e as histórias do Oriente.
A cegueira gradual que foi diminuindo sua visão não o abalou. O escritor
sabia que sua doença era congênita e que estaria condenado a isso.
Acredito que por esse motivo preocupou-se tanto com a percepção da riqueza
das imagens nos seus trabalhos. As discussões filosóficas ficaram em
segundo plano, enquanto a beleza da descrição de um episódio ou a
complexidade dos entrelaçamentos narrativos mostraram-se muito mais
relevantes. Numa palestra a respeito do tema “A cegueira”, disse a
seguinte frase: “A cegueira é uma clausura, mas é também uma libertação,
uma solidão propícia às invenções, uma chave e uma álgebra”.
Tenho uma pessoa querida que está passando pela mesma aflição de ter que
afastar-se da leitura. A escuridão cresce e mistura-se às letras negras
impressas no papel. E, junto a estas letras que desaparecem, some aquele
sentimento de participação e testemunho das proezas de personagens
maravilhosos, como os inúmeros contidos nas mil e uma histórias de
Cheherazade. A sensação de vazio neste momento é como a de um diabético
que é proibido de ingerir açúcar, ou de um velocista que não pode mais
correr.
Sei que isso poderá acontecer comigo. A genética é infalível, assim como a
consciência de sua comprovação. O tempo persegue o seu objetivo, que se
trata de encaminhar-nos aos nossos destinos. A partir do momento que o meu
poderá tratar-se da privação da leitura, procuro seguir o exemplo deste
grande autor.
Borges, para proteger-se de sua sina, procurou absorver a maior quantidade
de estudos que pôde por toda a vida. Por fim, tornou-se algo similar ao
aleph que descreveu num de seus contos. Era capaz de conter, num único
ponto — que seria ele próprio — a amostragem de toda a diversidade de
acontecimentos, sabedoria, paisagens e personagens existentes no Universo.
E é por isso mesmo que o vejo caminhar por seu jardim de veredas que
bifurcam, craquear folhas e relembrar cada lombada dos livros que
mascaravam galáxias diversas, comprimidas em singelos volumes.
HUGO HARRIS, nascido
em São Paulo, é cineasta, jornalista e um cara realmente sucinto.
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