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luiz edmundo bouças
idéias e provocações no diário completo de Lúcio
Cardoso
Produzido entre agosto de 1949
e setembro de 1962, o Diário Completo (DC) de Lúcio Cardoso tem suscitado
– no fluxo de diversas investidas críticas – comentários que ancoram
pensamentos instigantes sutilizados pelo próprio diarista. Até que ponto
cumprir o movimento de um diário implica em percorrer a execução
memorialística de registros confessionais? Em que proporção cabe ao diário
– como se ao pé icônico de uma fotografia – lexicografar a certeza daquilo
que foi (Roland Barthes, O prazer do texto) e promover um testemunho
seguro da autobiografia de seu emissor? Seria inverter as regras do diário
associá-lo aos jogos que lancinam a trama da ficção, quando ele mesmo se
apresenta como dicção intermitente de “ficções do sujeito”?
Podemos dizer que certas partes do diário cardosiano permitem que
devassemos o enredo de uma parceria com o romance Crônica da Casa
Assassinada (CCA), publicado por Lúcio Cardoso em 1959, cuja estrutura
mostra-se moldada com base em confissões, pedaços de cartas, relatos de
relatos (Ruth Silviano Brandão, Lúcio Cardoso: a travessia da escrita),
mas em especial a partir dos fragmentos ficcionais de dois outros diários:
o de Betty e o de André. Esse estojo de conjunção ou de composição
dialógica DC/CCA avoluma sobretudo a pergunta: Que dispositivos do seu
diário traduziriam sinais soprados por um porte romanesco? Segundo o
próprio autor, o diário não deveria consistir num mero percurso de
auto-análise, mas em desenvolver algo que “participe da invenção”,
caracterizando-se como “um gênero híbrido, a ser tentado”.
Sem dúvida, o ideal como “diário” não é um processo constante de
auto-analise – convenhamos que nem sempre há dentro de nós grandes
novidades, já somos tão conhecidos – e sim alguma coisa que participe da
invenção. Gênero híbrido, a ser tentado. (DC)
Como seria para tal diário o ideal compromisso de participar da invenção?
O que Lúcio indiciaria como roteiro do esforço de um “gênero híbrido”? É
possível dizer que tal operação híbrida (como participação inventiva)
esteja claramente assumida pelo seu diário? Como escritor que sempre criou
provocações marcadamente habilidosas, Lúcio Cardoso não poderia deixar de
emitir, senão a partir de um recorte igualmente provocativo, a expressão
com que nos instiga a participar da “invenção” que inscreve as formas do
hibridismo, a espiral do traçado ambíguo de seu diário.
Sinto dia a dia o romance dilatar-se em mim – dilatar-se ao máximo, a
ponto de transbordar e começar a ser outra história. (DC)
Um dos recursos dessa provocação recolhemos no regime textual que consigna
as “ficções” da clandestinidade de X. Por que X? Que esforço de relação
essa letra reserva? Que intimidade de nomeação protege? Da grafia de X
irrompe o nome não revelado, mas celebrado na rasura. X lacra o nome da
paixão; escrevê-lo sob a mancha é suprir a sedução por evocar a letra que
bafeja o desejo.
Ontem a esta hora, X estava aqui e eu sentia a casa inteira cheia de
sua presença. (DC)
X já não está mais aqui. As águas do mesmo mar nos separam. (DC)
Poderia citar fatos: estive com X, fomos ao cinema, depois jantamos.
Mas são estas coisas, exatamente, as que devem figurar aqui nestas páginas
? Ou, ao contrário, devem elas cair no esquecimento ?. (DC)
Ontem, num bar com Vito Pentagna, conversamos longamente sobre X.
Talvez eu tenha exagerado os meus sentimentos, mas hoje, procurando
examinar com atenção o que se passa comigo, sinto que não tenho muito o
que discordar do que disse: mais ou menos os meus sentimentos permanecem
os mesmos. (DC)
Sob a pronúncia da interdição, X “escreve” o nome apaixonado. Quando
engendrado, o amor tomba o sujeito num todo, ou lacera a descoberta do
corpo inevitável e insubstituível? Deseja a afeição de toda palavra, ou a
viravolta de alguns poucos signos? Confessar essa conduta inestimável é
transitar um exercício esfumado, onde urge dizer da descoberta, sem
sancionar, no olho cindido, a proibição de sua clandestina claridade. No
diário cardosiano, a rasura de X deixa o rastro, aludindo ao que é preciso
esconder, ao mesmo tempo que designa o impossível de se esconder do
desejo. E, se o convívio dessa rasura fala dos esponsais do censurado, ao
engendrar a aquisição da ferida negada imprime o que se quer dizer, ainda
que amordaçadamente velado.
Sei que despisto, que não me refiro exatamente ao que devo – porque ao
certo, era de X, era de sua ausência que devia falar... (DC)
Assim, o diário traceja o seu curso de despistamento, a sua inflexão
oblíqua. Fundação ilegível, X esboça o fato perverso por onde a voz da
consciência, fazendo-se legisladora, quer ser adaga do desejo, mas não
pode podar a escrita que o determina. Nela a voz não foge inteiramente,
sussurra a marca cruel que se resolve na referência da letra cruzada. Mas
de que forma X ingressa na cadeia textual do diário, a ponto de transpirar
a pele de um discurso amoroso, na repetição de uma história de amor? Que
implicações X divulga no sentido de fabular um enredo, narrando-o no curso
dos “intermezzi” de um diário? X entremostra o “eu-da-escrita”, conduzindo
a fala do apaixonado. A partir dela, o texto-diário exibirá as ramagens de
uma “história de amor”, desde logo proferida como signo condenado a
conferir – na leitura de seu próprio relato – o percurso de uma
“enfermidade” na busca de “cura”. O alçamento dessa “pro-cura” entremostra
a culminância na decisão mesma com que o seu fraseado emite – na fenda do
próprio “delírio” – a sentença da “morte” de X. Assim, o intratexto
redigirá uma ária fúnebre.
Rompendo ontem com X, atingi o final de um movimento que vem caminhando
há muito tempo. (DC)
Foi morrendo aos poucos para mim, minuto a minuto, hora a hora, dia a
dia, (...) Sim ele morreu em mim de infindáveis mortes; ora através de um
tronco em que se encostara, e que perdera seu aspecto de magia para
transformar-se simplesmente em tronco ; ora através de um caminho do
jardim que esmorecia o seu encanto (...) para converter-se numa vereda sem
importância, que não me atraía mais. (CCA)
A intimidade dessa ressonância prescreve o “luto do amor”, os meneios do
“exílio do imaginário” (Roland Barthes, Fragmentos de um discurso
amoroso); aclimata o fenecimento do “eu te amo”, movendo o luto verbal,
justaposto às astúcias de uma prática que espalha/recolhe os ingredientes
discursivos de um trabalho de ascese, que sublinha a cena do golpe misto
da imagem de X como transtorno da própria escrita.
X é um nome completamente esquecido e eu trabalho sem descanso
procurando recuperar tudo o que perdi nestes últimos tempos (...) A minha
impressão é ter estado longamente doente e ter agora regressado à saúde.
(DC)
Só desconfio muito que também se morre de saúde. (DC)
Sob o selo do imaginário, X retorce sua situação cativa. Como o bilhete de
um amado voraz estala-se, exigindo sua admissão apaixonada, ainda que
tingida como fato póstumo. Emblema de amor e morte, acusado na reticência,
X – a letra cruzada – partilha da grafia do desvio, vinca uma dobra
singular no diário de Lúcio Cardoso: perfil de sua anatomia romanesca,
esgarçando o tecido do texto, lancinando ficções de páginas não escritas.
Como se sabe, o existir diário pensa o acontecimento da existência pelo
fragmento dos dias. Escrevendo o cotidiano, a composição do diário é
fracional. Dá-se pelo fragmento que relata, pelo curso do dia, a fração
existente do sujeito. Descrevendo a cotidianidade do “existo”, o sujeito
que mantém o texto-diário reata os pontos da fração; pois, contando o
tempo e se regendo por ele, mostra-se faticamente na dimensão de “ter” ou
“não ter tempo”.
Não há possibilidade de nos escondermos com nossa impaciência e
misérias cotidianas. Somos, enquanto duramos. (DC)
...porque a vida se esgota, desaparece implacável no contra-gotas do
tempo. (DC)
Pela constância com que o tempo passa, o diarista madura a experiência de
descrever o seu desaparecimento. Do leito interior do sujeito provém e se
move a marca de destinação frente à conquista que executa o advento de sua
temporalidade: ...somos uma conquista que se multiplica através dos
minutos, que se afirma e também se esgota... (DC). Requisitando a
composição do “dia a dia”, a referência dessa conquista, que se afirma e
se esgota, desdobra a fração de seu acontecimento. Na irrupção do
fragmento, o texto-diário faz emergir o estatuto de tonalidade da gama de
sua composição: É talvez o que se chama viver o “dia-a-dia”, compor o
cotidiano – ou melhor, extrair dos fatos toda parcela de grandeza, toda
possibilidade de tragédia ou de aventura... (DC).
Percebendo a dimensão finita de sua temporalidade, pela condensação do
fragmento, o diarista adensa em si a experiência que o percorre acabando:
...pois devemos ser tudo ao mesmo tempo, sem sermos definitivamente
coisa alguma. (DC). Na manobra do acontecimento desse “tudo” e “coisa
alguma” , o tempo-diário desempenha a medida exata da disposição de sua
decidida frase, impelindo o seu aparecimento na condição do chamado que o
percebe.
Em maio de 1950, Lúcio Cardoso anotou; Não sei quem inventou o diário
íntimo, que alma tocada pela danação e pelo desespero do efêmero (...) Ah,
como mudamos e como mudamos depressa! (DC). O sopro que expande a
vivência de tal enunciado parece querer restituir o sinal mesmo que cerca
o seu apagamento. Interpela a ausência, buscando vigiar o contorno de sua
emulação, para admitir adiante: Escrevo – e minha mão segue quase
automaticamente as linhas do papel. Escrevo – e meu coração pulsa. Por
que escrevo? (...) Escrevo apenas porque em mim alguma coisa não quer
morrer e grita pela sobrevivência (DC). Assim, o diário mostra como o
“sujeito” é marcadamente um corpo-fala(do) (Lacan, Escritos). Corpo que o
tempo silencia e faz putrefazer, prescrito na dimensão de um suporte que
se recusa a doer, sangrar, definhar e morrer (Wilma da Costa Torres, A
psicologia da morte). Na “des-realização” do próprio corpo-fala(do), o
diário persegue a prensa do corpo-textual. Insistindo no truque de “ser
mais”, ele escorrega, numa caixa de eco, as ficções do desejo de ressoar.
Volto a este caderno como quem persegue uma sombra. Para me readquirir,
para me reajustar... (DC). A tônica dessa diligência conclama a
vontade de tomar forma no esconderijo da palavra e dele dizer “não saio
daqui”. A miragem-fantasma do corpo ajusta-se à persistência na trama do
corpus; desse modo, como “re-feitura”, a escrita do diário é nariz-de-cera
que se resolve pelo deslocamento de idéias equacionadas como “anagrama do
corpo”.
Aqui estou eu, como diante de um espelho. Minha imagem inteira se
projeta – um esforço apenas deteriorado por todas as espécies de sonhos.
Sinto-me de pé à espera da transformação – sei, sei, dolorosamente que me
transformarei – e enquanto isto ouço escorrer dentro de mim este sangue
escuro feito pelos detritos de tudo o que amei, de tudo o que concebi e
que supus mais alto. (DC)
Tramando essa conduta protonarcisista, o diário revista a sedução de uma “erotografia”,
onde o alongado da frase requinta o aposento do discurso, na atração de
uma intimidade pela qual o corpus, além de serpentear o prazer da gulodice
do próprio léxico, saboreia o imaginário que acolhe o regime ardente de
sua “cativação”, para daí tornar mais espessa, no circuito da escrita, a
encenação de seu desejo. Portanto, se cabe a “Tânatos revelar o sentido de
Eros como aquilo que resiste à morte” (P. Ricoeur, Da interpretação,
Ensaio sobre Freud), a ação que emancipa toda sexualidade ladeia a
participação de toda forma de acabamento: Não foi apenas todos os sexos
que Deus me deu: também todas as formas de morrer. (DC)
Se o anúncio da escrita sentencia a dicção do desaparecimento da fala (Derrida,
Gramatologia), a escritura estenderá a confirmação de um cadáver. Tornando
legível a “cena testamentária” que se avizinha da condução fúnebre desse
testemunho, o diário convive com o estado malogrado da morte; convivência
cuja condição executa a procura de se “salvar” do efêmero, movendo um
longo olhar ritualizado como reaparição suntuosa de um brilho continuado.
Pelejando a caça do tempo-(do)-morto, autorizando e autorizado pela dobra
do dia, o diarista quer prolongar sua aventura, persistir sua demora no
giro da palavra. Assim, seu discurso tenta comparecer através das
articulações do registro que protagoniza em si a própria platéia,
almejando reproduzir-se como esforço da procura de si mesmo, ao mesmo
tempo que do objeto constituído na linguagem como complemento, buscando
conferir o lugar de ausência que somente a escritura tem por função
preencher, pois, no limite com que é discurso, crepita no diário a miragem
de ser texto.
Atividade que supre dimensão de preenchimento, a escritura é tecido onde
se dá o vai-e-vem do desejo (Jean Starobinski, La relation critique). O
vai-e-vem que trama a tessitura do diário tem por medida a insistência
especular do discurso na perseguição da própria voz. Persistindo, o corpus
estende o dedo que o indica. Eco introduzindo a pulsão na fatura que o
“palavreie”, trilhando, na pele da linguagem, a temperatura que ela mesma
comanda e provoca, reveste e designa, camaleonicamente. Nessa tomada, o
corpo-fala(do) deseja transpirar pelo calor da escrita, a busca de seu
viço, imaginando a sentença do próprio enrugamento.
Cada dia anotado é um dia preservado. Operação duplamente vantajosa.
Assim vivemos duas vezes. Assim defendemo-nos do esquecimento e do
desespero de não termos nada a dizer. (DC)
Encarniçado em não se deixar furtar, o diarista opera a anotação dos dias
como encalço lutuoso do tempo. Ao escrever o seu “deixar de ser”, ele
deseja re-tecer o domínio usurpado, impedir a ocorrência da
desapropriação, numa vigília que agencia a dicção do furto colada à
trapaça de seu adiamento. Nessa investidura, tece-se a metáfora que
regressa os dias (“nos dias do diário”), deslizando, na data, a encenação
de uma récita por encravelhar, como se – ao adular a cursividade de seu
destino – pudesse domesticar o fim no adestramento de seu alcance. Num
jogo que corteja a morte, o traçado do discurso busca irrigar o desvio de
sua armadilha, experimentando a mise-en-scène de um autopanegírico,
erigindo no calendário a fronte de clow com que se diz escrever
desculpando-se por “matar o tempo”.
Aspirando a citação de um sopro-adiante, o diário quer o discurso
projetado, estendido na redação que responde “sim” ao seu desejo. Na
camada do corpus, reproduzir os maneios da fala, mais do que dobro, como
transbordamento; onde o “sujeito” se motive pela grafia do olho que a
preserva, onde a escrita – espreitando o “sujeito” – se fará tarefa de uma
clivagem por meio da qual a cópia seduz a matriz a se introduzir na
“coqueteria” do signo e por seu intermédio continuar respirando, como
escarva que encoraje um fio-liame no restauro de um destroço reservado à
honra de um reaparecimento, ainda que ingenuamente arfante: Será este
“diário” um dos caminhos por onde recuperarei o que tenho perdido
ultimamente, com tanto descaso, como se tivesse um fundo inesgotável à
minha disposição ? (DC).
O diário de Lúcio Cardoso dispõe-se a erguer seu sopro pela “baba
escrita”, pelo traço exibidor da parte preciosa que alonga o “sujeito”,
espalhando sua pronúncia, como fração-diária que se expande e procura
continuidade. Tratando de cumular a ocorrência do prolongamento, ele passa
a enunciar o detrito contemplado, fragmentos no exercício da fala-diária,
frações da “escatologia cotidiana”.
Sobre esta face pálida, sobre este ser oculto e fremente, sobre este
destino excrementicial. Nada renego da minha natureza, porque daquilo que
me faz, de merda e sangue, construir-me-ei definitivo e avaro. A mim os
lobos e os falcões, a mim os corvos e as bestas restejantes. A mim tudo
aquilo que consigo transformar em voz. (DC)
Reescrevendo o corpo-fala(do), o diário construirá seu título pelo “livro”
que veste a capa do nome próprio, peso que denuncia um corpo e ostenta a
insígnia especular que efetua a assinatura de sua apropriação: Não sei
em que espécie de espelho te reconheceste – há sempre um – erguido e
atento, à espera do rosto entre certeza e esperança que sobre ele se
inclina – e não sei de que modo saudaste a outra face enfim que te
contemplava, enorme e eterna, e que desde então, imperial, ostenta o teu
nome e a tua consciência (DC).
Por outro lado, a articulação desse nome guarnece o regime do “ouvido
anônimo”, o desejo do sopro, escavando a experiência que o refaça na
lâmina da leitura (“eis-me sob tua proteção”). Paixão por um outro sentido
que o recriará, por um outro corpo-fala(do) que “inocenteie”, na curvatura
do signo, a culminância de uma voz superposta, estendendo o olhar de “quem
me ler” sobre a palma da escrita, reorganizando o propósito que descreva a
conjunção capaz de “integrar meus fragmentos”: Escrevo para que me
escutem – quem ? um ouvido anônimo e amigo perdido na distância do tempo e
das idades...- para que me escutem se morrer agora. (DC). A convocação
desse “ouvido anônimo” recircula o halo do nome-próprio do diarista na
encarnação da escuta de cada leitura, recolhendo digitais disseminadas ao
longo de cada página, tecidas como campo que anima o resgate
“contemporaneizando seus sinais”, ainda que tomando as idéias do fraseado
terminal do diário como “hiperminésia faladora”: (...) um processo de
defesa onde entra muito desse instinto de conservação que faz certos
doentes graves se apegarem a pequenos detalhes da vida... (DC)
LUIZ EDMUNDO BOUÇAS
COUTINHO é professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da
UFRJ, onde desenvolve intenso trabalho sobre o decadentismo. Criou e
coordena o grupo de pesquisa Estéticas de Fim-de-Século, além de ter
organizado os livros O Labirinto finissecular e as idéias do esteta e Arte
e artifício: manobras de fim-de-século.
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