revista

 

editorial

e créditos

outros

números

envio

de material

editora

cartas

dos leitores

links

contato

 

 

 

 

 

 

 

 

maurício chamarelli


os últimos anos de Sibila

 

 

 

Segundo me foi dado coletar de uma fonte
infimamente confiável, Sibila,
sacerdotisa de Apolo, a quem o deus concedera
o poder da profecia, pedira-lhe,
a certa altura da vida, o dom da longevidade.
O deus concedeu-lhe o número de anos igual ao
de grãos de areia que pudesse segurar, o que
não impediu que seu corpo não acompanhasse
esta longevidade e perecesse mesmo antes dela.
E mais: antes de sua voz.

 


I

Extremidades frias do meu corpo: a velhice. Não sei se me vem primeiro a perda de consciência dos movimentos, ou sua incessante repetição. Quando jovem, em cada curva, um dilema vital, em cada questão, uma resposta absoluta. Mas a maturidade antecipa a leveza de todas as coisas. Nada de veraz muda ou a atinge. Pisco os olhos e não sei se encontro o mesmo mundo à minha frente, ou se escorrego cada vez mais rápido colina abaixo. Não sei sequer se lamento.
 


II

O peso dos anos, a solidão. Porém, mais do que tudo o silêncio. Eras ela silenciou solitária. A princípio falava consigo. Depois, resguardava ao pensamento a honra dos ainda-não-vocábulos. Até que, afásica, arrastava-se pelo mundo aonde as palavras não chegam. A mesma casa, mas já não mais casa. O mesmo tempo, mas já sem a interpelação ininterrupta de t-e-m-p-o: palavra tempo. O mundo não – mundo – .
 


III

Cabelos rarefazem-se. Costas se curvam. Quase como se, finalmente, entendesse a vida e agradecesse a ela. Como se caísse o pano e soassem os aplausos. Como se, curvada em reverência, me fosse dado aceitar a fatalidade. Pois bem: a vida nos dobra, nada mais. Pouco a pouco desfaz-nos de armas e palavras de injúria. E cala-nos. Calei-me. E comigo o mundo.
 


IV

A velhice: o valor dos rituais. A repetição incessante: comida ao gato, água às plantas, sabão às roupas. A total automatização de cada ato: a inconsciência. A mesma vassoura, todo o dia, no mesmo azulejo até que se removesse toda a distância entre azulejo e vassoura. Até que já não mais se fizesse necessária a ótica peculiar de – vassoura – e de – azulejo – . Até que não mais se impusesse, entre a mão e o cabo de madeira, a palavra vassoura. Ou mesmo a palavra mão, ou mesmo madeira.
 


V

Olho pela janela. A cidade, profusão incessante de nomes. Que verbos me fazem? Me diluem? Viadutos, carros: nomes. Silêncio. Ninguém está em silêncio ou no escuro na cidade. Há! Mesmo na casa, o gato, no campo, batidas de coração. A vida exalta a si mesma com a música e exala seu silêncio em luzes. Sua escuridão em vozes. E sua afasia em nomes.
 


VI

Até que um dia voltou. Pouco a pouco, as palavras retornaram. Mas não todas. Algumas levaram anos. Para voltar a serem ditas. E ainda certas palavras não voltaram. Não voltaram nunca – inomináveis? Mas mesmo as que retornaram, ressurgidas de abismo quem-sabe-quão-profundo, traziam consigo qualquer coisa de diferente. Um certo frescor de novas.
 


VII

Me observava. Cada movimento. Como se pronto a reagir. Mas ainda assim mantinha a autonomia e aparentava calma. Levou umas duas linhas no livro da vida para que se tornasse um gato. Sim, algo a que se pudesse chamar gato. Primeiro tinha de decidir-se por patas. Dianteiras. Traseiras. Um tronco, um rosto, orelhas. Entranhas etc. E cor. Pois bem: um gato. Eu mesma o experienciara momentos antes. Não. Não há nada mesmo de engraçado. O braço ainda não braço a transpirar as sílabas bra. Ço. A mão a lembrar-se de que já foi um dia mão. E eu, entre soluços, engasgos. Suando. Tremendo. Eu podendo soar eu outra vez. Imaginar eu, dizer – eu – .
 


VIII

Algumas palavras não voltaram. Algumas coisas ficaram sem nome. Mas outras que talvez precisassem destes. Como por exemplo o ato de alimentar o gato. Ou virar a água da tina no tanque ao tirar do molho as roupas. O espaço que a pele enrugada, sobrepondo-se, sufoca e obscurece. A marca dos óculos nas laterais do nariz ou a envergadura da alma para suportar o peso dos anos. Ou o ato de voltar. De soar eu outra vez, de transpirar sílabas: sibilar.
 


IX

O mundo fluir o mundo em palavras. Dar nome a rostos que nunca nascerão. À minha volta dançam palavras sem qualquer significado. Nomes irreferenciáveis, verbos impossíveis. – O que virá e o que passou se encontram no compasso oracular da minha música: no raso verbo da voz só há tempo para dizer o que passa. Coisas mortas. Vivas. Desbravar sem trilhas ou bandeiras: marcar talvez o caminho com pontos parágrafos. E recomeçar.
 


X

O entorno transpira – parede – . O embaixo soa – chão – . O mundo reivindica de novo seus nomes, como o gato. Mas é pouco. Sibilavam, por exemplo, coisas impossíveis. Não mais o gato, mas – gato – . Não mais a porta, mas – porta – . As palavras tomavam vida própria. É mais: o mundo não voltaria jamais a ter nomes. As coisas não voltam mais a ter nomes. Os nomes voltam.
 


XI

Sinto-me a boca transbordar mistérios. Desfoquei o mundo, desci às profundezas do pensamento e encontro-me irremediavelmente viva. Sinto em mim pulsar qualquer coisa. E na garganta – garganta qualquer – a vontade de cantar! Não, não virão mais injúrias! A vida também chora quando soa a morte! O derradeiro golpe da foice não é a fatal negação aos mortais, é a vida a dobrar-se aos seus próprios desígnios. É ela que a si mesma impõe limites, que consigo mesmo se concilia. E mesmo assim em nenhum momento o mundo se entristece.



XII

Seu corpo deteriorou. Os anos soaram seus gongos e levaram o gato. As plantas. E tudo mais se esvaía. Algumas coisas já haviam morrido e seus nomes ainda pairavam irreferenciados; enquanto outras viviam, solitários corpos sem nomes. E todas as coisas se faziam ouvir por Sibila. E sua voz viveu para além de seu corpo. Em seus últimos anos ela foi somente voz. E quando o proprietário adentrou o apartamento com a moção de despejo, ainda soava um leve sussurro no ar. Como se as paredes, e o chão, e o tapete, e os quartos, sibilassem. Como se uma voz, uma voz somente, se quisesse fazer ouvir.
 

 

À minha bisavó Angelina
e seu silêncio que tanto me custa ouvir.


 

MAURÍCIO CHAMARELLI é carioca, estudante de literatura na UFRJ e de música na Escola de Música Villa-Lobos. Entre outras coisas, tem a cara de pau de admitir que participou do projeto Arranjos para Assobio, da UFRJ, até 2004. Esta é sua primeira publicação não acadêmica.

 


 

voltar ao índice | imprimir

 

 

confraria do vento