|

|

guilherme zarvos
tempos modernos
Muitos anos depois era hoje, não sei quanto tempo depois de hoje: - Então,
Luciana, já não basta o cãozinho fosforescente que papai lhe comprou. Você
não gosta deste modelo que não troca de cor. Mas a raça é a sua preferida.
A mistura com carneiro e coelho é deliciosa. Que bichinho fofo. O quê?,
está bom, você já não gosta da palavra fofo. Eu sei, eu sei, você já está
enjoada do cãoneilho. É assim que se fala? Minha querida, não seja tão
rabugenta. Não tenho todo o dinheiro do mundo para aquele que dá para
trocar de cor com novas operações. Ainda mais você querendo o com calda de
pavão. Tudo é muito caro. O doutor falou que está pronto, quer dizer,
quase pronto, melhor ainda, em fase de pesquisa, adiantada, ouviu? Um
futuro cão que cantará ópera. Esse eu trabalho um ano para ter. Claro que
vai ter um que canta rock and roll. Trabalhe. Seja alguém na vida. Junte
seu dinheiro. Ele pensou com tristeza no sonho da sua amante que é comprar
um pau vivo. Seria feito através da diminuição de um homem tornando-o tão
diminuto que apenas sua parte preservada em tamanho natural e enrijecida,
o pau 24 horas, seria visível. O ex-homem inteiro, com cérebro e mãos de
macaco agora reduzido ao tamanho que cabe dentro do saco. Homem líquido.
Saco grande. A comida do ser-pau seria dada por injeção: - É só fantasia
meu bem. Faz vem-vem que vou -! A boca em bico da amante é um figo, lembra
o pai: - Você pode ter sua mulher-boceta. Não me importo. Te amo. É
questão de independência e você sabe que não gosto de trair. Só traio meu
marido com você. Não quero homens falando no meu ouvido. Você tem de se
modernizar. Ele vai ser tão gostosinho. Quando ninguém estiver olhando
dormirei agarrada com ele. O perigo é se esmago o coitadinho -. Jorge sai
do seu pensamento na amante e começa a ouvir novamente sua filha: - Você
quer um irmãozinho verde fosforescente para combinar com o cachorro. De
maneira alguma. Menina mimada. Já temos nosso plano. Quando você crescer
eu e sua mãe já combinamos. Depois dos quarenta ou cinqüenta, os óvulos
dela e meu sêmen já estão congelados, aí é a hora de termos seu
irmãozinho. Ele será nosso amor de velhice. Para sempre o nosso guri.
Sofrerá uma operação para que nasça com Síndrome de Down. Dizem que são
tão carinhosos. E nunca deixarão os pais. Guilherminho será nossa
recompensa para a velhice. Já o imagino levando tombos pela casa inteira.
Mais velho, nós três, sua mãe toda a hora fala, no inverno, na lareira,
nós três abraçados com a alegria de quem tem amor de verdade. Ah, os
humanos, nós mesmos sempre querendo fazer o bem. Cada um para si. Você
acha que estou filosofando demais? Fica tranqüila, filha. Tem horas que
não consigo. Eu preciso falar. É por isso que quero o Guilherminho. Talvez
ele não possa entender tudo. Mas sei que lá no fundo vai entender muito
mais que imaginamos. O ser humano não necessita de muito raciocínio. O bom
é o sentimento. Mas tudo isto são palavras e sou de uma geração que
acreditava no pensamento para atingir a felicidade humana. Escuta, filha,
escuta, não vai embora.
GUILHERME ZARVOS é escritor, boêmio e articulador cultural, autor
dos livros Morrer, de 2002, e Zombar, de 2004, entre outros, e co-fundador, junto com o
poeta Chacal, do CEP 20.000, pólo cultural que, desde 1990, vem confluindo
várias gerações de poetas e artistas do Rio de Janeiro. Este seu conto é inédito e não tem
previsão de ser publicado em livro.
voltar ao índice |
imprimir
|