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a arte da astúcia | ricardo pinto


no hay banda

 


 

É preciso alguma insistência para se ouvir música entre o caldo de matéria e luz da cidade. Não basta escutar, ou se pôr a escutar ou qualquer coisa que o valha. Ao contrário, o ouvinte urbano necessita de alguma criatividade para rearranjar a cacofonia e aí encontrar as notas e harmonias. Que não estão lá de fato, obviamente. No frigir dos ovos, é mais uma questão de auto-ilusão que de sensibilidade. Ou algo mais, talvez.


Seria uma tarefa interessante, quase patafísica, para homenagear as Anas desta edição, descobrir qual o estilo da cidade, qual sua preferência. Os mais afoitos dirão que na Ave Maria teremos música clássica, na hora do rush um death metal ou talvez alguma coisa duodecafônica, Berg raivoso, e à noite, no sono ou no sexo, e considerando as preferências nacionais, Zezé de Camargo ou Roberto Carlos, etc. Bobagem, músicas, músicas, músicas. A música da cidade não se revelaria de forma tão simples, e não creio que seria alguma coisa que poderíamos relacionar com qualquer cantor que já viveu. Pareceria, talvez, os sussurros que um paranóico ouve, ou qualquer linguagem distante que nos alcança às vezes no limiar. Música de instrumentos desconhecidos, de compositores invisíveis, e assim, sem sujeito, nos daria alguma noção do que seja a experiência urbana lá nos seus profundos. Supondo, de fato, que houvesse música ao fundo para além de nosso próprio engenho.


O inferno dos infernos da cidade, oh, imagem precisa. No hay banda, y aún... Mesmo assim há o desejo da música, quase sua necessidade entre o silêncio desconexo, desonroso que as cidades brasileiras produzem com seu incessante barulho. O desejo do contrário desta desonra, que é uma declaração ou uma esperança: por trás, por baixo, por dentro, para além do espaço confuso colonizado pro nossos vários fracassos deve haver um pequeno foco de insurreição, música-música, alguma maravilha, como ingleses tocando bem o blues ou o homo tropicalensis Villa Lobos sonhando com Bach. Arquitetura, finalmente, arte edificatória.


E simultaneamente a percepção do absurdo dessa pretensão à música. Se há música, eu suponho que teria de deixar de ser ateu, nem que fosse para adorar algum tipo de consciência coletiva, o que seria um problemão para mim (uma questão marginal: não é propriamente um pós-morte aquilo que angustia, mas sim a possibilidade de já estarmos no inferno; como Rimbaud sacaneando seus leitores: estive no inferno e voltei aqui para baixo). Enfim, se eu deixasse de ser descrente meu mundo se desfaria. Mas, esta é uma questão para mim. A maioria das pessoas não teria problema em supor um sentido e uma música das esferas, ainda que dificilmente esta música fosse o que elas esperariam. Mesmo assim, me pareceria absurdo um absoluto do real. Mesmo a História.


Por outro lado, uma música que nascesse apenas de mim mesmo seria tão frágil que não valeria nem a descrição. Possivelmente, não valeria nem uma sessão de análise, ainda mais uma pauta. Poderíamos ter talvez varias músicas, construídas através de diálogos contínuos entre as pessoas, etc, etc, mas, convenhamos, isto soa como uma desmoralização tão ampla do sublime que, por mais racionais que sejamos, nos recusamos a pensar assim, nem que por teimosia. Enfim, de volta à aporia.


Se resposta há, creio que ela tem a ver com as festas da paixão e do riso, que não têm a pretensão de dominar o mundo, mas tampouco se limitam a mim e a meu vizinho. Pena que mesmo este território esteja sendo aos poucos consumido pelas mil mortes que nos cercam. E temos jovens de 18 anos mais reacionários e apagados que seus pais, e lágrimas e risos contidos para as tragédias cotidianas. No embotamento geral dos sentidos, encontramos talvez o índice mais direto de nossa carência.


Sempre penso no quanto estes territórios da sensibilidade já foram desgastados e no que ainda sobra para nós que ainda vamos ter de viver mais 50 anos aqui, boca bajo do inferno. Não gostaria que sobrassem apenas litanias e lamentos, que a parte sobrante fosse apenas a de Saturno. Vigor, tesão, riso não são palavras que pertencem apenas às propagandas de cerveja, ou a qualquer outro veneno tímido que nos empurrem. Deveriam circular ainda por nosso sangue, permitir o dançarino da beira do abismo, talvez fazer chover. Mas nada disso virá tão cedo, nem virá sem esforço. Como para escutar a música é preciso alguma criatividade, para preservar o riso é necessário luta. Deveríamos talvez imitar Adriano, animula, vagula, blandula..., sempre lamentando o perdido, sempre fazendo um esforço para lembrar por que o lamentamos, nós, que por estarmos no inferno, ainda não descemos ao inferno.


 

RICARDO PINTO é poeta e escritor, ou quase. Atua como professor, edita a revista Confraria e é sócio da editora Confraria do Vento. É mestre em Literatura Comparada e teve alguns artigos e poemas publicados em sites e revistas, assim como um livro de poemas Amar-o-mar e Outros Poemas (2000).
 


 

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