revista

 

editorial

e créditos

outros

números

envio

de material

editora

cartas

dos leitores

links

contato

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

elie cohen-gewerc


o conceito de felicidade na Nova Era do Lazer

 

 

 

Só há um dever, o de ser feliz.
D. Diderot



O homem vê o pássaro levantar vôo elegantemente para longe do limitado chão da vida humana. Ele o vê planando em paz, tão afastado dos problemas terrenos.


Como pode o homem, preso em suas particularidades, evitar a partida de sua alma após os movimentos brilhantes do pássaro?


Liberdade! Vamos buscar a felicidade!


Que ânsia! Que perplexidade!


O homem trabalha tanto, se sacrifica tanto e paga um preço caro quando se rebela contra decisões dois pais, professores, patrões e seus empregados que o impedem de alcançar a felicidade.


O homem não percebeu ainda que a real submissão (escravidão) é de suas crenças, de seus preconceitos, e das resoluções que determinam sua própria vida.


Como o pássaro que se lança fora do espaço limitado que garante abrigo e comida, o indivíduo percebe as perspectivas daqueles ao seu redor como grades de uma gaiola mental que proporciona uma confortável mas inútil existência.


O importante aqui não é o pássaro, mas a idéia de interioridade. É uma responsabilidade humana oferecer a essa interioridade a possibilidade de alçar vôo sobre a vida comum onde ele só ostenta; é a existência resgatada em tempos de hipoteca.


Então, lá no alto, quando ele alcança a liberdade, ele vai descobrir, no quintal do seu ser, os espaços inexplorados de seu potencial próprio.


Voar para nós mesmos: essa pode ser a grande lição do pássaro que voa através do quintal de nossa vida.
 


Abstract

Entrando na “Era do Lazer”, veremos o quanto é forte a procura da felicidade, questão que tem agora total legitimidade em nossas sociedades, e até se tornou uma questão de marketing.


Para entender o que está havendo nós temos que lembrar que na sociedade homogênea e bem estruturada, o indivíduo sente-se feliz quando aprovado pelas hierarquias importantes. Nesse contexto, durante a Era do Trabalho, ter sucesso sendo um profissional louvado poderia ser uma boa base para alcançar a felicidade.
Hoje, quando critérios nítidos não estão mais disponíveis e até os grandes valores conquistados no campo profissional ameaçam desaparecer, o indivíduo deve buscar a felicidade em uma nova direção. Agora a felicidade pode aparecer apenas graças a recursos particulares.


Essa busca pela felicidade pessoal e individual é um subproduto das mudanças econômicas, sociais e culturais desse período de transição entre o fim do trabalho e a nova Era do Lazer.


A proposta de um Estudo do Prazer deve chamar a atenção para como nós podemos converter tempo livre em um estado mental de prazer, e transformar o simples bem-estar em felicidade.


Essa pode ser a grande oportunidade e a grande contribuição dos Estudos do Prazer.
 


Introdução

“Ser ou não ser”, perguntava-se Hamlet, como fizeram muitos outros em qualquer lugar, ao longo dos séculos. Hamlet não tinha qualquer problema com a existência, mas sim com o sentido da existência.


Dia após dia, as pessoas estão expostas à perturbadora questão: “O que estou fazendo aqui?”. Pior ainda, elas perguntam: “Para onde estou indo?”. Estas intensas questões são uma significante expressão do anseio de felicidade. Esperançosamente, alguém percebe que há uma vida alternativa e que está sendo carregado para além de sua existência física e do peso de seus passos, para sonhar com a aparição de um pássaro. Um sonho é algo desconectado de uma realidade que, por séculos, está afundada em uma vida sem alternativas.


Conseqüentemente, por gerações, o tempo individual está emaranhado no direito de sobreviver em comunidade, e se esperanças surgem, geram imediatamente esperanças perdidas, como alguém que espera eternamente ganhar na loteria.


No entanto, nas últimas décadas, muito tempo tem sido liberado de uma agenda e de uma monitoria rígida. A percepção da vida está mudando para algo que proporciona novas formas de tempo, algumas delas ainda hipotecadas, algumas já liberadas e outras totalmente livres. As pessoas descobriram que são seres individuais e que comandam suas próprias vidas. Com a nossa passagem para uma nova era, que podemos chamar de Era do Prazer, o indivíduo tem a possibilidade de compreender a essência do tempo.


A percepção do tempo é a percepção da vida. A percepção da vida inclui diferentes níveis de indagação pela felicidade; uma busca que é inerente a cada pessoa, naquilo que tem de humano.


No pouco tempo que temos aqui, tentaremos elucidar os conceitos de tempo e felicidade, e sua relação com o processo no qual encontramos nós mesmos, entre a Era do Trabalho e a Era do Prazer.

 

I – Tempo

O tempo é um recurso de infraestrutura para o ser humano porque permeia todo o curso de cada vida, durante a qual ele deseja experimentar a felicidade. Vamos diferenciar tempo hipotecado, tempo liberado e tempo livre, que são três perspectivas centrais de vida.


Vamos começar esclarecendo que a realidade nunca foi unidimensional e que as pessoas vivem no mesmo período cronológico, mas em paralelo, em “diferentes períodos”. No século XVIII, pequenos grupos na Europa se deliciaram com os incríveis benefícios do Iluminismo, enquanto, ao mesmo tempo, as massas viveram nas crenças e comportamentos da Idade Média. Hoje podemos também diferenciar sistemas de percepções, crenças e costumes que atuam desenfreadamente, no mesmo palco, e que ocasionalmente entram em conflito – e aqui está a inovação de nossa era.


Embora alguns definam isso como multiculturalismo, eu prefiro falar em diferentes esferas de percepção do tempo e significado de vida. No ocidente, onde a cultura dominante parou de ostentar sua superioridade, as percepções se cruzaram, se combateram e criaram sombras umas sobre as outras, mas aqui e ali também se iluminaram na névoa dos conceitos necessários para um constante esclarecimento.
 


II – O Fim do Trabalho, Princípio da Era do Prazer

Quando dizemos que estamos no fim da era do trabalho, isso não significa que o indivíduo não necessita ter uma ocupação e desenvolver uma carreira profissional. O fim da era do trabalho significa que a ocupação e o trabalho deixaram de ser o essencial ou mesmo o foco através do qual as pessoas interpretam a maior parte de suas existências.


Na era do trabalho, a ocupação e o trabalho davam ao indivíduo sua identidade e lugar no mosaico social. O trabalho era onde o indivíduo podia acomodar-se em uma área segura. Achava-se importante permanecer no mesmo trabalho até a aposentadoria.


Hoje, sabemos que nenhum emprego pode oferecer estabilidade e todo jovem sabe que vai enfrentar várias mudanças de trabalho, talvez passar períodos desempregado, e fazer transições profissionais de uma área para outra.


Para entender o processo que está ocorrendo, vamos usar uma analogia com o que aconteceu com as mulheres durante a segunda metade do século XX. Até ali, e por muitos séculos, as mulheres foram vistas pelos outros e por elas mesmas de acordo com o lugar específico e central que elas possuíam na família, como esposa, mãe ou dona-de-casa.


Embora hoje a maioria das mulheres continue – com uma ou outra forma de ajuda – a administrar a casa e a cuidar dos filhos, elas não são mais identificadas somente por isso e de fato procuram sua auto-imagem em um horizonte mais extenso, principalmente na área profissional. A casa, que era antes todo o mundo da mulher, agora é apenas uma parte de sua vida. Da mesma forma, os profissionais de hoje procuram alargar os limites de suas identidades além de suas profissões. A Era do Prazer paira em suas consciências, embora seja ainda vaga.


O lugar do trabalho na vida, e não o contrário, é possível devido aos crescentes segmentos de tempo que são liberados daquele que se costumava ocupar. Podemos comparar a semana de trabalho de 35 horas de hoje com a de 50 horas, como era comum nos anos 50 e 60.


Vamos voltar e enfatizar que tempo livre não é lazer, e que para a maioria das pessoas, esse tempo é ainda tempo livre, que de algum modo está em suas mãos. O tempo liberado acontece independente da vontade individual, ao contrário do “tempo livre”, que é uma conquista pessoal.


Tempo liberado pertence ainda à Era do Trabalho, enquanto o tempo livre tem o aroma da nova era do lazer. Aqueles que atentaram para essa nova era, sabem que o espaço de lazer é um campo no qual pode-se descobrir personalidades e individualidades. Gradualmente, o “fazer” do lazer é uma substituição na consciência individual daquilo que antes se pensava obter primordialmente através da ocupação profissional; isto é, pela coesão e identidade.


O espaço do lazer convida o indivíduo a experienciar sua particularidade. Aqui se está apto a descobrir que uma identidade não pode ser apenas uma identidade “pronta para uso”. O lazer como um estado de mente permite não apenas se descobrir a singularidade, mas também encontrar variadas maneiras de realizá-la. Se na era anterior, o principal era a conquista visível e a manutenção dessa realização, nesta nova Era do Lazer, o principal é a descoberta. Desse ponto de vista, o indivíduo que foi bem sucedido ao transformar seu tempo em tempo livre vê tanto trabalho quanto profissão apenas como um espaço de desenvolvimento pessoal. Estamos falando de preenchimento de todo o ser, em todas as suas possibilidades de performance e observação.


No espírito da nova era do lazer, alarga-se a percepção da vida real nas personalidades e em seu redor. Essa visão não se origina da perspectiva de funções sociais que identificam e que são identificadas, mas de dinâmicas individualistas que não cessam de descobrir as muitas faces dos contatos proveitosos em todos os aspectos da existência.


Então, a vida não é apenas um estreito caminho de funções definidas, onde o indivíduo é muito cuidadoso para não bater com cabeça. Na Era do Lazer, vemos que a vida amplia os horizontes. Deste modo, o indivíduo, cheio de sua variada internalidade, e livre de uma identidade limitadora, pode exercer muitos papéis sem vir a ficar preso em nenhum deles; pode mergulhar e se identificar com diferentes aspectos da existência sem estar dissolvido neles.


Nesta nova era, o mundo é ao mesmo tempo uma pequena cidade e um universo; o indivíduo sente cada encontro como uma revelação do mundo ao seu redor, mas também especificamente, como uma revelação de si mesmo.


A geografia humana está mudando. Ela não mais molda a personalidade, mas sim a pessoa cria sua própria relação com ela. O espaço não mais dita a identidade da pessoa, mas a pessoa reinventa o espaço.


O curso da vida nessa era pode ser uma grande e real jornada, na qual o destino não será mais o mesmo ponto de partida. Será uma jornada vibrante e voltada para qualquer direção e para o interior, nas infinitas perspectivas de sua personalidade. Será uma jornada não apenas na superfície da existência, mas também nas muitas concavidades escondidas em cada superfície; superfícies que oferecem repetidos e variáveis convites de tal forma que o bem-estar encontrado nessas concavidades de cada existência florescerá.


A história humana ensina que estes processos são pessoais e não automáticos.


Com as perspectivas abertas nessa nova e livre era, podemos diferenciar numerosos caminhos de processos pessoais. Muitos se sentirão perdidos, é claro, fora de suas rotinas e das estruturas onde têm se entrincheirado, e tentarão encontrar algum tipo de refúgio onde possa novamente se acomodar no conformismo. Para outros, isso tudo proporcionará felizes caminhos nos quais sua personalidade se desenvolverá e se satisfará com suas conquistas.


A Era do Lazer diz que as pessoas serão livres, o que significa orientar-se em um processo contínuo de busca feita em todos os lugares; esta é a busca da felicidade, é claro.
 


Felicidade

Embora tenhamos provas de que a busca pela felicidade tenha estado sempre presente nos pensamentos humanos, a contemplação ativa e a busca prática foram de modo geral prerrogativa de poucos.


É difícil falar de uma busca – que é sempre uma busca de uma alternativa para a realidade oferecida – na qual o destino pessoal parece ser parte integrante do destino coletivo, e na qual todo o tempo individual é hipotecado para garantir essa existência. E se considerarmos Cinderela, recordaremos que a aparição ou não-aparição do príncipe salvador não é definida nem por seus desejos de menina nem por suas ações.


Para o indivíduo hipotecado – hipotecados seu tempo e ele mesmo – para a comunidade e seu destino coletivo, a felicidade é um conceito reservado para outro mundo – talvez o “reino dos céus”, do qual o padre fala em seus sermões, onde cada um ganha um lugar como resultado direto do cumprimento satisfatório de todas as leis determinadas por sua fé. Em uma tragédia grega o herói, apesar disso, se põe de pé e se rebela contra seu destino.


Certamente alguns dirão que há alguma coisa de paz e até de felicidade na total aceitação de um destino. Entretanto, estamos então falando de aceitação por parte do indivíduo da existência sem uma alternativa possível, semelhante à aceitação do fato de não se poder voar.


Em um documentário sobre a tradição da circuncisão feminina, eu me recordo do semblante de espanto do entrevistador europeu que tentava entender como é possível que as mulheres desejassem levar suas filhas ao sofrimento. A mulher entrevistada respondeu sem hesitar, em uma serena aceitação: “Nós somos mulheres; nós nascemos para sofrer”. A declaração saiu da própria boca da mulher, embora fossem palavras de sua tradição e de sua tribo. O discurso estava nela, mas a responsabilidade era de toda a tribo.


Mas o que se dá com a aceitação, que parece tão familiar à felicidade, com o aumento de tempo liberado, quando preencher esse tempo não é uma predeterminação evidente? O indivíduo pode se assustar com esse vácuo que não possui exigências ou tarefas institucionalizadas, e é alheio à supervisão coletiva. O medo da falta de limites e direções mostra que o indivíduo encontra-se totalmente sob sua própria responsabilidade.


Com o aumento de tempo liberado, o indivíduo é “condenado à liberdade” e tende a sentir angústia, que é geralmente definida como depressão. “A depressão nos ensina sobre a atual experiência do indivíduo, pois é uma patologia de uma sociedade não mais baseada em culpa e disciplina, mas em responsabilidade e iniciativa” (Ehrenberg, La fatigue d'être soi).


Esse é o drama da pessoa desamparada, sem o apoio de estruturas essenciais de pensamento, e sem a supervisão atenta da comunidade; ou seja, sem responsabilidade social. Ela é condenada a ser apenas aquilo que ela consegue ser sozinha e descobre a escassez de suas ações em face às aparentes oportunidades ilimitadas. Como é difícil para a maioria dos indivíduos olhar para um espelho que reflete sua vida limitada quando os jornais e tevês falam de infinitas e tentadoras alternativas, nas quais a felicidade está ali na esquina. “Desejamos a felicidade com todas as nossas forças e ficamos desapontados conosco porque não somos bem sucedidos nisso. Odiamos nós mesmos e reclamamos da sociedade na qual vivemos” (Brucker, Le droit au bonheur est devenu un devoir).


Mas quem disse que o tempo liberado do trabalho e de vários compromissos pertence realmente a nós? Pode o tempo pessoal pertencer ao indivíduo quando ele não pertence a si mesmo?


Somente uma pessoa livre como La Mettrie acredita nisso: “Sem esperança e sem medo... que felicidade!” (La Mettrie, quotation by Neyme, Une morale de l'utilité). Livre dos atentos olhos da igreja, que tem esperança apenas no "reino dos céus", La Mettrie sente o alargamento do horizonte da existência universal e da fartura de suas capacidades humanas, que precisam se expressar sem distrações e sem medos. O indivíduo não está mais preso em um trem coletivo que o leva pelos seus trilhos para uma vida que tem sido determinada por ele; agora ele comanda o leme de seu próprio destino. A jornada pessoal pode começar.


As pessoas agora são livres para ouvir os chamados de diferentes tipos de busca por felicidade. Absolvição e aprovação não são mais apenas o resultado do cumprimento de uma função. E o que era apenas uma parada para renovar as energias físicas na era do trabalho, se tornará significantes períodos de tempo que precisam de atenção especial. Aí, nesse espaço externo às funções, ao contrário daqueles que olham apenas para aquilo que esperam, a pessoa volta-se para dentro de si e agora é livre para se tornar verdadeiramente estimulada por uma lenta observação das folhas caindo das árvores em uma brisa de inverno, para sentir a vibração das cores que enchem um pedaço de papel branco, para reparar na divisão de vozes de uma música, ou a magia de um encontro sem objetivos definidos...


Isso, é claro, é um processo pessoal, e podemos perceber seus vários estágios. Falamos aqui do sentimento de felicidade que é parte de algo que atribui valor à existência, por isso não discutiremos a perspectiva de Epicuro, da fuga de um objetivo para fugir do sofrimento. Porque ausência não pode ser presença; ausência é, como em uma imagem plana, monotonia, que promete uma calma sobrevivência, e apenas isso. A felicidade é cheia e não vazia; é presença e não ausência.
 


Felicidade de primeira, segunda e terceira ordem

A felicidade de primeira ordem é totalmente dada pelas forças que cercam o indivíduo. Os prazeres da existência são pequenas e desconectadas quebras em sua existência consumível, presa “em limitadas estruturas, onde ele se resigna a viver uma vida vulgar” (Gonzalez-Pecotche, El Espiritu). Somente quando o indivíduo não está mais satisfeito com essas quebras, e ouve as questões que vêm de dentro dele, e faz a pergunta “para quê?”, entra na segunda ordem de busca pela felicidade. Nesse ponto, o indivíduo atenta mais para suas aspirações humanas que transcendem os limites da necessidade, e fazem com que queira olhar para sua vida em sua totalidade.
A transição para uma busca pela felicidade de segunda ordem não é automática; é uma expressão da vontade e consciente determinação da parte do indivíduo. E essa transição para o segundo nível é feita por um processo de gradativo empenho que começa a brotar de um cultivo próprio. Em outras palavras, a segunda ordem de busca pela felicidade desencadeia uma batalha que a pessoa realiza em favor do desenvolvimento de sua consciência, cujos frutos serão a gradativa transição para a felicidade de terceira ordem. Esse é um processo que exige liberdade de pensamento e máxima auto-avaliação, elementos básicos que a Era do Lazer disponibiliza para as pessoas que sabem como utilizá-los para trocar o tempo liberado do campo do pragmatismo pelo tempo livre e que proporciona a criação; ou seja, quando o lazer não é encontrado mais apenas em uma agenda, mas está disponível para ser visto e ouvido atentamente na vida – e por toda a vida.
 


Lazer e felicidade

Em uma história curta, Kafka descreve um tipo de felicidade corporal causada por uma caminhada não planejada. Além do simples prazer das pernas ágeis do personagem, ele sente também que deste modo adquiriu a verdadeira medida de sua estatura.


Na descrição curta de Kafka, somos testemunha apenas de uma crescente energia que era forte o suficiente para ultrapassar a inércia interior e exterior que parecia bloquear a rotina daquela noite. Ele não nos fala do processo de amadurecimento da força interna que é necessário para arrancar alguém do destino que determina o tempo reservado para depois de se cumprir as tarefas diárias.


O que se diz normalmente sobre lazer leva-nos à idéia de que a percepção geral é que é quase um sinônimo de felicidade. Se considerarmos o conceito que existe na maioria das línguas de “divertir-se”, ele geralmente significa uma pausa ou um feriado que vem como uma luz no meio da neblina da rotina. É como a corrida estrondosa de crianças para um parque durante um recesso, umas curtas férias, ou uma pausa: o tipo de pausa que é cheia de exaltação e no tira da rotina hipotecada em uma vida inerte. Estamos falando aqui de uma busca pela felicidade de primeira ordem, na qual o indivíduo vive, de um para o outro, agradáveis e curtos momentos; um tipo de pequeno conforto para uma vida sem choques, que vão se dissipando tão rápido quanto apareceram. Essas são as alegrias que geralmente se busca, como por mágica, quando se olha uma foto e tenta-se convencer a si mesmo de que se passou por aquela experiência da qual uma simples foto faz lembrar.


Ainda apesar disso, estas podem ser memórias esporádicas que apontam para a possibilidade de uma outra vida; centelhas de força vital escondidas dentro das fôrmas de não-vida. Com o aumento dos períodos de tempo livre, quando vai além de uma pausa da qual o indivíduo volta exausto e indisposto, apenas para ser engolido novamente pela rotina, ele pode acordar para uma busca de felicidade de segunda ordem. Uma revelação, ou mesmo em um flash, de uma alternativa mais digna, desperta o desejo e alimenta as forças para pôr a felicidade nas próprias mãos do indivíduo. Este não busca nada mais do que usar seu tempo de vida em um prazeroso e efêmero caminho. Um desejo de algo além disso surge nele... Ele está à beira de perceber que a felicidade de primeira ordem não é mais suficiente.


Ao mesmo tempo, entretanto, não podemos ficar tentados a pensar que a Era do Lazer é necessariamente a era da felicidade; “a idéia de que ‘todas’ as pessoas irão se satisfazer com lazeres é apenas mais uma utopia...” (Yonnet, Travail, loisir, temps libre et lieu social). A era do lazer é uma oportunidade na qual se desenvolve um grande potencial da sociedade, mas é também, e numa maior escala, o risco de uma pavorosa brutalidade. Devemos lembrar que a liberdade significa escolha entra várias possibilidades, e que a natureza humana tem nos mostrado sempre que escolhas podem levar desde às mais iluminadas janelas até às mais tenebrosas profundidades.
Nem todos são capazes de despertar em si mesmos uma mudança consciente como fez o personagem do conto de Kafka. Entretanto, o aumento quantitativo do número de horas de lazer, junto com a gradativa seleção dos “estados de mente” da idade do lazer, leva mais e mais pessoas a prestar a atenção às vozes profundas que mostram um cansaço de prazeres passageiros sem aspirações a algo além disso. Para tais pessoas, a indústria do lazer, que geralmente conduz a esgotar o tempo, o dinheiro e as energias livres, não as satisfaz. Perplexas ao descobrir que tudo que era óbvio não é mais tanto assim, elas buscam pelo menos entender a si mesmas.


Aqui está o desafio real do estudo do lazer. Não estamos nos referindo a um manual de como organizar esse tempo. Estamos falando de uma fascinante oportunidade de ajudar o indivíduo que deseja fugir de um ciclo de consumo sem sentido e quer usar o recurso do tempo livre para ensinar a si mesmo a ter uma maior capacidade de ser feliz. O desejo escondido é ainda o de felicidade, que inclui não apenas experiências sensoriais, mas também seu desdobramento em experiências espirituais.


Por causa disso, a era do lazer abre horizontes individuais, que buscam responsabilidades individuais. “O tempo é uma invenção ou não é nada”, nos diz Bergson. Calmamente, visando o desenvolvimento, deve-se ter a habilidade de ver tudo o que é revelado aos olhos, os elementos disponíveis para uma variedade de possíveis combinações que não são conhecidas a fundo, mas que são resultados dessas escolhas. Para ver a realidade da vida como infinitas telas sobre as quais um sem fim de cores se encontram, sobre as quais pode-se criar uma multidão de sombras, nas quais decide-se concordar com esse desejo de crescimento e com sua evidente responsabilidade, aqueles elementos dos quais se constrói a vida; uma obra-prima resultante. Livre de estruturas anteriores, pode-se – se se quiser – não apenas conhecer a vida, mas também vivê-la.


Em outras palavras, a lição será acordar, tomar coragem e saciar a sede de sentidos; ou seja, o desejo de mudar a direção do olhar para a busca de uma felicidade de segunda ordem. Esse é um processo baseado em comprometimento total, ao lado da esperança consciente de que a habilidade de extrair felicidade de qualquer circunstância da vida eclodirá. Quando se descobre que o tempo é um recurso pessoal, fica-se consciente das qualidades e potenciais do lazer, cumprindo as prerrogativas que possui todo ser humano, recordando-se quem se é, e autorizando suas habilidades a encontrar a si mesmo em lugares desconhecidos para descobrir o significado de sua vida, e não será difícil dar como resposta, a respeito da questão de Hamlet, não apenas “ser”, mas também “ser feliz”.
 

tradução de Victor Paes
 

ELIE COHEN-GEWERC nasceu em Alcácer-Quibir, uma pequena cidade no Marrocos. É Ph.D. em Filosofia e mestre em Ciência da Educação pela Universidade de Sorbonne, além de graduado em História Geral e Cultura Francesa pela Universidade de Tel Aviv. Desde 2001 é professor de Ética no Beit Berl College. Até 2004 foi membro do comitê acadêmico para o Primeiro Congresso Mundial de Estudos do Lazer, em Köln. Às vezes desperdiça seu tempo livre escrevendo para revistas terceiro-mundistas como a nossa.


 

voltar ao índice | imprimir

 

 

confraria do vento