
elie cohen-gewerc
o conceito de felicidade na Nova Era do Lazer
Só há um dever, o de ser
feliz.
D. Diderot
O homem vê o pássaro levantar vôo elegantemente para longe do limitado
chão da vida humana. Ele o vê planando em paz, tão afastado dos problemas
terrenos.
Como pode o homem, preso em suas particularidades, evitar a partida de sua
alma após os movimentos brilhantes do pássaro?
Liberdade! Vamos buscar a felicidade!
Que ânsia! Que perplexidade!
O homem trabalha tanto, se sacrifica tanto e paga um preço caro quando se
rebela contra decisões dois pais, professores, patrões e seus empregados
que o impedem de alcançar a felicidade.
O homem não percebeu ainda que a real submissão (escravidão) é de suas
crenças, de seus preconceitos, e das resoluções que determinam sua própria
vida.
Como o pássaro que se lança fora do espaço limitado que garante abrigo e
comida, o indivíduo percebe as perspectivas daqueles ao seu redor como
grades de uma gaiola mental que proporciona uma confortável mas inútil
existência.
O importante aqui não é o pássaro, mas a idéia de interioridade. É uma
responsabilidade humana oferecer a essa interioridade a possibilidade de
alçar vôo sobre a vida comum onde ele só ostenta; é a existência resgatada
em tempos de hipoteca.
Então, lá no alto, quando ele alcança a liberdade, ele vai descobrir, no
quintal do seu ser, os espaços inexplorados de seu potencial próprio.
Voar para nós mesmos: essa pode ser a grande lição do pássaro que voa
através do quintal de nossa vida.
Abstract
Entrando na “Era do Lazer”, veremos o quanto é forte a procura da
felicidade, questão que tem agora total legitimidade em nossas sociedades,
e até se tornou uma questão de marketing.
Para entender o que está havendo nós temos que lembrar que na sociedade
homogênea e bem estruturada, o indivíduo sente-se feliz quando aprovado
pelas hierarquias importantes. Nesse contexto, durante a Era do Trabalho,
ter sucesso sendo um profissional louvado poderia ser uma boa base para
alcançar a felicidade.
Hoje, quando critérios nítidos não estão mais disponíveis e até os grandes
valores conquistados no campo profissional ameaçam desaparecer, o
indivíduo deve buscar a felicidade em uma nova direção. Agora a felicidade
pode aparecer apenas graças a recursos particulares.
Essa busca pela felicidade pessoal e individual é um subproduto das
mudanças econômicas, sociais e culturais desse período de transição entre
o fim do trabalho e a nova Era do Lazer.
A proposta de um Estudo do Prazer deve chamar a atenção para como nós
podemos converter tempo livre em um estado mental de prazer, e transformar
o simples bem-estar em felicidade.
Essa pode ser a grande oportunidade e a grande contribuição dos Estudos do
Prazer.
Introdução
“Ser ou não ser”, perguntava-se Hamlet, como fizeram muitos outros em
qualquer lugar, ao longo dos séculos. Hamlet não tinha qualquer problema
com a existência, mas sim com o sentido da existência.
Dia após dia, as pessoas estão expostas à perturbadora questão: “O que
estou fazendo aqui?”. Pior ainda, elas perguntam: “Para onde estou indo?”.
Estas intensas questões são uma significante expressão do anseio de
felicidade. Esperançosamente, alguém percebe que há uma vida alternativa e
que está sendo carregado para além de sua existência física e do peso de
seus passos, para sonhar com a aparição de um pássaro. Um sonho é algo
desconectado de uma realidade que, por séculos, está afundada em uma vida
sem alternativas.
Conseqüentemente, por gerações, o tempo individual está emaranhado no
direito de sobreviver em comunidade, e se esperanças surgem, geram
imediatamente esperanças perdidas, como alguém que espera eternamente
ganhar na loteria.
No entanto, nas últimas décadas, muito tempo tem sido liberado de uma
agenda e de uma monitoria rígida. A percepção da vida está mudando para
algo que proporciona novas formas de tempo, algumas delas ainda
hipotecadas, algumas já liberadas e outras totalmente livres. As pessoas
descobriram que são seres individuais e que comandam suas próprias vidas.
Com a nossa passagem para uma nova era, que podemos chamar de Era do
Prazer, o indivíduo tem a possibilidade de compreender a essência do
tempo.
A percepção do tempo é a percepção da vida. A percepção da vida inclui
diferentes níveis de indagação pela felicidade; uma busca que é inerente a
cada pessoa, naquilo que tem de humano.
No pouco tempo que temos aqui, tentaremos elucidar os conceitos de tempo e
felicidade, e sua relação com o processo no qual encontramos nós mesmos,
entre a Era do Trabalho e a Era do Prazer.
I – Tempo
O tempo é um recurso de infraestrutura para o ser humano porque permeia
todo o curso de cada vida, durante a qual ele deseja experimentar a
felicidade. Vamos diferenciar tempo hipotecado, tempo liberado e tempo
livre, que são três perspectivas centrais de vida.
Vamos começar esclarecendo que a realidade nunca foi unidimensional e que
as pessoas vivem no mesmo período cronológico, mas em paralelo, em
“diferentes períodos”. No século XVIII, pequenos grupos na Europa se
deliciaram com os incríveis benefícios do Iluminismo, enquanto, ao mesmo
tempo, as massas viveram nas crenças e comportamentos da Idade Média. Hoje
podemos também diferenciar sistemas de percepções, crenças e costumes que
atuam desenfreadamente, no mesmo palco, e que ocasionalmente entram em
conflito – e aqui está a inovação de nossa era.
Embora alguns definam isso como multiculturalismo, eu prefiro falar em
diferentes esferas de percepção do tempo e significado de vida. No
ocidente, onde a cultura dominante parou de ostentar sua superioridade, as
percepções se cruzaram, se combateram e criaram sombras umas sobre as
outras, mas aqui e ali também se iluminaram na névoa dos conceitos
necessários para um constante esclarecimento.
II – O Fim do Trabalho, Princípio da Era do Prazer
Quando dizemos que estamos no fim da era do trabalho, isso não significa
que o indivíduo não necessita ter uma ocupação e desenvolver uma carreira
profissional. O fim da era do trabalho significa que a ocupação e o
trabalho deixaram de ser o essencial ou mesmo o foco através do qual as
pessoas interpretam a maior parte de suas existências.
Na era do trabalho, a ocupação e o trabalho davam ao indivíduo sua
identidade e lugar no mosaico social. O trabalho era onde o indivíduo
podia acomodar-se em uma área segura. Achava-se importante permanecer no
mesmo trabalho até a aposentadoria.
Hoje, sabemos que nenhum emprego pode oferecer estabilidade e todo jovem
sabe que vai enfrentar várias mudanças de trabalho, talvez passar períodos
desempregado, e fazer transições profissionais de uma área para outra.
Para entender o processo que está ocorrendo, vamos usar uma analogia com o
que aconteceu com as mulheres durante a segunda metade do século XX. Até
ali, e por muitos séculos, as mulheres foram vistas pelos outros e por
elas mesmas de acordo com o lugar específico e central que elas possuíam
na família, como esposa, mãe ou dona-de-casa.
Embora hoje a maioria das mulheres continue – com uma ou outra forma de
ajuda – a administrar a casa e a cuidar dos filhos, elas não são mais
identificadas somente por isso e de fato procuram sua auto-imagem em um
horizonte mais extenso, principalmente na área profissional. A casa, que
era antes todo o mundo da mulher, agora é apenas uma parte de sua vida. Da
mesma forma, os profissionais de hoje procuram alargar os limites de suas
identidades além de suas profissões. A Era do Prazer paira em suas
consciências, embora seja ainda vaga.
O lugar do trabalho na vida, e não o contrário, é possível devido aos
crescentes segmentos de tempo que são liberados daquele que se costumava
ocupar. Podemos comparar a semana de trabalho de 35 horas de hoje com a de
50 horas, como era comum nos anos 50 e 60.
Vamos voltar e enfatizar que tempo livre não é lazer, e que para a maioria
das pessoas, esse tempo é ainda tempo livre, que de algum modo está em
suas mãos. O tempo liberado acontece independente da vontade individual,
ao contrário do “tempo livre”, que é uma conquista pessoal.
Tempo liberado pertence ainda à Era do Trabalho, enquanto o tempo livre
tem o aroma da nova era do lazer. Aqueles que atentaram para essa nova
era, sabem que o espaço de lazer é um campo no qual pode-se descobrir
personalidades e individualidades. Gradualmente, o “fazer” do lazer é uma
substituição na consciência individual daquilo que antes se pensava obter
primordialmente através da ocupação profissional; isto é, pela coesão e
identidade.
O espaço do lazer convida o indivíduo a experienciar sua particularidade.
Aqui se está apto a descobrir que uma identidade não pode ser apenas uma
identidade “pronta para uso”. O lazer como um estado de mente permite não
apenas se descobrir a singularidade, mas também encontrar variadas
maneiras de realizá-la. Se na era anterior, o principal era a conquista
visível e a manutenção dessa realização, nesta nova Era do Lazer, o
principal é a descoberta. Desse ponto de vista, o indivíduo que foi bem
sucedido ao transformar seu tempo em tempo livre vê tanto trabalho quanto
profissão apenas como um espaço de desenvolvimento pessoal. Estamos
falando de preenchimento de todo o ser, em todas as suas possibilidades de
performance e observação.
No espírito da nova era do lazer, alarga-se a percepção da vida real nas
personalidades e em seu redor. Essa visão não se origina da perspectiva de
funções sociais que identificam e que são identificadas, mas de dinâmicas
individualistas que não cessam de descobrir as muitas faces dos contatos
proveitosos em todos os aspectos da existência.
Então, a vida não é apenas um estreito caminho de funções definidas, onde
o indivíduo é muito cuidadoso para não bater com cabeça. Na Era do Lazer,
vemos que a vida amplia os horizontes. Deste modo, o indivíduo, cheio de
sua variada internalidade, e livre de uma identidade limitadora, pode
exercer muitos papéis sem vir a ficar preso em nenhum deles; pode
mergulhar e se identificar com diferentes aspectos da existência sem estar
dissolvido neles.
Nesta nova era, o mundo é ao mesmo tempo uma pequena cidade e um universo;
o indivíduo sente cada encontro como uma revelação do mundo ao seu redor,
mas também especificamente, como uma revelação de si mesmo.
A geografia humana está mudando. Ela não mais molda a personalidade, mas
sim a pessoa cria sua própria relação com ela. O espaço não mais dita a
identidade da pessoa, mas a pessoa reinventa o espaço.
O curso da vida nessa era pode ser uma grande e real jornada, na qual o
destino não será mais o mesmo ponto de partida. Será uma jornada vibrante
e voltada para qualquer direção e para o interior, nas infinitas
perspectivas de sua personalidade. Será uma jornada não apenas na
superfície da existência, mas também nas muitas concavidades escondidas em
cada superfície; superfícies que oferecem repetidos e variáveis convites
de tal forma que o bem-estar encontrado nessas concavidades de cada
existência florescerá.
A história humana ensina que estes processos são pessoais e não
automáticos.
Com as perspectivas abertas nessa nova e livre era, podemos diferenciar
numerosos caminhos de processos pessoais. Muitos se sentirão perdidos, é
claro, fora de suas rotinas e das estruturas onde têm se entrincheirado, e
tentarão encontrar algum tipo de refúgio onde possa novamente se acomodar
no conformismo. Para outros, isso tudo proporcionará felizes caminhos nos
quais sua personalidade se desenvolverá e se satisfará com suas
conquistas.
A Era do Lazer diz que as pessoas serão livres, o que significa
orientar-se em um processo contínuo de busca feita em todos os lugares;
esta é a busca da felicidade, é claro.
Felicidade
Embora tenhamos provas de que a busca pela felicidade tenha estado sempre
presente nos pensamentos humanos, a contemplação ativa e a busca prática
foram de modo geral prerrogativa de poucos.
É difícil falar de uma busca – que é sempre uma busca de uma alternativa
para a realidade oferecida – na qual o destino pessoal parece ser parte
integrante do destino coletivo, e na qual todo o tempo individual é
hipotecado para garantir essa existência. E se considerarmos Cinderela,
recordaremos que a aparição ou não-aparição do príncipe salvador não é
definida nem por seus desejos de menina nem por suas ações.
Para o indivíduo hipotecado – hipotecados seu tempo e ele mesmo – para a
comunidade e seu destino coletivo, a felicidade é um conceito reservado
para outro mundo – talvez o “reino dos céus”, do qual o padre fala em seus
sermões, onde cada um ganha um lugar como resultado direto do cumprimento
satisfatório de todas as leis determinadas por sua fé. Em uma tragédia
grega o herói, apesar disso, se põe de pé e se rebela contra seu destino.
Certamente alguns dirão que há alguma coisa de paz e até de felicidade na
total aceitação de um destino. Entretanto, estamos então falando de
aceitação por parte do indivíduo da existência sem uma alternativa
possível, semelhante à aceitação do fato de não se poder voar.
Em um documentário sobre a tradição da circuncisão feminina, eu me recordo
do semblante de espanto do entrevistador europeu que tentava entender como
é possível que as mulheres desejassem levar suas filhas ao sofrimento. A
mulher entrevistada respondeu sem hesitar, em uma serena aceitação: “Nós
somos mulheres; nós nascemos para sofrer”. A declaração saiu da própria
boca da mulher, embora fossem palavras de sua tradição e de sua tribo. O
discurso estava nela, mas a responsabilidade era de toda a tribo.
Mas o que se dá com a aceitação, que parece tão familiar à felicidade, com
o aumento de tempo liberado, quando preencher esse tempo não é uma
predeterminação evidente? O indivíduo pode se assustar com esse vácuo que
não possui exigências ou tarefas institucionalizadas, e é alheio à
supervisão coletiva. O medo da falta de limites e direções mostra que o
indivíduo encontra-se totalmente sob sua própria responsabilidade.
Com o aumento de tempo liberado, o indivíduo é “condenado à liberdade” e
tende a sentir angústia, que é geralmente definida como depressão. “A
depressão nos ensina sobre a atual experiência do indivíduo, pois é uma
patologia de uma sociedade não mais baseada em culpa e disciplina, mas em
responsabilidade e iniciativa” (Ehrenberg, La fatigue d'être soi).
Esse é o drama da pessoa desamparada, sem o apoio de estruturas essenciais
de pensamento, e sem a supervisão atenta da comunidade; ou seja, sem
responsabilidade social. Ela é condenada a ser apenas aquilo que ela
consegue ser sozinha e descobre a escassez de suas ações em face às
aparentes oportunidades ilimitadas. Como é difícil para a maioria dos
indivíduos olhar para um espelho que reflete sua vida limitada quando os
jornais e tevês falam de infinitas e tentadoras alternativas, nas quais a
felicidade está ali na esquina. “Desejamos a felicidade com todas as
nossas forças e ficamos desapontados conosco porque não somos bem
sucedidos nisso. Odiamos nós mesmos e reclamamos da sociedade na qual
vivemos” (Brucker, Le droit au bonheur est devenu un devoir).
Mas quem disse que o tempo liberado do trabalho e de vários compromissos
pertence realmente a nós? Pode o tempo pessoal pertencer ao indivíduo
quando ele não pertence a si mesmo?
Somente uma pessoa livre como La Mettrie acredita nisso: “Sem esperança e
sem medo... que felicidade!” (La Mettrie, quotation by Neyme, Une morale
de l'utilité). Livre dos atentos olhos da igreja, que tem esperança apenas
no "reino dos céus", La Mettrie sente o alargamento do horizonte da
existência universal e da fartura de suas capacidades humanas, que
precisam se expressar sem distrações e sem medos. O indivíduo não está
mais preso em um trem coletivo que o leva pelos seus trilhos para uma vida
que tem sido determinada por ele; agora ele comanda o leme de seu próprio
destino. A jornada pessoal pode começar.
As pessoas agora são livres para ouvir os chamados de diferentes tipos de
busca por felicidade. Absolvição e aprovação não são mais apenas o
resultado do cumprimento de uma função. E o que era apenas uma parada para
renovar as energias físicas na era do trabalho, se tornará significantes
períodos de tempo que precisam de atenção especial. Aí, nesse espaço
externo às funções, ao contrário daqueles que olham apenas para aquilo que
esperam, a pessoa volta-se para dentro de si e agora é livre para se
tornar verdadeiramente estimulada por uma lenta observação das folhas
caindo das árvores em uma brisa de inverno, para sentir a vibração das
cores que enchem um pedaço de papel branco, para reparar na divisão de
vozes de uma música, ou a magia de um encontro sem objetivos definidos...
Isso, é claro, é um processo pessoal, e podemos perceber seus vários
estágios. Falamos aqui do sentimento de felicidade que é parte de algo que
atribui valor à existência, por isso não discutiremos a perspectiva de
Epicuro, da fuga de um objetivo para fugir do sofrimento. Porque ausência
não pode ser presença; ausência é, como em uma imagem plana, monotonia,
que promete uma calma sobrevivência, e apenas isso. A felicidade é cheia e
não vazia; é presença e não ausência.
Felicidade de primeira, segunda e terceira ordem
A felicidade de primeira ordem é totalmente dada pelas forças que cercam o
indivíduo. Os prazeres da existência são pequenas e desconectadas quebras
em sua existência consumível, presa “em limitadas estruturas, onde ele se
resigna a viver uma vida vulgar” (Gonzalez-Pecotche, El Espiritu). Somente
quando o indivíduo não está mais satisfeito com essas quebras, e ouve as
questões que vêm de dentro dele, e faz a pergunta “para quê?”, entra na
segunda ordem de busca pela felicidade. Nesse ponto, o indivíduo atenta
mais para suas aspirações humanas que transcendem os limites da
necessidade, e fazem com que queira olhar para sua vida em sua totalidade.
A transição para uma busca pela felicidade de segunda ordem não é
automática; é uma expressão da vontade e consciente determinação da parte
do indivíduo. E essa transição para o segundo nível é feita por um
processo de gradativo empenho que começa a brotar de um cultivo próprio.
Em outras palavras, a segunda ordem de busca pela felicidade desencadeia
uma batalha que a pessoa realiza em favor do desenvolvimento de sua
consciência, cujos frutos serão a gradativa transição para a felicidade de
terceira ordem. Esse é um processo que exige liberdade de pensamento e
máxima auto-avaliação, elementos básicos que a Era do Lazer disponibiliza
para as pessoas que sabem como utilizá-los para trocar o tempo liberado do
campo do pragmatismo pelo tempo livre e que proporciona a criação; ou
seja, quando o lazer não é encontrado mais apenas em uma agenda, mas está
disponível para ser visto e ouvido atentamente na vida – e por toda a
vida.
Lazer e felicidade
Em uma história curta, Kafka descreve um tipo de felicidade corporal
causada por uma caminhada não planejada. Além do simples prazer das pernas
ágeis do personagem, ele sente também que deste modo adquiriu a verdadeira
medida de sua estatura.
Na descrição curta de Kafka, somos testemunha apenas de uma crescente
energia que era forte o suficiente para ultrapassar a inércia interior e
exterior que parecia bloquear a rotina daquela noite. Ele não nos fala do
processo de amadurecimento da força interna que é necessário para arrancar
alguém do destino que determina o tempo reservado para depois de se
cumprir as tarefas diárias.
O que se diz normalmente sobre lazer leva-nos à idéia de que a percepção
geral é que é quase um sinônimo de felicidade. Se considerarmos o conceito
que existe na maioria das línguas de “divertir-se”, ele geralmente
significa uma pausa ou um feriado que vem como uma luz no meio da neblina
da rotina. É como a corrida estrondosa de crianças para um parque durante
um recesso, umas curtas férias, ou uma pausa: o tipo de pausa que é cheia
de exaltação e no tira da rotina hipotecada em uma vida inerte. Estamos
falando aqui de uma busca pela felicidade de primeira ordem, na qual o
indivíduo vive, de um para o outro, agradáveis e curtos momentos; um tipo
de pequeno conforto para uma vida sem choques, que vão se dissipando tão
rápido quanto apareceram. Essas são as alegrias que geralmente se busca,
como por mágica, quando se olha uma foto e tenta-se convencer a si mesmo
de que se passou por aquela experiência da qual uma simples foto faz
lembrar.
Ainda apesar disso, estas podem ser memórias esporádicas que apontam para
a possibilidade de uma outra vida; centelhas de força vital escondidas
dentro das fôrmas de não-vida. Com o aumento dos períodos de tempo livre,
quando vai além de uma pausa da qual o indivíduo volta exausto e
indisposto, apenas para ser engolido novamente pela rotina, ele pode
acordar para uma busca de felicidade de segunda ordem. Uma revelação, ou
mesmo em um flash, de uma alternativa mais digna, desperta o desejo e
alimenta as forças para pôr a felicidade nas próprias mãos do indivíduo.
Este não busca nada mais do que usar seu tempo de vida em um prazeroso e
efêmero caminho. Um desejo de algo além disso surge nele... Ele está à
beira de perceber que a felicidade de primeira ordem não é mais
suficiente.
Ao mesmo tempo, entretanto, não podemos ficar tentados a pensar que a Era
do Lazer é necessariamente a era da felicidade; “a idéia de que ‘todas’ as
pessoas irão se satisfazer com lazeres é apenas mais uma utopia...” (Yonnet,
Travail, loisir, temps libre et lieu social). A era do lazer é uma
oportunidade na qual se desenvolve um grande potencial da sociedade, mas é
também, e numa maior escala, o risco de uma pavorosa brutalidade. Devemos
lembrar que a liberdade significa escolha entra várias possibilidades, e
que a natureza humana tem nos mostrado sempre que escolhas podem levar
desde às mais iluminadas janelas até às mais tenebrosas profundidades.
Nem todos são capazes de despertar em si mesmos uma mudança consciente
como fez o personagem do conto de Kafka. Entretanto, o aumento
quantitativo do número de horas de lazer, junto com a gradativa seleção
dos “estados de mente” da idade do lazer, leva mais e mais pessoas a
prestar a atenção às vozes profundas que mostram um cansaço de prazeres
passageiros sem aspirações a algo além disso. Para tais pessoas, a
indústria do lazer, que geralmente conduz a esgotar o tempo, o dinheiro e
as energias livres, não as satisfaz. Perplexas ao descobrir que tudo que
era óbvio não é mais tanto assim, elas buscam pelo menos entender a si
mesmas.
Aqui está o desafio real do estudo do lazer. Não estamos nos referindo a
um manual de como organizar esse tempo. Estamos falando de uma fascinante
oportunidade de ajudar o indivíduo que deseja fugir de um ciclo de consumo
sem sentido e quer usar o recurso do tempo livre para ensinar a si mesmo a
ter uma maior capacidade de ser feliz. O desejo escondido é ainda o de
felicidade, que inclui não apenas experiências sensoriais, mas também seu
desdobramento em experiências espirituais.
Por causa disso, a era do lazer abre horizontes individuais, que buscam
responsabilidades individuais. “O tempo é uma invenção ou não é nada”, nos
diz Bergson. Calmamente, visando o desenvolvimento, deve-se ter a
habilidade de ver tudo o que é revelado aos olhos, os elementos
disponíveis para uma variedade de possíveis combinações que não são
conhecidas a fundo, mas que são resultados dessas escolhas. Para ver a
realidade da vida como infinitas telas sobre as quais um sem fim de cores
se encontram, sobre as quais pode-se criar uma multidão de sombras, nas
quais decide-se concordar com esse desejo de crescimento e com sua
evidente responsabilidade, aqueles elementos dos quais se constrói a vida;
uma obra-prima resultante. Livre de estruturas anteriores, pode-se – se se
quiser – não apenas conhecer a vida, mas também vivê-la.
Em outras palavras, a lição será acordar, tomar coragem e saciar a sede de
sentidos; ou seja, o desejo de mudar a direção do olhar para a busca de
uma felicidade de segunda ordem. Esse é um processo baseado em
comprometimento total, ao lado da esperança consciente de que a habilidade
de extrair felicidade de qualquer circunstância da vida eclodirá. Quando
se descobre que o tempo é um recurso pessoal, fica-se consciente das
qualidades e potenciais do lazer, cumprindo as prerrogativas que possui
todo ser humano, recordando-se quem se é, e autorizando suas habilidades a
encontrar a si mesmo em lugares desconhecidos para descobrir o significado
de sua vida, e não será difícil dar como resposta, a respeito da questão
de Hamlet, não apenas “ser”, mas também “ser feliz”.
tradução de Victor Paes
ELIE
COHEN-GEWERC nasceu em Alcácer-Quibir, uma pequena cidade no Marrocos.
É Ph.D. em Filosofia e mestre em Ciência da Educação pela Universidade de
Sorbonne, além de graduado em História Geral e Cultura Francesa pela
Universidade de Tel Aviv. Desde 2001 é professor de Ética no Beit Berl
College. Até 2004 foi membro do comitê acadêmico para o Primeiro Congresso
Mundial de Estudos do Lazer, em Köln. Às vezes desperdiça seu tempo livre
escrevendo para revistas terceiro-mundistas como a nossa.
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