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paulo lins


o destino do artista

 

 


No dia em que o enredo foi distribuído na reunião da ala de compositores, Azeitona saiu radiante: seu filho havia feito um trabalho escolar sobre a Transamazônica, exatamente o enredo daquele ano.


— Pra mim, vai ser mole, é só pegar o trabalho da escola do meu filho e dar uma guaribada — repetia Azeitona, entre goles de cerveja.


Empadinha saiu da reunião apreensivo. Depois daquele dia, rodava pelos cantos, brigava com Valdirene por besteira, passou a ter insônia, enfiou-se na cachaça, porque achou o enredo muito difícil, ruim de se fazer refrão. Arriscava uma melodia ou um verso, e mandava a Transamazônica para a puta que o pariu. Tudo porque não sabia nada sobre a estrada que o diabo do governo estava fazendo no Amazonas. Não iria sair de biblioteca em biblioteca lendo sobre o assunto. Não gostava de ler e muito menos de ir à biblioteca, lugar de silêncio, coisa que ele odiava. Optou pelas notícias de jornais, pelas revistas da barbearia, das biroscas e de casa, mas o samba não saía... O enredo estava mal escrito, com pouca informação sobre a infeliz da estrada.


Num domingo, viu um grupo de amigos tocando instrumentos e Azeitona cantando o seu samba num churrasco organizado na porta do bar do Tom Zé. Fingiu que não viu e saiu de fininho, deprimido até o pescoço, com a possibilidade de não fazer samba naquele ano. Subiu rápido o morro e foi golpeado duas vezes quando viu Caramba e Brasão cantando os seus sambas em biroscas e os amigos ouvindo-os atentamente. Imaginou que todos os compositores da escola já estavam com o samba pronto, mostrando a criação aos amigos, distribuindo a letra do samba mimeografada pelo morro, e ele nada sobre a Transamazônica.


— Se o enredo fosse a Bahia, esses putos iam ter que me engolir! — dizia pra si mesmo.


Era verdade. Apesar de nunca ter sido vencedor, sempre chegava à disputa final quando o enredo era a Bahia, porque seus pais eram baianos e contavam das festas populares de lá, falavam dos costumes, do candomblé, das histórias de pescadores e de tudo mais. Não era como essa Transamazônica, da qual só ouvira falar algumas vezes.


E o que mais o afligia era que, nesse ano, a disputa seria honesta, porque Amendoim havia morrido e sempre era ele quem ganhava com qualquer samba, não porque comprasse os jurados, mas pela violência. Amendoim já havia matado 95 pessoas e duas delas eram compositores de samba vencedor. Daí em diante, ganhou todas as disputas, até morrer com quatro tiros numa quebrada do morro.
Empadinha via a possibilidade de comprar um terreno em Lídice, lugarejo da Costa Verde do Estado do Rio de Janeiro, onde passaria a velhice criando galinha, colhendo a salada de cada dia em sua própria horta e tomando banho de rio à hora que bem quisesse.


Faltando três dias para os compositores entregarem a fita cassete para a diretoria escolher as dez composições que disputariam o prêmio de melhor samba, Empadinha teve a idéia de ir à escola do filho de Azeitona com a intenção de achar um estudante que também tivesse feito um trabalho sobre a Transamazônica.


— Caralho, como não pensei nisso antes?


Ainda eram 9 horas. Queria que o tempo passasse rápido para encontrar o estudante e fazer logo o samba. Não tinha sono, resolveu ir à birosca beber alguma coisa. Tomou duas doses de Parati, bebeu uma cerveja e, por fim, mandou para dentro um rabo-de-galo. Voltou cambaleando para casa e se jogou na cama de roupa e sapatos.
Não eram nem 7 horas quando ele esperava que as turmas formassem para localizar a do filho de Azeitona. Marcou bem o rosto de dois meninos e de três meninas.
Quando deu a hora da saída, o compositor se precipitou para o primeiro estudante de quem guardara a fisionomia:


— Você também fez trabalho sobre a Transamazônica?


— Fiz.


— Você pode me emprestar?


— Olha, eu sei muito bem pra que o senhor quer o meu trabalho...


— Como assim?


— O senhor não é compositor da escola?


— Isso.


— Então, todos os compositores vieram aqui pedir trabalho pros alunos, e esses otários aí deram.


— Você não vai me dar, não?


— Lógico que não, se quiser vai ter que comprar.


— Comprar? E quanto é o trabalho?


— Cinqüenta cruzeiros.


— Ah, tá muito caro, vou achar outro aluno...


— Olha, eu tirei 10, hein? E tá todo mundo vendendo agora. E o meu preço é o melhor.


— Tá a fim de me enganar, rapaz, tá pensando que eu nasci ontem?


— Tudo bem, mas depois não vem atrás de mim, que eu não vou vender, não.


Empadinha caminhou um pouco e se voltou para o menino.


— Tá bom, tá bom, toma aqui o dinheiro.


— Vamos lá em casa que eu te dou o trabalho.


Era esplêndido o trabalho do menino. Empadinha ficou maravilhado com a Transamazônica que lhe aparecia descrita em letras juvenis em folhas de papel almaço: a extensão, o objetivo de ser criada, o dinheiro investido, os lugares por onde a estrada passaria, os conflitos e também a cultura do Estado do Amazonas, como a lenda da mãe-d’água, da serpente boitatá; a vida dos seringueiros, dos índios, as cachoeiras, os rios e as cascatas. Enfim, o trabalho tinha tudo o que faltava ao enredo.


— O moleque é bom, rapaz! Tem habilidade! Fez um trabalho de mestre, tem um monte de coisa aqui que não tinha no enredo. Agora não tem pra ninguém — disse Empadinha a Valdirene.


— Você vai fazer o samba quando?


— Já terminei, já terminei, olha só.


E cantou feliz:

"Vejam que beleza
A história que vamos contar
Sobre a Amazônia distante
Esse sertão fascinante
Terra igual essa não há

Contam que a mãe-d’água
Dentro de sua lenda e tradição
Ao ver o pescador se aproximar
Cantava uma linda canção

No barulho das águas
Surge uma serpente
É o boitatá
Apavorando gente
Índio guerreiro, caçador
Seringueiro extraía a borracha
Vaqueiro cantava canções de amor

Hoje o progresso chegou
Dentro da cultura e expansão
Surge a Transamazônica
Orgulho de nossa nação."


— Mas fala muito pouco sobre a estrada...


— Mas, na reunião, o carnavalesco falou que era importante também falar sobre a Amazônia, mais importante do que a estrada.


— Por quê?


— Pra fazer as fantasias, é bom falar dos índios, dos seringueiros, vaqueiros, sabe qual é? O importante é que o samba tá pronto e agora é só gravar e mandar a fita pro corte.


Empadinha deixou a esposa, foi procurar Jorge do Cavaco, Dirceu do Repique e Celso do Tamborim para gravar o samba e mandar a fita para a diretoria avaliar.


Quarenta sambas foram cortados. Entre os dez que competiriam na quadra estavam o samba de Azeitona e o de Empadinha.


Empadinha chorou no dia do resultado, nenhum samba havia sido mais difícil de fazer do que aquele. Ficou tão feliz por não ter sido cortado que, no dia seguinte, foi à porta da escola procurar por Mauricinho, para lhe mostrar o samba e agradecer por lhe ter vendido o trabalho escolar.


Mauricinho escutou o samba atentamente e disse:


— Esse samba é de rima fácil, rima serpente com gente, distante com fascinante... A pesquisa foi mal usada, tá cheio de jargão! Samba exaltação digno do golpe de 64, samba pra emudecer a razão. Muito fraco! E pra que cantar a Transamazônica? Pra que cantar? Onde está a novidade das estradas, tirando a fuga, a esperança da partida e o inesperado do destino? Sempre numa estrada vai ser melhor a certeza da volta do que a esperança da partida, e, no entanto, criamos caminhos sem volta... Sabemos que a utopia é o fraco do humano e é ela que nos faz criar caminhos, que são tantos, que se cruzam, que se chocam... Caminhos que sempre fazem um humano querer voltar para casa, enquanto um outro quer sair... Caminhos que nos envelhecem, que matam nosso tempo! Caminhos que nos fazem abandonar o chão da infância... Deus me livre de ser um viajante, pois o viajante é aquele que chega anunciando a partida: tem pés que batem num chão, enquanto o coração, no chão de outro lugar.


Empadinha ficou surpreso com as observações de Mauricinho. Tentou argumentar alguma coisa, mas ficou sem palavras diante do rapazola, que continuava:


— Não fica assim, não. Eu tô brincando. Viajar é muito bom, a gente conhece gente nova, os pratos típicos de cada região, os costumes. Imagine a gente dentro da floresta amazônica, vendo os animais, os índios, o rio Amazonas e os seus afluentes, né? Viajar é bom.


— Não tô entendendo! Primeiro, você me diz que viajar é ruim, agora diz que é bom.


— Eu só coloquei dois pontos de vista, mas na verdade eu estou mesmo é muito puto com essa estrada...


— Por quê?


— Essa estrada está sendo criada pelo presidente Médici, esse assassino... Ééé... É mais um projeto-impacto dele... Eles acham que vão tentar integrar o Brasil abrindo estradas, que ela vai ser um modelo de assentamento do trabalhador rural, mas na verdade eles vão foder com tudo, porque a condição socioeconômica da população tá a pior possível! Tá uma violência danada pela posse de terra, entre os grileiros a serviço de poderosos interesses econômicos, posseiros e índios! E, além do mais, eles estão depredando tudo, não têm a mínima preocupação com o meio ambiente, e a escola de samba cantando como se fosse a melhor coisa do mundo. Um monte de alienado tecendo elogios pra uma coisa horrível dessas! Meu trabalho falava disso tudo, mas o senhor nem ligou e fez esse samba alienado.


— Que que é alienado?


— Sem nenhuma reflexão política, sem saber o que está por trás das coisas. Ficam um monte de bobões fazendo samba exaltação pra esse governo corrupto, assassino, enganador. Eu tenho vergonha de vocês.


Empadinha ficou com cara de palhaço triste, vendo Mauricinho se afastar com um monte de livro amarrado num cinto. Realmente o moleque tinha razão. Era o mais infeliz dos idiotas em cada passo que o levava de volta para casa. Um garoto... Um garoto que poderia ser seu filho estava mais por dentro das coisas do que ele. Sentiu a força do conhecimento, do estudo, sentiu também vontade de não desfilar, de retirar o samba da competição. "Será que poderia voltar a estudar?Teria cabeça para encarar os livros?"


Não. Mas não iria bater palmas para maluco dançar, não iria dar mole para o governo que quer que a escola venda uma boa imagem da porra da estrada. Entrou em casa e Valdirene foi logo perguntando:


— E aí, falou com o menino?


— Falei e não vou mais disputar o samba, não.


— Tá maluco? O que aconteceu?


— Eu não sou alienado!


— Que troço é esse de alienado, Empada? Você não trabalha, vive de biscate e do dinheiro que eu ganho... Vive em função de ganhar um samba-enredo pra gente sair desta merda, sofreu que nem uma vaca no matadouro pra fazer o samba e, agora que passou na eliminação da fita, me diz que não vai mais disputar! Que que esse menino te disse?


— Ele me disse que eu sou burro, que o meu samba só tem mentiras, que a Amazônia tá acabando, e o governo tá contribuindo com isso e que...


— Eu tô pouco me lixando com o diabo da Amazônia, eu quero uma casa em Lídice, eu quero sair desse morro!


— Desiste, mulher, eu não vou mais disputar.


— Então ruma logo um emprego, que eu não vou te sustentar mais, não!


Empadinha passou a tarde com a cabeça em profunda confusão. Se o enredo fosse a Bahia, tudo estaria resolvido, mas o carnavalesco de merda inventou um enredo de merda pra um governo de merda se beneficiar. A noite foi de insônia. O descobrimento de que era um alienado o maltratava, mas, se tirasse o samba da competição, teria que encarar um emprego, acabaria a boa vida de acordar a hora que bem entendesse, de não ter que aturar patrão, daria adeus ao jogo de futebol das 3 e meia da tarde, a sinuca das manhãs, o baseado de depois do almoço. Tinha uma mulher que o sustentava simplesmente pelo fato de ser artista, e, exatamente por isso, possuía a oportunidade de virar a vida de uma vez, mandando a miséria para a casa do chapéu, se seu samba fosse campeão.


Às 5 da manhã resolveu esquecer o diabo da alienação e seguir em frente na disputa. Saiu cedo e comprou mil folhas de papel para rodar a letra no mimeógrafo. Passou a semana cantando o samba nas biroscas do morro, foi à casa dos amigos, dizendo que pagaria a cerveja se eles cantassem o samba na hora do vamos ver. Prometeu dinheiro ao mestre da bateria para que ele a comandasse com mais afinco na hora de sua apresentação. Tudo isso contava muito na decisão do júri: bateria afinada e empolgação na quadra.


E, assim, o samba de Empadinha foi passando nas eliminatórias até chegar à final, justamente com o samba de Azeitona.


Empadinha e Azeitona eram amigos de infância, andavam sempre juntos e por isso ganharam esse apelido. Azeitona o levou a compor e com ele fez os seus primeiros sambas, mas, por causa de brigas no futebol, estavam de relações cortadas havia mais de seis meses e, além do mais, sempre houve certa rivalidade entre os dois. O pior era que sentia que o samba de Azeitona vinha empolgando mais os componentes da escola, porque realmente era melhor, mais bem-acabado, mais ritmado e com letra mais profunda. Não havia jeito de ganhar. Teria de arrumar um jeito para derrubar o rival, que na certa olharia para ele, dizendo com os olhos: "Tá vendo, seu otário? Sou melhor que você". Isso lhe doeria mais do que perder a grana que receberia caso fosse campeão.


No dia antes da disputa final, foi bem cedinho à casa de Azeitona.


— Que que você quer?


— Olha aqui, Azeitona, a gente sempre foi irmão, sempre compôs juntos, e agora a gente tá aí, disputando uma final de samba-enredo brigados, sem se falar. Eu vim aqui dizer que eu gosto tanto de você que, se eu perder, vai ser uma honra... Se você ganhar, eu também vou me sentir campeão. Queria te dizer que eu tenho sentido muito a sua falta. E, agora que a gente vai competir aí, eu queria fazer as pazes contigo. Eu quero retomar a amizade, antes da gente ir para a quadra de samba.
— Que bom, Empadinha, eu queria te falar a mesma coisa, tava era sem coragem, pensando que você iria me virar a cara.


Os dois se abraçaram longamente e depois Empadinha convidou:


— Então é o seguinte: vamos almoçar lá em casa amanhã. Vou mandar a mulher fazer uma buchada de bode.


— Pode mandar fazer que eu vou lá.


O povo da escola ficou surpreso quando Azeitona disse que estava indo para a casa de Empadinha pegar a bóia.


— Que espírito esportivo, espírito de competição! Que coisa bonita! Que demonstração de amizade! — falavam.


Por volta das 13 horas, Azeitona chegou para o almoço. Beberam cerveja e batida de limão, cantaram os seus velhos sambas. Valdirene serviu a comida e teve que insistir para os dois sentarem para comer, eles não paravam de cantar, de se abraçar e de brindar a amizade a todo instante.


Por fim, começaram a comer com muito apetite, mas logo depois Azeitona começou a passar mal e, em seguida, Empadinha. Os dois tiveram o mesmo tipo de convulsão. Valdirene chamou os vizinhos para ajudar a levar os dois para o hospital, aonde chegaram mortos.


Depois da autópsia, o pessoal ficou surpreso com a causa mortis de ambos: parada cardíaca por envenenamento. Mas tudo ficou esclarecido quando o enfermeiro trouxe dois vidros de ratofudex que encontrara no bolso de cada um: veneno fulminante para ratos.

 

 

PAULO LINS é poeta e escritor, autor do livro Cidade de Deus, que deu origem ao filme de Fernando Meirelles e concorreu ao Oscar de melhor filme em 2003, além de roteirista e ator do filme Quase Dois Irmãos.

 


 

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