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o novelo de odradek | victor paes
em um quarto
Existe alguma forma gentil de
vocês desistirem de adornar suas bocas na porta? Não se arrisquem na
estética da casa! Reação de labirinto: eu espirro! Saúde? Obrigado! Vão
pra sua rua! Não é pra ela que vocês gostam de arear seus dentes novos?
(pausa)
Meu material pra essas
pecinhas acho que acabou... Coloquei em pé todas, e nada chega pra mim
aqui de material, barro, durepox, nada... Então comecei a inventar:
comecei com meu almoço, um olho feijão, um seio espinafre... Mas o mofo
vinha e vestia todo o exército com um uniforme de veludo branco, romântico
demais, branco demais pra esse meu tipo de guerra: os soldados têm que ser
pedra, nobres, frios, preparados pra um momento qualquer de distração, e
aí... o ataque! A porta no chão! Mas eu desisti mesmo... Desisti tanto...
Mas até que já dormi em contextos bem mais quentes que o desse quarto...
Eu durmo bem, o mais importante não é dormir? Sonho saudável, nenhum
pesadelo demente, nada sem roupa, sem sangue, nenhum incesto, nem dedinhos
pecadinhos geladinhos dentro da calcinha... E eu sonho sempre que tô
tomando banho! Meus probleminhas pessoais são todos por causa dessa luz!
Eu sei, dá pra ver que algo me faltava! É fácil dizer: “não falta razão,
falta alma”. Mas eu não sou responsável de todo por meu próprio
nascimento!
Olha, já gritaram no meu ouvido pra acordar minha alma... Até que chegou
aquela velhinha, que eu pensei que fosse anã, mas não, corpo de criança,
mas era uma velhinha... vermelhinha... vestido nenhum, mordido de água
sanitária... disseram: “ouve ela, ela é velha, mas é precoce... ela é você
quando era pequena, uma velha...” Ela disse, cheia de voz de criança:
“ninguém nasce com alma, a gente vai ganhando os pedacinhos dela aos
pouquinhos... me mostra a tua que eu te mostro a minha...”
Mas ela disse isso e depois... se desmanchou... na minha frente se
desmanchou e foi pelas tábuas do piso... eu fiquei na dúvida se não era eu
que tinha me desmanchado...
Nunca fiz nada de sujo antes de me colocarem essa porta! Nunca tive, não
tenho uma cor desconfiável aqui, tenho? Minha cor é dessas normais, que
muitos sempre usam por aí... Todo o tétano que eu possa ter agora foi
encontrado aqui, por acaso. Mas um dia, mesmo assim, mesmo eu me pondo tão
natural, almíscar nos panos do sofá, quase água, um dia simplesmente,
vocês viraram a cabeça pra mim... Olha só! Desviaram da televisão! Pensei
até que ia ganhar um carinho, mas não... É que vocês quiseram me olhar,
cismaram, notaram qualquer coisa em mim... Cisma... Uma coisa qualquer, um
pêlo, penugem, um poro mais aberto que os outros, sei lá! Tiveram uma
idéia: “Vou arrumar um canto pra você ficar mais... confortável...”
Uma pessoa sem alma não deveria ter nome! Por que se dá nome a uma coisa
pela qual não se pode responder? Eu não gosto de nenhum nome...
Aqui é tudo pesado, andar é pesado, rir é a coisa mais pesada, você
carrega pra fora sua tristeza. Quando estou rindo eu peso uma tonelada.
Quando eu fiz o desenho pra essa casa, porque eu fiz, eu coloquei esse
quarto aqui pra encher com um monte de plantas, vasos, sementes, ar pra
respirar, samambaias... Agora, eu é que sou a samambaia... chorona... Mas
sou questionado, posto na beira desse palco e a madeira dos palcos range.
E pra competir com o som de um chão rangendo, tenho que falar alto e
várias, várias vezes mais o que sempre falo. O que estou falando agora,
tive que decorar, não é?... São palavras pensadas e escritas... Como tinha
que recorrer aos papéis sempre que me apareciam pessoas como vocês,
resolvi decorar. E sempre aparecem pessoas, aparecer é nascer... E cada
vez vocês me julgam com menos simpatia... Dizem que minha alma até escorre
pelo meu pescoço. Mas eu digo sempre, apesar de ouvir sempre suas risadas:
isso que escorre não é alma, é só suor...
Uma vez, do pouco que consegui perceber do que vocês falam através da
porta, disseram que não existia chave. Não existia chave... Mas como pode
existir uma porta sem chave? Hein!?
(pausa)
Pronto! Gritem mais, quebrem mais coisas com seus rompantes! É fácil! E
não preciso me justificar por quê. Eu não me justifico por nada! Nunca
gostei de ter que abrir tanto a boca!
(pausa)
Não tem como isso parar, não? Ninguém tem nada a ver com isso! Deixem o
recinto! Por favor! Eu não posso sair, mas vocês podem! O que vocês
querem? Olha, já sei! Eu vou fazer o seguinte: eu hoje não estou com muita
paciência, então, só pra vocês me deixarem logo em paz, eu vou mostrar que
não minto. Olhem a porta! Querem olhar, por favor! Meu dedo, por acaso, ou
alguma parte do meu corpo, cabe em uma fechadura? Não! Se isso não serve
ainda eu provo a situação da fechadura! Provo a situação da fechadura!
(ando até a porta.)
Provo!!
(giro a maçaneta e surpreendentemente a porta se abre; fico profundamente
ruborizado)
Desculpa...
(saio pela porta, desculpando-me bastante...)
VICTOR PAES é
escritor, ator e professor. Foi premiado pelo Prêmio Jovem Artista,
da Rioarte, com o texto teatral Os Cálices do Deus, que depois foi
apresentado no Projeto Nova Dramaturgia. Foi publicado pela Editora
Record, na coletânea do Prêmio Nossa Gente, Nossas Letras, da Oldemburg.
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