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a arte da astúcia | ricardo pinto


o pequeno deus sentado

 


 

Para os que moram no Rio de Janeiro não será estranha a imagem da estátua de Drummond na praia de Copacabana. Para os que não conhecem a cidade ou para aqueles que não costumam passar pela orla, faço uma descrição rápida. É uma estátua de bronze do poeta Carlos Drummond de Andrade. Ele é retratado de uma forma meio arquetípica da imagem de Drummond: um homem não muito velho (mas não jovem), bastante magro e elegante, com um livro sobre uma das pernas. Senta-se rijo sobre um banco de cimento no limite entre a praia e o calçadão de Copacabana, um dos muitos e comuns que acompanham as curvas da orla. Os óculos e a seriedade estão lá. Estranhamente, considerando-se que estamos em uma praia, a estátua não está voltada para a paisagem alegre do mar e da areia, mas para a outra, mais feia e neurótica, e em vários sentidos mais humana, do trânsito, dos prédios, das pessoas indo e vindo nos ônibus, nos carros e na calçada. A estátua prefere contemplar as pessoas vestidas movendo-se em seus apertos à praia e aos banhistas. Obviamente há uma razão monumental nesta posição, seria uma estátua inútil se sua face não fosse visível. No entanto, mesmo aí temos alguma coisa de Drummond.


Não é uma escultura excepcionalmente bela, a não ser talvez pela beleza e elegância naturais do homenageado — que desaparecem facilmente por trás dos óculos, da seriedade e da quase velhice. Ainda assim chama a atenção de todos que passam pelo lugar, mais que a paisagem, às vezes mais que as meninas e os rapazes saudáveis da zona sul. Obviamente é uma curiosidade, e neste sentido atrai os turistas, que sempre posam para fotos ao lado da estátua. Mas existe algo além que me espanta e confesso me assusta um pouco.


Não é notável que turistas parem para tirar fotos, afinal esta é sua natureza e suponho que seu papel na fauna do meu querido balneário sangrento. Mas há alguma coisa na maneira que as fotos são posadas, invariavelmente com o retratado abraçando a estátua. As crianças põem os braços ao redor da barriga da estátua, a cabeça geralmente apertada contra o peito, como se aquilo fosse um bichinho de pelúcia e não metal duro. Os adultos atuam à altura da linha dos ombros, os homens geralmente com o braço direito posto, como se aproximassem um amigo, as mulheres com os dois braços enlaçando seu pescoço, ou com a cabeça encostada à cabeça da estátua, sorrindo forte como nas fotos de festa. Suponho que esta necessidade do abraço venha do fato dela ser a estátua mais acessível na cidade toda. Ao contrário das outras, ela não tem nome, nenhuma placa comemorativa, nenhuma data. Seu pedestal é um banco comum onde cabem confortavelmente mais duas pessoas. Lembro de um filme sobre Camille Claudel em que Gérard Depardieu, no papel de Rodin, diz que precisa sentir com as mãos as esculturas, tateá-las. A estátua de Drummond se presta perfeitamente a este tipo de sensibilidade. Há também sua passividade, sua absoluta negação de qualquer dramaticidade ou pose, mas, como para compensar, uma também absoluta dignidade, de que as pessoas parecem querer se apropriar. Estranhamente, não me consta que esta passividade digníssima tenha algum dia provocado qualquer tipo de crueldade. Os homens não mijam ali perto, e nenhuma pixação. Sempre gestos carinhosos até aqui durante o tempo que gastei observando-a, nenhum tapa ou empurrão, mesmo de madrugada.


E não são apenas os turistas que gastam tempo com a estátua. Também mendigos e bêbados, que parecem encontrar um companehiro ideal e conversam com seus ouvidos de bronze. Mas não só mendigos. Velhos senhores e senhoras que imagino tenham chegado a ler alguma crônica de Drummond. Mas não só velhos. Também banhistas, moças de biquíni e homens de sunga, envolvendo a estátua com braços molhados.E trabalhadores, e passantes e crianças. Em qualquer caso, nenhum deles parece se preocupar em estar falando com uma estátua, até porque os outros não parecem estranhar o monólogo. Muitos acariciam sua cabeça, como para consolá-lo de alguma tristeza, sempre uma cena melancólica apesar de Drummond ele próprio não ser melancólico, embora um pouco solitário. São mais raras as pessoas que extrapolam um pouco e deitam a cabeça sobre o colo de Drummond, ou que choram ao seu contato. Um desses dias vi um casal de namorados se beijando ao seu lado, a mulher acariciando a coxa de Drummond. Não creio que isto o desagradaria.


Talvez pensem que estes episódios são raros, mas o fato é que Drummond não passa mais de alguns minutos sozinho. Logo que alguém vaga o lugar ao seu lado, surgem outras pessoas para repetir o ritual das carícias e dos discursos. Suponho que minha descrição até aqui baste para indicar que estamos diante de uma espécie de ídolo, mas há um fato que me convenceu plenamente. Drummond recebe oferendas. Flores são bastante comuns, e nos fins de semana há sempre algumas próximas à estátua. Há algum tempo encontrei um destes personagens, uma velhinha com duas mulheres, possivelmente filha e neta, arrumando as flores, duas ou três dúzias de rosas amarelas e vermelhas. Agiam em silêncio, de um jeito solene que parecia quase ridículo na tarde quente com a praia lotada. As flores são comuns, mas não exclusivas. Uma vez ou outra há colares de plástico ou outra bijuteria. Acredito que seja uma questão de tempo até que haja velas.


A maioria das pessoas que consola ou é consolada por Drummond dificilmente chegou a ler um de seus textos. Pivetes, crianças de família, jovens e velhos, mulheres e homens, grupos e pessoas solitárias, dificilmente a maior parte deles sabe ao menos o nome de Drummond. Sabem provavelmente que se trata de um homem culto, os óculos, a seriedade e o livro são símbolos bastante diretos. Mas, fora isso, não sabem quem é ele. Quem foi, porque o ídolo pertence a algum arcano com que o homem Drummond não se confunde, ao menos não integralmente.


Não sei se é uma ironia ou alguma sorte de simetria que em uma terra inculta como a nossa o deus —que recebeu um culto espontâneo e imediato, sem sacerdotes nem profetas— seja um poeta. Meus miolos se agitam buscando um sentido para isto, mas no fim encontro apenas a imagem renovada de Drummond e seus ouvidos, os olhos meio caídos contemplando não o cartão postal, mas a cidade e seus filhos e acidentes. Ontem sentei ao seu lado pela primeira vez.


 

RICARDO PINTO é poeta e escritor, ou quase. Atua como professor, edita a revista Confraria e é sócio da editora Confraria do vento. É mestre em Literatura Comparada e teve alguns artigos e poemas publicados em sites e revistas, assim como um livro de poemas Amar-o-mar e Outros Poemas (2000).
 


 

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