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a origem da poesia
publicado originalmente no periódico Altofalante Cultural
Falar da origem da poesia é o mesmo que falar
da origem do homem: visto que sem poesia não poderia haver o homem. Claro
que essa afirmação vai contra tudo o que estamos acostumados a ouvir e
entender por poesia e por origem, e só poderia ser minimamente aceita se
questionarmos antes duas posturas que estão no cerne da nossa maneira de
pensar: 1) a compreensão evolutiva do espaço, do tempo e da história, e 2)
a noção, tão insistentemente fundamentada pela funcionalidade do sistema
de produção e consumo, de que a arte é uma forma de entretenimento, um
meio de expressão, uma válvula de escape, enfim, uma fantasia sem
importância feita para embelezar o mundo.
Essa visão, da instrumentalidade da poesia,
da linguagem e da história nos faz entrever o mundo como uma série de
processos separados, onde arte nada tem a ver com a realidade, distante da
história, da física, da biologia, da economia e da política. Na verdade,
todas as coisas do homem surgem a partir de um mesmo princípio, que é o
agir do homem enquanto agir-se. Na Grécia antiga, havia um termo para
isso: Poiesis. Princípio pelo qual se dava a criação. Acontece que a
instrumentalidade da linguagem acarreta uma instrumentalidade do homem, e
este perde o que existe de essencial no fazer, que é o criar, tornando-se,
assim, mero repetidor em função do sistema.
E dentre todas as coisas que o homem age, a
poesia é a mais importante. Pois a poesia não é uma coisa entre outras
coisas. A poesia não é um mero jogo que utiliza a linguagem como matéria
prima a ser trabalhada; muito pelo contrário, é a poesia que tornou e
torna a linguagem possível, sempre. A poesia é a linguagem primogênita de
um povo, disse Heidegger. A poesia é o primeiro e o mais fundamental
testemunho do homem, atestação de sua presença e de seu pertencimento à
Terra. É assim que ele se manifesta enquanto linguagem e, então, enquanto
homem.
Basta lembrar que os primeiros físicos do
ocidente eram sobretudos poetas. Na verdade nem havia diferença entre ser
poeta, físico, filósofo, matemático, pois em todas essas coisas havia a
dimensão do sagrado. Estes eram homens espantados diante da complexidade
da physis que se erguia com seus grandes milagres e tempestades. O mesmo
espanto que, milhares de anos depois, acompanha o cientista de hoje diante
da imprevisibilidade das partículas e da grandiosidade do cosmos. “O sol é
do tamanho de um pé humano” disse Heráclito, numa afirmação que, antes de
ser científica é poética e antes de ser poética é sagrada. Não é uma
afirmação ingênua, como poderiam pensar alguns. Heráclito sabia da
distância do sol, mas sabia também que o sol era sim, como ainda hoje é, a
medida do homem. Esse sol adquiria uma dimensão poeticamente moldável como
o horizonte de Manuel de Barros, onde se enfiam pregos, ou a
florflamejante de Sousândrade. É a dimensão onde as coisas são e deixam de
ser.
A nós, homens modernos, depois do cogito
cartesiano, depois da metafísica kantiana, depois que o homem expulsou os
deuses de seu convívio e se tornou seu próprio deus através da ciência em
detrimento da poesia, isso tudo parece distante e absurdo. Não entendemos
que o conhecimento científico é uma interpretação do mundo tão
“fantástica” e falha quanto qualquer outra. A ciência explica que a lua é
um satélite. Mas esta não é a lua, é uma das facetas da lua. A lua é isso
e muito mais. A lua é a lua de Lin Sao, que pende madura na ponta de um
galho, é a lua de São Jorge, é Selene, é a lua dos mitos, todas diferentes
e a mesma. Os próprios cientistas hoje se dão conta do absurdo que é a
realidade. Ilya Prigogine, prêmio Nobel de física, afirmou ser a realidade
somente uma das realizações do possível.
O absurdo da poesia não é nada mais que o
absurdo do real. A poesia e a arte não surgiram num momento específico,
mas surgem a cada instante e com ela o homem, pois nisso consiste a
cultura, a constante atualização do homem como homem. Pois o homem só pode
ser sendo, homem, num constante processo de realização poética. Nos percebemos
humanos e mortais a cada ato, e é disso que vem a poesia. Por isso, ao
contrário da visão linear do senso comum, a arte não é um jogo subjetivo
de gênios excêntricos. Sua essência sagrada está na física moderna e
clássica, está nas habitações, na matemática, em todos nós. A poesia é a
linguagem primordial de todo espanto e está na essência de tudo que
produzimos, enquanto ato criador não alienado. A poesia é o que permite o
real, ainda que hoje o real a oculte, entulhado na rotina dos sistemas. MÁRCIO-ANDRÉ é poeta, contista e músico, autor dos livros Movimento Perpétuo e Chialteras e membro do grupo Arranjos para Assobio, de texturas poéticas realidades experimentais (http://arranjos.confrariadovento.com). Trabalha na tradução de poesia de Arnold Flemming, Serge Pey, Ghérasim Luca e Bernard Heidsieck e edita as revistas literárias Confraria e Improvável (www.improvavel.com). Suas páginas são www.marcioandre.com e http://marcioandre.confrariadovento.com
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