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edmundo castelo
carta malcriada à
Confraria do Vento
Bolívar, 18 de agosto de 2005.
Senhores editores da revista Confraria do Vento,
Estou enviando esta carta unicamente com o propósito de expressar meu
descontentamento com o fato de ter sido mencionado em sua revista já há
dois números na coluna do senhor Victor Paes sem que qualquer explicação
tenha sido dada aos leitores sobre o fato de minha imagem ter sido
manipulada com intenções ficcionais.
O fato dele ter se hospedado em minha casa foi realmente agradável,
inspirador, tive muitas idéias após nossas conversas, apesar dele não ser
exatamente um amigo. Ele me falou que eu seria homenageado, mas não me
advertiu sobre o tom da homenagem. Se tivesse havido algum contato entre
nós com algum tipo de proposta a la Spike Jonze, ele saberia (se realmente
leu alguma obra minha) que eu teria o sarcástico prazer de colaborar,
fingindo-me de aborrecido, convencido, morto ou afins. E meu cachê seria
muito mais ameno do que o do senhor Malkovich. No entanto, acredito que
para me ofender, decidiu me colocar deliberadamente como personagem de
seus delírios, que não foram formatados como obra artística, mas como uma
espécie de depoimentos. O leitor, então, não sendo advertido de nenhuma
forma de que as informações sobre o personagem Edmundo Castelo não
correspondem ao Edmundo Castelo real, acaba por confundi-los e isso pode
causar problemas reais ao Edmundo Castelo real, já que o outro não pode
responder por nada.
O fato dele ter dito que tenho duas esposas nem é tão grave, já que fui
bastante sincero com ele sobre meus relacionamentos pessoais, como sou
sincero com todas as pessoas com quem me relaciono. Mas não sei o que ele
quis entender da generosidade de minha esposa. Ele criou inclusive uma
situação inverossímil, já que poucos de seus leitores acreditariam nessa
história. E a inverossimilhança corre à solta, com insustentáveis períodos
de conversas e a tal da semente chamada mutuo, que obviamente todos sabem
que não existe.
Em seu primeiro texto, o do Manah-manah, apesar do título pateticamente
referenciando um programa de televisão para crianças, ele foi bem. Pôs-me
como personagem de um sonho, trabalhou bem com as mudanças de informações
a meu respeito, não deixando dúvidas quanto à verdade (só acho dispensável
o final, uma espécie de explicação hollywoodiana... mas aqui já é
opinião). Mas caiu no ridículo de se meter a crítico de uma obra que
dificilmente deve ter compreendido. Sem falar dos diálogos épicos que eu
supostamente teria tido o trabalho de ter com ele. Naquelas rodas que
freqüentamos quando estava no Brasil, eu dificilmente me dava ao trabalho
de fazer referência à minha obra. Não é preciso nem comentar a frase “só
escreve mal quem tem preguiça de escrever bem”... Prefiro acreditar que
ele tenha escrito aquilo mais para si mesmo, como uma forma de
auto-sugestão, do que para mim. Apesar de tudo, sua referência a meu conto
foi criativa. Mas o último texto poderíamos ter feito juntos. Tudo bem,
dizendo a verdade, não teria aceitado se ele me convidasse para isso, mas
ele deveria ter me convidado. Acordo entre cavalheiros, coisa preciosa no
meu país.
Mas o pior de tudo é aquela história sobre eu assistir novelas! Nesse
ponto sua intenção era claramente me ofender! Pois conseguiu. Não há nada
que eu abomine mais do que novelas! E não há novelas piores que aquelas
feitas aí no Brasil, que provavelmente ele deve assistir, já que quando
falamos sobre esse assunto aqui, ele tinha na memória tantos exemplos de
cenas ruins para me contar... Aliás, uma coisa que eu disse ele reproduziu
com fidelidade, e eu reafirmo: realmente seu nariz sangrou aqui por
catarse, pois respirar o ar da cultura de seu país, principalmente o da
literatura, continua sendo tarefa árdua. O segredo todo está nos ícones, e
em matéria de ícones, o palco de sua literatura é mais um picadeiro
circense. E isso não é, de maneira nenhuma, uma ofensa, se a intenção do
circo é exatamente diversão. E não é nisso que está baseada a arte
brasileira? Cacaus, magos, McCartneys, Odaras, sangues latinos, secas e
secas e secas. Tudo tão barroco, tão Carmen Miranda... Estou mentindo?
Pois então não se ofendam...
Acho que vocês, editores da Confraria do Vento, superestimaram o peso de
sua revista, imaginando que pudessem criar uma polêmica com alguém como
eu. Não, vocês não conseguiram.
Devo admitir que o grupo de vocês é realmente muito divertido, apesar de
equivocado quanto a questões que dizem respeito à arte. Nesse ponto são de
um provincianismo absurdamente brasileiro. Foram bem agradáveis os poucos
momentos que estive com vocês, mas talvez em outra situação, fora de uma
mesa de bar, sem troca de elogios por conta de alguns livros autografados,
a impressão não tivesse sido tão boa. Foi muito proveitosa a aventura
literária que vocês me proporcionaram dentro da literatura brasileira
atual. O problema é que não demonstrei o quanto fiquei decepcionado, não
só com esta nova literatura brasileira, mas com a empolgação de vocês por
aquilo que eu chamaria de pulp-poetry. Pensando bem, acho que pouco sobrou
destas minhas visitas ao Brasil e destas suas “rodinhas de intelectuais”,
que se expressam bastante e falam de si como se fossem seus próprios
personagens.
Falemos de personagens: Victor é um deslumbrado que raramente consegue
concatenar as idéias, entre piadas sem graça, histórias desinteressantes e
caras e bocas de teatro de revista; Ricardo é um bonachão com uma fala tão
mansa que nos faz desistir de qualquer tentativa de interlocução (e não
duvido que faça isso de propósito); Márcio-André, com aquele ar de chapéu
panamá, fala de maneira tão confusa, que eu mal poderia esperar
compreender com meu modesto português, apenas sobre coisas absurdas,
talvez para se sentir inteligente; sem mencionar o Antônio (Bizerra, o
poeta), uma espécie de Zaratustra autista que vocês apontam para os outros
como se fosse uma arma. Sem falar no trabalho sofrível que produzem,
segundo uma antiquada proposta de desestruturação e metacrítica que foi
válida por um tempo há uns quarenta, cinqüenta anos atrás, mas que já caiu
no ridículo, perpetuação de uma "escola" que encontra seu último suspiro
num velho babão chamado Stockhausen. Mas ele, Stockhausen, teve uma
história, assim como seu país. Pois não é possível ter vanguarda num país
que nunca teve tradição. Não entremos no fato do modernismo brasileiro ser
uma fraude, mas no de que culminou num presente de poetas sem rumo, como
vocês. Não consigo compreender que amizade a longo prazo
com vocês Manfredo (Score) enxergou ser possível. Isso só pode se chamar
condescendência. No entanto, dentre nossas conversas, devo admitir que
alguns momentos foram positivamente marcantes, talvez aquela discussão a
respeito de Arnold Flemming, Martin Codax, Lope de Vega ou algo sobre
literatura hispânica. Meus encontros com Haroldo (de Campos) ou Quintana,
que não são ícones, eram bem mais interessantes... bem, apesar de tudo, outras gerações...
Talvez tenha sido este o meu erro. Fiquei esperançoso quanto a esta "novíssima"
geração. Espero que este não seja um grupo representativo na amostragem da
nova poesia brasileira.
Mas não pensem que gastarei mais tempo com vocês. Só deixo o aviso para
que vocês não gastem também mais o seu, já que se isso acontecer terei de
tomar as medidas necessárias. Preocupem-se em melhorar a qualidade de sua
revista. Redefinam seus valores. Vocês acham mesmo que publicar textos inéditos
ou autores desconhecidos é suficiente para fazer a diferença enquanto
ponte literária? Se
acham, então sua revista não passará de mais alguns números. Ou
então, vocês começarão a publicar textos psicografados de autores mortos
ou de qualquer malandro que quiser mostrar seus versinhos.
Cuidado, pois “inédito” e "desconhecido" podem ser sinônimos de “descartado para a gaveta”
e "sem talento".
Futebol, por exemplo, é um tema típico de quem se embebedou assistindo-o,
acabou escrevendo alguma coisa sobre ele, e depois, sóbrio, teve vergonha
e nunca quis assumir o filho. Cuidado com a pressa em ser divertido. Vocês
acharam muito divertida sua tentativa de se aproveitar de sua própria
preguiça, deixando, por exemplo, seu editorial igual há três números,
apenas mudando “hilariamente” os números do título? Muito conveniente.
Aliás, conveniência tem sido um empenho pra vocês, não é, publicando
atualidades sobre Nietzsche, Leminski, Revista Veja, blogs, poesia
feminina, enfim. Nada é pior do que piadas mal contadas.
Infelizmente, (ou felizmente) os leitores de sua revista não poderão saber
de meu ponto de vista, ficando em seu imaginário o Edmundo Castelo
personagem. Para mim basta ter mostrado a vocês, de forma bastante pessoal
e sincera, meu desapontamento.
Sem mais,
Edmundo Castelo.
tradução de Márcio-André
e Victor Paes
EDMUNDO CASTELO, além de
escritor argentino, é um cara muito malcriado e não sabe brincar, ainda mais
com aqueles que o amam, talvez por isso seja quem melhor entendeu o
espírito da Revista Confraria. Seus livros mais conhecidos são La Vindicación
(1978), La Soledad (1985), Concejo Municipal (1997) e Delírios de Pan
(2000). Acha que ter um Borges e um Cortázar é o suficiente para fazer da Argentina a
maior potência literária do mundo e nunca se conformou com o fato de Pelé
ser melhor que Maradona.
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