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raymundo silveira


o sorteio

 

 

 

Depois de terem tido muito prazer em se conhecerem, delegado e escrivão sentaram a mesas separadas para trabalharem juntos pela primeira vez. O chefe começou a tomar o depoimento do preso, enquanto ditava para o outro: não me lembro muito bem do que aconteceu, estava com o Mão Seca e o Bola Sete, não tínhamos nenhum de comer, fazia três dias que eu não comia nada, só me davam cachaça pra beber e cola pra cheirar, quando passamos por perto do restaurante, estava cheio de barão, não... escreva como estou dizendo... de barão, o depoimento tem de ser compatível com as palavras do depoente, depois ele tem de assinar ou pôr as digitais e algum advogado pode... escreva: por perto do restaurante, estava cheio de barão, o cheiro da comida me fez tremer de vontade, vi um garçom pondo as sobras no lixo... no-li-xo, depois? pedi pra ele me dar ao menos um resto de pirão de peixe e ele mandou eu me catar... catar? sim, catar. Pronto...


Só me lembro até aí, quando acordei estava num quarto gradeado com os dois meninos e um cara mais velho, que já se encontrava lá, o Barrão. Peraí, doutor, a fita enganchou. Esta birosca já tinha idade de ter um computador, pelo menos um dinossauro do tipo 486, pronto? Pronto... o Barrão. De repente, entrou um gordinho que parecia filho de bacana e estava muito doidão, depois disseram que tinha se picado com uma tal de heroína e andou dando uns esporros... uns esporros... daí o Barrão disse pra gente segurar o gordinho porque ele queria comer o cu dele... cu tem acento? só se tiver cansado... Quê? desculpe, é brincadeira, uma piada antiga, assim o trabalho fica menos carregado e a gente agüenta melhor esta merda... cu num tem acento, não. O-cu-dele, pronto. Se nós não segurássemos, ele comeria o nosso e ainda dava umas porradas, então não teve jeito, tivemos de segurar... ti-ve-mos-de-se-gu-rar, pronto...


O depoimento já se arrastava há duas horas. A sala estava abafada, cheia de nuvens de fumaça, do tédio dos dois policiais e da indiferença do preso. Divezenquando ambos enxugavam as testas e pareciam estar loucos de vontade de terminar aquilo o que, de fato, aconteceu logo depois da confissão do estupro do gordinho. Sargento, pode conduzir a vítima até o IML, esta é a hora da troca do plantão e estes médicos vagabundos custam a chegar, por isso só saia de lá quando assistir à perícia e vir ele preencher o laudo. Por favor, não esqueça de me trazer uma cópia, eles têm mania de remendar o troço que escreveram, sob pressão do advogado.


O criminoso foi transferido para uma prisão de segurança máxima, pois foi considerado de alta periculosidade pelo psicólogo da polícia. Ele, o Bola Sete e o Mão Seca tinham matado o garçom, e o laudo do perito quanto ao estupro era claro: concluía que houvera lesão completa do esfíncter anal e indicava cirurgia imediata, sob pena de lesão permanente, o que significava que o gordinho viveria se cagando sem querer e sem parar. A cela onde puseram o marginal fora projetada para comportar seis prisioneiros, porém havia vinte. A chegada de outro detento tornou explosivo o clima de revolta que já havia. De noite decidiram tirar a sorte de quem morreria e de quem mataria. Tocou ao novato o prêmio de ser o carrasco e ele foi imediatamente investido nas novas funções. A vítima seria o Chico Bacuri, que estava lá por causa do furto de um toca-fitas, mas perdeu no par ou ímpar para todos os demais, sem nenhuma exceção. Lá pelas duas da madrugada o primeiro foi acordado por um dos companheiros de cela. O Bacuri, que não havia dormido, começou a chorar. Quando o primeiro perguntou ao líder como faria o serviço, te vira, dá um jeito e depressa, senão tu vai no lugar dele... e todos achavam graça.


Eu tinha de acabar com o Bacuri, mas não sabia como, ainda fiz uma promessa pra São Francisco do Canindé me dar uma luz para eu encontrar ao menos um estilete, mas não tinha nada, foi então que o santo me ajudou: eu me lembrei que tinham tirado o meu cinturão na delegacia, só andava segurando o cós das calças e o Barrão me perguntou se eu queria um pedaço de barbante, claro que aceitei e aquilo, abaixo de São Francisco, salvou a minha vida, pois com ele eu enforquei o Bacuri, quem segurou ele foi o Pé de Pato, o Manga Rosa e o Doido, disseram que depois eu tinha de pagar a eles este favor, pagar com que eu ainda num sei, só se for com mais reza pra São Francisco do Canindé, me lembro também que o Porco acendeu uma vela que eu pensei que era pra botar na mão do Bacuri quando ele tivesse morrendo, mas era só pra clarear e nós enxergar melhor, o porco só queria ver, o Bacuri estrebuchou muito, mas quanto mais estrebuchava, mais raiva eu tinha, tirei o barbante da cintura e enrolei no pescoço e ele me pediu pela luz dos olhos da minha mãe para eu não matar ele, aí minha raiva acabou, agora eu sentia vontade de matar o Bacuri do mesmo jeito que tinha desejo de comer aquelas comidas boas dos restaurantes de bacana, minha boca se encheu d’água quando comecei a apertar o barbante no pescoço do Bacuri, ele estrebuchou mais e botou meio palmo de língua pra fora antes de ficar roxo e parar de suspirar...


 

RAYMUNDO SILVEIRA é médico e escritor. Como médico, foi editor da Revista FEMINA, órgão oficial da Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia. Como escritor, publicou mais de trinta livros eletrônicos. Parte de sua obra foi traduzida para o Inglês, o francês, o espanhol e o alemão.

 


 

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