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diário de guerra
Antunes Filho é o maior
diretor de teatro brasileiro e um dos maiores do mundo. Tem todas as
condições possíveis para realizar confortavelmente seu trabalho: uma sede
em São Paulo num dos mais bem equipados teatros do Sesc e verbas dignas da
União Européia. Preocupado com a formação, criou o CPT (Centro de Pesquisa
Teatral), onde mantém um curso para atores disputadíssimo – todo ano se
inscrevem cerca de 600 pessoas para apenas 20 vagas. Dirige com seu grupo
aproximadamente 1 espetáculo por ano, embora algumas vezes se permita
ficar fechado pesquisando, ou viajando com seu repertório por festivais
internacionais. Antunes já nos deu obras brilhantes: sua versão de
Macunaíma, que se inscreve como um dos maiores espetáculos já realizados
no Brasil; seu Vereda da Salvação, chocante e avassalador; um Romeu e
Julieta belíssimo, um Macbeth catártico; todas as suas montagens de textos
de Nelson Rodrigues, que serviram para ampliar radicalmente nossa
compreensão da obra do dramaturgo... Também contribui com suas idéias
acerca da arte do ator: criou um método de interpretação que consiste em
uma série de complexos exercícios corporais e vocais, que vêm acompanhados
de um estudo profundo sobre o Zen e a Física Quântica e Jung, visando
criar no homem/ator uma nova perspectiva em relação à vida e à arte. Esse
método, que ele proclama ser a síntese para as proposições de Stanislavski
e de Brecht (“Ser e Não Ser, eis a solução”), resulta no que ele chama de
Nova Teatralidade: uma forma de atuação em que o ator, livre de qualquer
ansiedade ou tensão, com uma voz claríssima e uma dicção perfeita dignas
das grandes damas do teatro inglês, com um corpo que produz signos o tempo
todo e que está com um perfeito equilíbrio de yin e yang em sua qualidade
de movimento, é um veículo de cosmogonias, passando ao largo de qualquer
clichê ou estereótipo e proporcionando ao espectador uma visão ampla e uma
compreensão mítica da vida humana. Esse ator não está preocupado em se
emocionar, o que ele quer é a expressão da emoção. Trata-se, portanto, de
um desenho, e não de possessão por parte da entidade personagem. Temos aí
o Paradoxo do Comediante de Diderot (quem se emociona é a platéia, não o
ator), misturado com uma visão espiritual da existência – o mito de Shiva,
a deusa que cria e destrói mundos o tempo todo, numa dança que é o próprio
movimento do universo em transformação perpétua. Para Antunes, a arte do
ator é uma dança de Shiva: criação e destruição de imagens, de emoções, de
arquétipos, de mundos, num movimento constante, leve e desapegado de
ansiedades ou sofrimentos. Deu pra entender?
Antunes Filho faleceu
sexta-feira, dia 9 de setembro, no Teatro Sesc Ginástico, na noite de
estréia de sua última criação, Antígona de Sófocles. Apresentou-nos um
espetáculo absolutamente morto, com atuações sofríveis, nas quais os
atores mais pareciam estar sendo dublados pelos mesmos profissionais que
trabalham nos filmes americanos exibidos na Sessão da Tarde. Clichês,
estereótipos, tudo que o diretor diz detestar; os dois coros (dos velhos e
das bacantes) eram previsíveis em sua movimentação, sem criatividade ou
graça, uma caricatura dos grandes coros que Antunes regeu em Macunaíma.
Toda a peça, aliás, parece uma caricatura do trabalho de Antunes: comida
velha e requentada. Artificial demais, o desenho vocal/corporal se tornou
uma armadura de gesso ao redor dos tensos atores; o palco se tornou um
museu recheado do mais rasteiro senso comum, e em momento nenhum a peça
chegou à platéia, que assistia a tudo sem ser tocada. Trata-se, essa
Antígona, de informação velha, que Antunes já nos deu antes e já nos deu
muito melhor: o coro já foi melhor, o trabalho de voz já foi melhor, a
sinfonia de gritos já foi melhor... A marca do diretor se impõe
ostensivamente o tempo todo, e isso surpreende no caso de Antunes, que
sempre se disse pronto para comer novas frutas da árvore do conhecimento,
que sempre se orgulhou de matar o passado para deixar vir o novo. A
musicalidade da peça (a orquestração de sons e silêncios que Antunes faz)
tem todo o ranço de um teatro que morre junto com sua figura mais
emblemática: o Teatro do século XX.
Pois se no caixão está
o corpo de Antunes, com algodão no nariz e tudo, o enterro não é só dele
mas sim daquilo que ele representa mais do que ninguém aqui no Brasil: O
TEATRO DO SÉCULO XX. Morrem também Gerald Thomas, a idéia de método de
interpretação propagada por Grotowski, os grandes diretores italianos do
pós-guerra, a vanguarda pós-moderna européia e americana dos anos 80-90,
etc, etc... Mortos, todos, mas assombrando como espectros onipresentes;
esclerosados, todos, já deram o que tinham que dar e agora só repetem o
que já disseram antes – e repetem pior, cansados que estão. É imperioso
que nos livremos dessa montanha de panos velhos que nos sufocam e nos
impedem de pensar e criar a partir de novas perspectivas, condizentes com
nosso tempo e nossa sensibilidade. Porque cada geração tem que descobrir o
seu próprio jeito de fazer as coisas. Ou descobrimos o nosso jeito (como
esses caras descobriram em suas épocas) ou não valemos nada. Simples
assim.
Roberto Alvim, 30 anos, é dramaturgo, diretor, ator e professor de História do Teatro na CAL (Casa das Artes de Laranjeiras). Autor de 11 peças, seus últimos trabalhos no Rio foram: PELECARNESANGUEOSSOS, Todas as Paisagens Possíveis, Qualquer Espécie de Salvação, Às Vezes É Preciso Usar um Punhal para Atravessar o Caminho, Vagina Dentata e Mundo Pânico. Atualmente exerce a função de Diretor Artístico do Teatro Ziembinski.
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