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a arte da astúcia | ricardo pinto


a rosa de Paracelso

 

 


As coisas nascem coisas para o uso;

as coisas se tornam humanas pelo abuso
Herbert Quain
 

 

Há um verso de Paul Celan que me atrai, e que penso diariamente, aninhando-o como uma coisa familiar, dessas que nos acompanham. “Os rios ao norte do futuro”. Alguma coisa que está fora do futuro, além dele, e que, no entanto, mesmo fora do tempo discernível, é palpável, localizável.

Para mim é uma boa fórmula, especialmente considerando que o próprio futuro parece ter se desfeito, e que se antes ele era a dimensão em que podíamos pôr nossa fé e conforto, agora é um lugar de ansiedade. O futuro parece ter se perdido, e junto dele todas aquelas aspirações justas ou absurdas com que o povoávamos e nos certificávamos de que éramos gente. Onde o nosso conforto? Não no futuro, que parece mais e mais algum pesadelo estranho repleto de pólvora e de shoppings. Eu lembro de um livro de Michel Löwy sobre a Europa Central no início do século XX(Utopia e Redenção). Ele mostrava o quanto um conjunto de gênios do porte de Kafka ou Benjamin construiu suas obras sob a influência destas palavras mágicas, Utopia e Redenção. Mais ou menos na mesma época os surrealistas acreditavam que o sonho poderia salvar o homem, e que a transfiguração estava perto, muito perto. 70 anos depois isto parece morar em um universo infantil, não no de homens e mulheres que, de fato, puderam enfrentar a vida. E não eram exatamente visionários, apenas pessoas inteligentes, mas para eles a utopia estava mesmo na esquina, ao alcance da mão, e talvez contassem concluir o esforço de algumas dezenas de gerações de sonhadores e profetas, desde meus queridos Blake e Bakhunin, e o velho Marx. O futuro estava na esquina. Depois veio a 2ª Guerra, e Auschwitz e Hiroshikma e o Stallinismo, e a poluição e os vários ditadores daqui, até finalmente o nosso tempo com a dissolução no desemprego e na violência a varejo. O futuro ficou muito longe, e os esforços reunidos do sonho, da revolta e do desejo foram dispersos. Não é que as coisas tenham piorado, mas parece que elas perderam sua capacidade de melhorar.

Então, aqui estamos nós, agora. E o futuro não parece tão carinhoso, e desassossega como o presente e a realidade pareciam fazer aos modernos. Talvez um Livro do Desassossego escrito hoje tivesse de falar não de um presente desencantado, mas de um futuro inexistente.

E, no entanto... Aqui estamos nós sendo empurrados meio a contra-gosto para frente. Os rios ao norte do futuro. Por que os outros tempos já não são férteis como já foram. O passado não é áureo, mas grotesco, cheio de luzes raras e de muitas sombras. O presente é este tempo em que estamos, e, no que me concerne, está cuidando de se dinamitar (e a nós junto — a não ser que você seja convidado com freqüência para banquetes e orgias — aí, parabéns, fique tranqüilo(a). O futuro a Deus pertence. Mas deus parece ter ficado cansado de ser bonzinho, e se tornou um drogadito ou um neo-nazista, e provavelmente está andando por aí, pensando na melhor maneira de te arrastar. Carregue suas reclamações para quando encontrá-lo, mas creio que o melhor nestes casos é enfrentá-lo de peito aberto, com um sorriso.

Sobram os rios ao norte do futuro, e tocá-los é ainda uma tentativa de festa. Somos seres temporais, e temos de caminhar por passado, presente e futuro. Mas onde o tempo não nos toca, e onde não somos filhos, nem servos, nem súditos, nem empregados, é de lá que podemos ir para o norte do futuro. Onde não devemos nada e não nos ata o dever nem a vergonha, este é um bom lugar para começar a procurar sua face refletida neste espelho, seu corpo limpo nestas águas. Um gesto a mais para não nos afogarmos no rio em que estamos tentando nadar, um gesto a mais para passar para uma outra margem.

Desertados já de tanta coisa, parece uma cretinice pedir um gesto a mais. Mas já vi tantos amigos em uma velhice prematura, mimetizando a aspiração mais íntima de nosso tempo — um grande asilo, ou os catálogos de leilões que encontramos nos sebos, a memória do que foi criado há décadas e séculos, e comprado, e vendido, e pronto para mil gastos menos o daquele que viria do abuso e da vida. Exaustos antes de começar. E digam, digam: o que há de mais triste do que isto?

Nada de novo sob o sol, senão os rios que correm ao norte do futuro. Não se deve esperar chegar a eles através das ferramentas de sempre, que ao menos no momento em que vivemos são apenas para nos acorrentar aos mesmos velhos tristes périplos. Mas se pudéssemos mudá-las e pervertê-las, de modo a produzirem não os objetos de nossa vergonha, mas outros, novos, para usar de fato, talvez pudéssemos tocar novas águas. Talvez criá-las.


 

RICARDO PINTO é poeta e escritor, ou quase. Atua como professor, edita a revista Confraria e é sócio e lavador de dinheiro da editora Confraria do vento. É mestre em Literatura Comparada e teve alguns artigos e poemas publicados em sites e revistas, assim como um livro de poemas Amar-o-mar e Outros Poemas (2000). Está sob investigação da Polícia Federal, mas graças a deus não tem secretária.
 


 

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