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luis maffei


violenta-se uma mulher pondo-a no chão

 

 

 

violenta-se uma mulher pondo-a no chão
(não há violência em temas de alcova),
olhos postos no céu
e boca cerrada tal mãos protetoras

rasgam-se-lhe as roupas e os ossos e
se nela houver um nome para o céu ser dito
nesta hora será um dado da infração

a mulher caída gemerá aos poucos
caso seu violador possa aclarar o moto
das funções
e bastar-se no chão sem que fale
nada

nada

e chega-se ao ponto das preces
a ponto de cruz
e a mulher violentada vê-se aos olhos que olha
ao deixar o céu
e dos gemidos passa a sorrir cômoda
como
a velha piedade dos corpos
 

 

*

 

 

Falta dizer do que são cabelos:
coisas de musas
sim
mas também meras superfícies
coagulantes
onde a nudez se deita e confere
a si mesma
ressurreição e um tipo especial de
pátina.

Por isso os cabelos da mulher,
compridos,
não cheios nem bailantes nem elétricos,
compridos,
são a necessária mesa
promissora e montanhesa mesa
para
o fim do homem.

 

 

*

 

 

a conversa é entre homens
aos gritos e em
gerúndios movimentos:
relampeja a voz: “deixa”,
e franqueiam-se
em arco
as pernas do inimigo amante num resvalo
namorado
de cobiça: “é minha”:
mais que a esfera
a unidade quadrângulo e arco
e o véu onde deitam os homens
em delito
súbito
de ventre.

 

 

*

 

 

É tua curvatura quem me tira
da parede
pro teu quarto:
Mulher de profundas metonímias:
a mesma mão que escorrega para fora
do perigo
do abismo
é aquela que carrega o cesto onde vivem
novos
meus novos dias:
é tua curvatura que me aguarda
água e estrada
para a sebe de estações
veraneadas.

 

 

*

 

 

peso para papel pode ser
Bandeira
ou
Beethoven
em estado pré-parto

mas

pauta pode ser
ausência
ou
coisas de Marte,
depende só de ti.

peso para papel ainda é
Mariana
ou
Shostakovich
se preferires a glória impressa
em alguns preciosos metais
populares

marcas de batom no papel podem ser
livros
ou
religiões à margem
dê-se o nome que se der
à escolha

peso para papel ainda pode ser
corpo
ou
taça
ou
alguma coisa em estado de morte
 

 

 

geografia
 


Kolomitzeff Mikhail o russo-sino pondo
Mariana a filha inda criança que
nem tão criança mais
passou a pôr-me em tremedeira de horizontes
a ouvir Bach o alemão autor de uns
contrapontos que haja lido em Schöenberg
o austríaco
eu não vi. nem vi seu corpo quando
nem um corpo só a jura de
calêndula no nervo na vértebra dobrada
junto ao arco de futuro violoncelo
teso ouvia pelos baixos mesmo o tempo
do permeio em concertino que vazava a
geografia do futuro
visto
e ela nua a crava do concerto apenas em desenho
exposto em pauta e dança húngara
a galrear silêncio entre países
 


 

Dimitri Shostakovich
 


A primeira morte é como um poder supremo:
seca
mesquinha
ao mesmo tempo lúcida qual a gravidade dos bêbados ou de
certas madeiras.
Ela é capaz de concretos e de
paciências, ainda que de nada
sirva
um reverbério.
A primeira morte não surge
enfim
do nada: surge da contrição
dos lapsos
da memória de sangrar como um García Lorca ou um
qualquer.

A primeira morte é assim:
montes de vidro
roto
sobre a mesma desfaçatez de sempre.

Não existe a segunda morte.

 

 

quadratura


Olhos: dois: quatro: vozes
em supremo impossível seqüestro.
Figura equívoca moldada em miscelânea
pura
e processos inexpugnáveis de vibrato
e
apoplexia.
Assim como as paredes
camas
sem que para tanto seja um pressuposto

assim como és cores secundárias
palpebradas
curvilíneas
sem que para tanto seja pressuposta

alguma

quadratura

 

 

 

a Astor Piazzola


Minha nuca ainda está curvada
para a ponta da tua língua
e por teus dedos,
digitais que nunca vão deixar meu ledo corpo.
Sobre meus flancos
as linhas cruzadas da espiral tua,
rompante e estilhaços,
pregos alcoólicos.
Contra o baixo ventre
o inverno, e
a cama fingindo ser chão
de madeira.

Depois da morte
veremos
como soam os campanários.

 

 

 

Francisco de Goya


como sabes, o pincel não se molha,
a maneira correta de lhe dar função é
esquecer:
assim, pode-se dar de memória aquilo que também
sabes:
um segredo um crucifixo ou
a sombra de uma leve condenação:
o pincel esquecido, pensa nos
abismos, nos umbrais,
naquilo tudo que
debalde
berra com urgência de passado memorável:
colossal
feixes ainda assim do
esquecimento
do fracasso
ou o mesmo espasmo de verdade
imensurável:

 

 

les demoiselles de Guiverny, de Monet


Olha, meu amor, de braços dados a mim:
aquelas são as raparigas de Giverny, les demoiselles,
e onde vês aquilo tudo verde
penso ser o campo, a grama que poderíamos pisar se fôssemos
de tinta.
Mais além, perto da moldura,
um azul que mais parece o céu
do que um risco carregado de superstição.
Ou fidelidade?
E as raparigas, de costas, e nada nos sugere que sejam mesmo
raparigas,
pois isso não passava de uma impressão.
Nada mal para quem acreditava em seu mundo.

Mas nós, meu amor, tu e eu,
aqui nesse teatro em desabrigo,
tornamo-nos discretos e cientes da perspectiva dos assaltos,
nossos braços se perguntando intimamente em arrepio se,
de fato,
vemos grama, azul e raparigas.
Não sei se importa.
Sei apenas que de mãos dadas ficaremos,
mas bem cedo,
antes que, num susto,
sejamos apanhados olhando Giverny, de costas
para o mundo
e
para o medo.
 

 

LUIS MAFFEI, brasiliense, 31 anos, é doutorando e professor de Literatura Portuguesa na UFRJ. Compositor e músico, acaba de lançar, em parceria com Marcelo Gargaglione, o disco Na Mesma Situação de Blake. Tem artigos publicados sobre literatura e é freqüente colaborador da revista Fórum Democrático, escrevendo sobre música.


 

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