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helena ortiz


três machos sem direito a cópula

 

 

 

fraternal


três machos sem direito a cópula
cagam três vezes ao dia
num cativeiro moderno

recolha-se a merda
banho e ração
Ralph, Mateus e Subcomandante
pastores pastoreando passarinhos
ó como eu gosto de animais

três machos sem direito a cópula
ouvem o canto da sereia
no quintal de seu monastério

atacam-se decepando orelhas
mordem saco lombo jugular
em meio a latidos vão fazendo
vermelha a arena do combate

agora aí estão lambendo-se
lambendo-se as feridas como irmãos

 

 

 

despedida
 


pratos e lençóis o dia
acossado e atento
meu corpo inaugurado
meu desejo
um sangue branco
de pudor e medo

a mãe de costas
o cachorro alerta
um zumbido tonto
de terror e ânsia
a torneira aberta
disfarçando o rito

um dia não voltaste
a mãe veio vazia
perguntei
mataste?
não respondeu
nem eu queria

vesti o que tinha
o resto numa trouxa
o tempo em que fizeste
ouvidos moucos
rígida e fria
eu te matava aos poucos
 

 


seita


sobretudo amarelo
encarnado súbito
sólido círculo
solo de solidão
sobranceira
cimo do céu do oceano

fosforesce astro sagaz
maravilha máxima
magno soberano
sumo poder suntuoso
situado em
sólio supremo
antes depois:

                Habemus Sol!

 

 

 

misérias


porcelana vira pedra de escândalo vira
poeira racha a rocha vira
rastilho no rastro respinga
a parede branca (parece branca)
respira (e exala)
cheiro forte que em trânsito ferve
vira líquido
(tanto líquido que parece pouco)
espalha-se cúpido
ríspido destila o mais pequeno o miúdo
menor que mínimo
ínfima partícula
ainda assim veneno verde-sujo
vírus invade iracundo
o silêncio dos órgãos
prossegue rói arruína
conceito crença
é calúnia!
(como a querer tirar da pele preta
o preto)
subtrai ainda
(é possível)
ar
sentido
o que reste
 

 


dilúvio


as águas cobrem as ruas
arrastando tudo

do outro lado junto ao muro
minha mãe. só os olhos
pedem que a recolha

tenho força de mil cavalos
e aquela flor
contra a corrente

tomo minha mãe nos braços
ela se encolhe
aqueço-a em meu colo
e devolvo-lhe o leite
 

 


fome para todos


o homem chega ao trabalho
cumprimenta os colegas
alguns não respondem

lá dentro as cortinas o papel as máquinas
o pretenso comprador e sua pose

na hora do almoço todos vão ao restaurante
ele vai ao cais onde sopra a brisa

abre um livro e por momentos
é um homem sem paredes

retorna ao trabalho
cumprimenta os colegas
alguns não respondem
não importa

está saciado de uma outra fome
 

 


coadjuvante sem fala


calado
enredou-se em cordas
não atende
ao que pedem as pernas

no pescoço
– raiva ou promessa –
pendurou pedras
e o olhar ultrapassa
a curiosidade dos pedestres

não estende a mão
pouco se importa
com o cheiro que exala
alisa a pedra
cata piolho
em repouso de correntes
 

 


intriga


máquina veloxcidade
papiro eletrônico dita sentença
espadachim espadaúdo mouro
espeta o capetinha
conspiradores gozam
a corte comenta
guerreiro agoniza
no muro

glória nenhuma
 

 

 

palavras feias


do ombro ao cotovelo
descendo
cintura sexo joelho
crescente carícia em cada
orifício a latejar no escuro
num afã de mãos
senha sinal insistência
suposição talvez
de alguma improvável
resistência

explicação nenhuma
quem sabe vício
memória de outro poço
não importa
do pé ao pescoço
poema gemido
a partir da segunda estrofe
duma lonjura (parecia)
chegavam palavras feias
(ele dizia tantas)

sem nome ou dia definido
não sentir o chão
apenas vislumbrar seus dentes
brancos bruscos cintilantes
e o grave (sábio) movimento
dos seus duzentos dedos



girassóis sobre tela


cenário de flores ardentes
cabos longos folhas ralas
vaso encarnado
tampo de mesa baixa
sem cobertura
sem truques de boniteza
exposta a um tanto de vento e cupim
sóbria (não solene)
devastada a pó e pólvora
(sinais de rastilhos)
três pernas
(inútil para a guerra)

o vaso:
grande e rotundo na base
mais fino para cima.

silhuetas fantasmas de flores
cada caule molhado e morno
pétalas suspiram a mesa (são respingos)
explodem os girassóis
rompem os caixilhos
eram feixes esses caixilhos
corolas exalam o desejo
amarelo ouro
movem-se os pistilos
flores novas plasmam a cena

recendem
a cada cheiro de flor
 

 


diagnóstico


é fácil reparar que já partimos
jogamos as cartas
às feras

foi-se ao mar o desejo
e com o vento
fecharam-se as janelas

não queremos recordar
não é mais hora
já batem à porta
à nossa espera

não teremos mais uma palavra amável
um suspiro sutil
um verso varando o dia

seguiremos avaros:
duros
armados
de colete
 

 

HELENA ORTIZ, gaúcha radicada no Rio de Janeiro, é uma das autoras mais ativas da cena poética carioca. Além de editar o jornal Panorama da Palavra, organiza diversos encontros literários pela cidade. Fundadora da Editora da Palavra, selo voltado para a poesia, é autora de quatro livros: Pedaço de Mim (1995), Azul e sem Sapatos (1997), Margaridas (1997) e Em Par (2001). Os poemas acima integram seu próximo livro Sol sobre o Dilúvio. Sua página é www.panoramadapalavra.com.br.


 

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