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julio cortázar


primeiros contos
 

JULIO CORTÁZAR (1914-1984), Um dos maiores contistas do século XX, avatar, junto de Borges, da literatura fantástica e da argentinidade cosmopolita, também foi jovem um dia. Borges nos conta que no ano de 1945 “Sendo eu editor de uma revista chamada Os Anais de Buenos Aires recordo a visita de um jovem alto que apareceu em meu escritório e me estendeu um manuscrito. Disse-lhe que o leria e que voltasse ao cabo de uma semana. A história se intitulava A Casa Tomada. Disse-lhe que era excelente”.

Mas, antes de ser o escritor genial de Bestiário (1951) e de Todos os Fogos o Fogo (1967), e de ter revolucionado definitivamente, para nosso maravilhamento e complicação, o romance moderno com Rayuela (O Jogo da Amarelinha, 1963), Cortázar foi um aprendiz de gosto e talento duvidosos, como poderemos comprovar pela leitura de seus dois primeiros contos (ambos de 1937, quando contava com 23 anos), que, junto de algumas outras narrativas foram reunidos em um daqueles volumes renegados (La otra orilla, 1945) que fazem a vergonha dos gênios e o prazer dos fãs.

Os dois contos, O Filho do Vampiro e As Mãos que Crescem (traduzidos aqui pela primeira vez por Ricardo Pinto), aparecem em uma seção do livro chamada “plágios e traduções”, título auto-explicativo. São re-elaborações de temas que aparecem nas histórias de horror populares, à época chamadas de góticas, e que serviram de espinha para o gênero que hoje chamamos de trash. Estão bem longe do Cortázar genial, mas já podemos pressenti-lo em certos elementos das histórias, como a ironia bem-humorada, uma certa crueldade com os protagonistas e o fascínio de usar lugares distantes para falar da velha Buenos Aires. Na segunda metade de sua vida, Cortázar começa a produzir uma literatura cada vez mais relacionada às tragédias históricas da América Latina, e sua fama cresce paralelamente a seu comprometimento com causas como o fim da Ditadura na Argentina, a defesa da Revolução cubana e a luta pelos direitos humanos. Um de seus contos (Las Babas Del Diablo, de Las Armas Secretas, 1959), serviu de base para o roteiro do filme Blow Up (Depois Daquele Beijo, de Michelangelo Antonioni), um dos ícones de uma liberdade sonhada nas décadas de 60 e 70.

Cortázar morreu em 1984, a tempo de ver sua Argentina sem vampiros (ou quase, sabemos o quanto os vampiros são persistentes e pegajosos). Sofria de gigantismo.
 

 

 

o filho do vampiro (1937)



Provavelmente todos os fantasmas sabiam que Duggu Van era um vampiro. Não o temiam, mas lhe abriam caminho quando saía de sua tumba precisamente a meia-noite e entrava no antigo castelo a procura de seu alimento favorito.


O rosto de Duggu Van não era agradável. O muito sangue bebido desde sua morte aparente — no ano 1060, pelas mãos de um menino, novo David aramado de uma funda-punhal — havia infiltrado em sua opaca pele a coloração branda das madeiras que ficaram muito tempo debaixo d’água. O único vivo, nesta cara, eram os olhos. Olhos fixos na figura de Lady Vanda, dormida como um bebê no leito que não conhecia mais que seu delicado corpo.


Duggu Van caminhava sem fazer ruído. A mescla de vida e morte que informava seu coração se resolvia em qualidades inumanas. Vestido de azul escuro, acompanhado sempre por um silencioso séquito de perfumes rançosos, o vampiro passeava pelas galerias do castelo buscando vivos depósitos de sangue. A indústria frigorífica o havia deixado indignado. Lady Vanda, adormecida, com uma mão sobre os olhos como em uma premonição de perigo, se assemelhava a um bibelô repentinamente tíbio. E também a relva propiciatória, ou uma cariátide.


Louvável costume de Duggu Van era de nunca pensar antes da ação. Na permanência e junto ao leito, desnudando com a levíssima carcomida mão o corpo da rítmica escultura, a sede de sangue começou a ceder.


Que os vampiros se apaixonem é coisa que na lenda permanece oculta. Se ele tivesse meditado sobre isto, sua condição tradicional talvez o tivesse detido na fronteira do amor, limitando-o ao sangue higiênico e vital. Mas Lady Vanda não era para ele uma mera vítima destinada a uma série de oferendas. A beleza irrompia de sua figura ausente, batalhando na justa metade do espaço que separava ambos corpos, com a fome.


Sem tempo de sentir-se perplexo, ingressou Duggu Van no amor com voracidade estrepitosa. O atroz despertar de Lady Vanda atrasou um segundo suas possibilidades de defesa. E o falso sono do desmaio teve de entregá-la, branca luz na noite, ao amante.


É certo que, de madrugada e antes de se ir, o vampiro não pôde com sua vocação e fez uma pequena sangria no ombro da desvanecida castelã. Mais tarde, ao pensar naquilo, Duggu Van guardou para si que as sangrias acabavam sendo muito recomendáveis para os desmaiados. Como em todos os seres, seu pensamento era menos nobre que o ato simples.

No castelo houve um congresso de médicos e peritâncias pouco agradáveis e sessões conjuratórias e anátemas, e além de tudo uma enfermeira inglesa que se chamava Miss Wilkinson e bebia genebra com uma naturalidade emocionante. Lady Vanda esteve um largo tempo entre a vida e a morte [sic]. A hipótese de um pesadelo demasiado verossímil ficou abatida diante de determinadas comprovações oculares; e, além disso, quando transcorreu um lapso razoável, a dama teve a certeza de que estava grávida.


Portas fechadas com Yale haviam detido as tentativas de Duggu Van. O vampiro tinha de alimentar-se de crianças, de ovelhas, até de — horror! — porcos. Mas todo sangue lhe parecia água diante daquele de Lady Vanda. Uma simples associação, da qual não o livrava seu caráter de vampiro, exaltava em sua lembrança o sabor do sangue onde havia nadado, guloso, o peixe de sua língua.


Inflexível tumba sua na paisagem diurna, era-lhe preciso aguardar o canto do galo para se lançar fora, desencaixotado, louco de fome. Não havia voltado a ver Lady Vanda, mas seus passos o levavam uma ou outra vez à galeria terminada na redonda burla amarela da Yale. Duggu Van estava visivelmente acabado.

 

Pensava às vezes — horizontal e úmido no seu leito de pedra — que talvez Lady Vanda fosse ter um filho seu. O amor recrudescia então mais que a fome. Sonhava sua febre com violações de ferrolhos, seqüestros, com a ereção de uma nova tumba matrimonial de ampla capacidade. O paludismo se ensaiava nele, agora.


O filho crescia, pausado, em Lady Vanda. Uma tarde ouviu Miss Wilkinson gritar sua senhora. Encontrou-a pálida, desolada. Tocava o ventre coberto de seda, dizia:


— É como seu pai, como seu pai.


Duggu Van, a ponto de morrer a morte dos vampiros (coisa que o aterrava por razões compreensíveis), tinha ainda a débil esperança de que seu filho, possuidor acaso de suas mesmas qualidades de sagacidade e destreza, se tramava para trazer-lhe um dia sua mãe.


Lady Vanda estava dia a dia mais branca, mais aérea. Os médicos maldiziam, os tônicos cediam. E ela, repetindo sempre:


— É como seu pai, como seu pai.


Miss Wilkinson chegou à conclusão de que o pequeno vampiro estava desangrando a mãe com a mais refinada das crueldades.


Quando os médicos se inteiraram de um aborto plenamente justificável; mas Lady Vanda se negou, virando a cabeça como um ursinho de pelúcia, acariciando com a mão direita seu ventre de seda.


— É como seu pai — disse — como seu pai.


O filho de Duggu Van crescia rapidamente. Não apenas ocupava a cavidade que a natureza lhe concedera, mas invadia o resto do corpo de Lady Vanda. Lady Vanda agora mal podia falar, não sobrava sangue; se algum tinha, estava no corpo de seu filho.


E quando veio o dia fixado pelas lembranças para o parto, os médicos se disseram que aquele ia ser um parto estranho. Em número de quatro cercaram o leito da parturiente, aguardando que fosse a meia-noite do trigésimo dia do nono mês do atentado de Duggu Van.


Miss Wilkinson, na galeria, viu aproximar-se uma sombra. Não gritou porque estava certa de que com isto não ganharia nada. É certo que o rosto de Duggu Van não era para provocar sorrisos. A cor terrosa de sua cara se havia transformado em um relevo uniforme e violáceo. Em vez de olhos, duas grandes interrogações chorosas se balançavam debaixo do cabelo comprimido.


— É absolutamente meu — disse o vampiro com a linguagem caprichosa da sua seita — e ninguém pode interpor-se entre sua essência e meu afeto.


Falava do filho; Miss Wilkinson se acalmou.


Os médicos, reunidos em um ângulo do leito, tratavam de demonstrar um ao outro que não tinham medo. Começavam a perceber mudanças no corpo de Lady Vanda. Sua pele se tornara repentinamente escura, suas pernas se enchiam de relevos musculares, o ventre se aplainava suavemente e, com uma naturalidade que parecia quase familiar, seu sexo se transformava no contrário. O rosto já não era o de Lady Vanda. As mãos já não eram as de Lady Vanda. Os médicos tinham um medo atroz.


Então, quando bateram as doze, o corpo de quem havia sido Lady Vanda e era agora seu filho se endireitou docemente no leito e estendeu os braços na direção da porta aberta.


Duggu Van entrou no salão, passou diante dos médicos sem os ver, e cingiu as mãos do seu filho.


Os dois, olhando-se qual se conhecessem desde sempre, saíram pela janela. O leito ligeiramente enrugado, e os médicos balbuciando coisas ao seu redor, contemplando sobre as mesas os instrumentos do ofício, a balança para pesar o recém-nascido, e Miss Wilkinson na porta, retorcendo as mãos e perguntando, perguntando, perguntando.

 

 

As mãos que crescem



Ele não havia provocado. Quando Cary disse: “Você é um covarde, é um canalha, e, além de tudo, um mau poeta.”, as palavras decidiram o curso das ações, tal como costuma ocorrer nesta vida.


Plack avançou dois passos na direção de Cary e começou a lhe bater. Estava bem certo de que Cary lhe respondia com igual violência, mas não sentia nada. A não ser por suas duas mãos que, a uma velocidade prodigiosa, arrematando a carga fulminante dos braços, iam dar no nariz, no pescoço, no peito, nos ombros de Cary.


Bem de frente, movendo o torso com um balanço rapidíssimo, sem retroceder, Plack golpeava. Seus olhos mediam por inteiro a silhueta do adversário. E melhor ainda posicionava suas próprias mãos; percebia-as bem fechadas, cumprindo a tarefa como pistões de automóvel, como qualquer coisa que cumprisse sua tarefa, movendo-se ao compasso de um balanço rapidíssimo. Batia em Cary, seguia batendo, e cada vez que seus punhos se fundiam em uma massa escorregadia e quente que sem dúvida era a cara de Cary, ele sentia o coração jubilar por inteiro.


Por fim baixou os braços, os colocou descansando junto ao corpo. Disse:
 

— Já tem o bastante, estúpido. Adeus.


Pôs-se a caminhar, saindo da sala na Prefeitura pelo corredor que conduzia à rua ao longe. Suas mão haviam se saído bem. Trouxe-as para frente de si para admirá-las; a ele pareceu que tanto golpear as havia inchado um pouco. Suas mãos se saíram bem, que demônios; ninguém questionaria se ele era capaz de boxear com quem quer que seja.


O corredor se estendia sumamente longo e deserto. Por que demorava tanto em percorrê-lo? Talvez o cansaço, mas se sentia leve e suspenso pelas mãos invisíveis da satisfação física. As mãos...? Não existia no mundo mão comparável as suas mãos; provavelmente tampouco as havia tão inchadas pelo esforço. Voltou a olhá-las, balançando como se faz com bielas ou meninas a passeio; sentiu-as profundamente suas, atadas a seu ser por razões mais fundas que a conexão dos pulsos. Suas doces, suas esplêndidas mãos vencedoras.


Assoviava, marcando o compasso com a marcha pela interminável passagem. Apesar disso, ainda sobrava uma grande distância para alcançar a porta de saída. Mas, o que importava, afinal? Na casa de Emilio se comia tarde, apesar de que, na verdade, ele não iria almoçar na casa de Emilio, mas sim no apartamento de Margie. Almoçaria com Margie, pelo mero prazer de dizer a ela palavras carinhosas, e retornaria logo para terminar o trabalho do dia. Muito trabalho, na prefeitura. Não bastavam todas as mãos para cumprir a tarefa. As mãos... Mas as suas é que haviam estado atarefadas um minuto antes. Bater e bater, vingadoras; talvez por isto lhe pesavam tanto agora. E a rua estava longe, e era meio-dia.


A luz da porta começava a agitar-se na atmosfera visual de Plack. Deixou de assoviar; disse: “Bliblug, bliblug, bliblug”. Lindo, fala sem motivo, sem significado. Então, foi quando sentiu que algo arrastava pelo chão. Algo que era mais que algo; coisas suas estavam arrastando pelo chão.


Olhou para baixo e viu que os dedos de sua mão arrastavam no chão.


Os dedos de sua mão arrastavam no chão. Dez sensações incidiam sobre o cérebro de Plack com a colérica anunciação das novidades repentinas. Ele não queria aceitar, mas era certo. Suas mãos pareciam orelhas de elefante africano. Gigantescas telas de carne arrastando pelo chão.


Apesar do horror, lhe ocorreu uma risada histérica. Sentia cosquinhas no dorso dos dedos; cada junção dos ladrilhos era sentida como uma lixa pela pele. Quis levantar suas mãos, mas não pôde com ela. Cada mão devia pesar quase cinqüenta quilos. Nem sequer conseguiu fechá-las, Ao imaginar os punhos que formariam, se sacudiu de riso. Que manoplas! Voltar até Cary, em segredo e com os punhos como barris de petróleo, estender em sua direção um dos barris, abrindo-o lentamente, deixando aparecer as falanges, as unhas, meter Cary dentro da mão esquerda, sobre a palma, cobrir a palma da mão esquerda com a palma da mão direita e esfregar suavemente as mãos, fazendo Cary girar de um extremo a outro, como um pedaço de massa de talharim, como Margie nas quintas ao meio-dia. Fazê-lo girar, assoviando canções alegres, até deixar Cary mais moído que uma galinha velha.


Plack alcançava agora a saída. Mal podia mover-se, arrastando as mãos pelo chão. A cada irregularidade do piso, o eriçar furioso dos seus nervos. Começou a maldizer em voz baixa, parecia que tudo se tornava vermelho, mas em alguma coisa influía o vidro da porta.


O problema capital era abrir a maldita porta. Plack resolveu soltando uma patada e metendo o corpo quando a folha bateu do lado de fora. Contudo, as mãos não passavam pela abertura. Pondo-se de costas, quis fazer passar primeiro a mão direita, depois a outra. Não pôde fazer passar nenhuma das duas. Pensou: “Deixá-las aqui”. Pensou-o como se fosse possível, seriamente.


— Absurdo — murmurou, mas a palavra era já como uma casca vazia.


Tratou de acalmar-se, e se deixou cair à turca diante da porta; as mãos ficaram como que adormecidas junto aos minúsculos pés cruzados. Plack as olhou atentamente; fora o aumento, não haviam mudado. A verruga do polegar direito, à exceção de que seu tamanho era agora o de um relógio despertador, mantinha a mesma bela cor de azul–mar Adriático. O corte das unhas persistia em sua prolixidade (Margie). Plack suspirou profundamente, técnica para acalmar-se; o assunto era sério. Muito sério. O bastante para enlouquecer a qualquer um que pensasse nisso. Mas, conseguia sentir de verdade o que sua inteligência lhe mostrava. Sério, assunto sério e grave; e sorria ao dizê-lo, como em um sonho. De repente se deu conta de que a porta tinha duas folhas. Endireitando-se, aplicou uma patada à segunda folha e pôs a mão esquerda como tranca. Lentamente, calculando com cuidado as distâncias, fez passar pouco a pouco as duas mãos à rua. Sentia-se aliviado, quase feliz. O importante agora era ir à esquina e pegar em seguida um ônibus.


Na praça as pessoas o contemplaram com horror e assombro. Plack não se afligia, muito mais estranho fora que não o contemplassem. Fez com a cabeça um violento gesto ao motorista de um ônibus para que detivesse o veículo na mesma esquina. Queria subir, mas suas mãos pesavam demais e se esgotou ao primeiro esforço. Retrocedeu sob a avalancha de agudos gritos que surgiam do interior do ônibus, onde as anciãs sentadas do lado da janela acabavam de desaparecer em série.


Plack seguia na rua, olhando as suas mãos que estavam se enchendo de sujeira, de pequenas farpas e pedrinhas da calçada. Má sorte com o ônibus, talvez o bonde?


O bonde parou, e os passageiros exalaram horrendos gritos ao perceber aquelas mãos arrastadas no chão e Plack no meio delas, pequenino e pálido. Os homens estimularam histericamente o condutor para que arrancasse sem esperar. Plack não pôde subir.


— Tomarei um táxi — murmurou, começando lentamente a desesperar-se.


Abundam os táxis. Chamou um. O táxi parou sem vontade. Havia um homem negro ao volante.


— Praderas verdes! — balbuciou o negro — Que mãos!


— Abre a porta, sai, pega minha mão esquerda, sobe com ela, pega minha mão direita, sobre com ela, me empurra para entrar no carro, mas devagar, assim está bem. Agora me leva até a rua Doze, número quarenta setenta e cinco, e depois vai pro mesmo inferno, negro de todos os diabos.


— Praderas verdes!— disse o motorista, já retornado à tradicional cor cinza — Está certo de que estas mãos são suas, senhor?


Plack gemia em seu assento. Mal havia lugar para ele: as mãos ocupavam todo o piso, transbordavam para o assento. Começava a resfriar e Plack espirrou. Quis instintivamente tapar o nariz com uma mão e por pouco não arranca o braço. Deixou-se estar, abúlico, vencido, quase feliz. As suas mãos descansavam sujas e maciças no chão do táxi. Da verruga, golpeada contra um poste de luz, brotavam algumas gotas de sangue.


— Irei à casa de um médico — disse Plack — Não posso entrar assim na casa de Margie. Por Deus, não posso; ocuparia todo seu apartamento. Verei um médico; vai me aconselhar a amputação, eu aceitarei, é a única maneira. Tenho fome, tenho sono.
Golpeou com a testa o vidro em frente.


— Leve-me à rua cinqüenta, número quarenta e oito cinqüenta e seis. Consultório do doutor September.


Depois se pôs tão contente diante da idéia que lhe acabava de ocorrer que chegou a sentir o impulso de esfregar as mãos de gosto; moveu-as pesadamente, deixou-as estar.


O negro subiu com as mãos até o consultório do doutor. Houve uma espantosa corrida na sala de espera quando Plack apareceu, caminhando atrás de suas mãos, que o negro sustinha pelos polegares, suando rios e gemendo.


— Leve-me até esta poltrona; assim, está bem. Mete a mão no bolso da calça. Tua mão, imbecil: no bolso da calça; não, esse não, o outro. Mais lá dentro, criatura, assim. Tira o rolo de dinheiro, separa um dólar, guarda o troco e adeus.


Desafogava-se no negro subserviente, sem saber o porquê de sua irritação. Uma questão racial, talvez, claro está que sem porquês.


Já duas enfermeiras apresentavam seus sorrisos veladamente em pânico para que Plack apoiasse nelas as mãos. Arrastaram-no trabalhosamente até o interior do consultório. O doutor September era um indivíduo com uma redonda cara de mariposa em bancarrota; chegou para apertar as mãos de Plack, avisou que o assunto exigiria certas forçadas evoluções, permutou o aperto por um sorriso.


— O que o traz aqui, amigo Plack?


Plack olhou-o lastimosamente.


— Nada. — devolveu, displicente — Dói-me a árvore genealógica. Mas você não vê minhas mãos, pedaço de facultativo?

 

— Oh, oh! — admitia September — Oh, oh, oh!


Pôs-se de joelhos e ficou apalpando a mão esquerda de Plack. Dava a impressão de se sentir bastante preocupado. Pôs-se a fazer perguntas, as habituais, que soavam estranhamente agora que se aplicavam ao assombroso fenômeno.


— Muito esquisito. — resumiu com ar convencido — Sumamente estranho, Plack.


— O senhor acha?


— Sim, é o caso mais esquisito de minha carreira. Naturalmente, o senhor me permitirá tirar algumas fotografias para o museu de esquisitices de Pensilvânia, não é? Além disso, tenho um cunhado que trabalha no The Shout, um diário silencioso e reservado. O pobre Korinkus anda bastante arruinado; gostaria de fazer algo por ele. Uma reportagem sobre o homem das mãos... digamos, das mãos extra-limitadas, seria o triunfo para Korinkus. Concederemos a ele esta primazia, não é verdade? Poderíamos trazê-lo aqui esta mesma noite.


Plack cuspiu com raiva. Tremia-lhe todo o corpo.


— Não, não sou carne de circo. — disse obscuramente — Vim aqui tão apenas para que me ampute isto. Agora mesmo, entenda. Pagarei o que seja, tenho um plano que cobre estes gastos. De outra parte estão meus amigos, que respondem ´por mim; no instante que saibam o que me ocorre, virão como um único homem para apertar minha... Bom, eles virão.


— O senhor decide, meu querido amigo. — o doutor September olhava seu relógio de pulso — São três da tarde (e Plack se sobressaltou porque não acreditava que houvesse transcorrido tanto tempo). Se o opero já, lhe tocará passar o pior lá pela noite. Esperamos até amanhã? Nesse tempo, Korinkus...


— O pior estou passando agora. — disse Plack e levou mentalmente as mãos à cabeça — Opere-me, doutor, por Deus. Opere-me... Digo que me opere! Opere-me, homem... não seja criminoso!!! Compreenda o que sofro!! Nunca lhe cresceram as mãos, ao senhor...?? Pois a mim, sim!!! Aí estão...; a mim, sim!!!


Chorava, e as lágrimas caíam impunemente por sua cara e gotejavam até perder-se nas grandes rugas das palmas das suas mãos, que descansavam viradas para cima no chão, com o dorso no piso gelado.


O doutor September estava agora rodeado de um diligente corpo de enfermeiras cada qual mais linda. Sentaram Plack entre todas e puderam suas mãos sobre uma mesa de mármore. Ferviam fogos, cheiros fortes se confundiam no ar. Brilhar de lâminas, de ordens. O doutor September, afundado em sete metros de fantasia branca; e o único que estava vivo nele eram seus olhos. Plack começou a pensar no momento terrível de volta à vida, depois da anestesia.


Encostaram-me docemente, de maneira que as mãos ficaram sobre a mesa de mármore onde se levaria a cabo o sacrifício. O doutor September se aproximou, rindo por baixo da máscara.


Korinkus virá tirar fotos. — disse — Ouça, Pack, isto é fácil. Pense em coisas alegres e seu coração não sofrerá. Despediu-se de suas mãos? Quando despertar... já não estarão contigo.


Plack fez um gesto tímido. Começou a olhar as mãos, primeiro uma e depois a outra. “Adeus, meninas”, pensou, “Quando estiverem no aquário de formol que lhes destinarão especialmente, pensem em mim. Pensem em Margie que lhes beijava. Pensem em Mitt cujos cabelos acariciavam. Perdôo-lhes os males passados, em homenagem à surra que deram em Cary, nesse vaidoso insolente...”.


Haviam aproximado algodões ao seu rosto. Plack estava começando a sentir um cheiro doce e pouco agradável. Tentou um protesto, mas September fez um suave sinal negativo. Então Plack se calou. Era melhor deixar que o adormecessem, distrair-se pensando coisas alegres. Ele não havia provocado. Quando Cary disse: “Você é um covarde, é um canalha, e, além de tudo, um mal poeta.”, as palavras decidiram o curso das ações, tal como costuma ocorrer nesta vida. Plack avançou dois passos na direção de Cary e começou a lhe bater. Estava bem certo de que Cary lhe respondia com igual violência, mas não sentia nada. A não ser por suas duas mãos que, a uma velocidade prodigiosa, arrematando a carga fulminante dos braços, iam dar no nariz, no pescoço, no peito, nos ombros de Cary.


Lentamente, voltava a si. Ao abrir os olhos, a primeira imagem que se colou a eles foi a de Cary. Um Cary muito pálido e inquieto, que se inclinava balbuciante sobre ele.
 

— Meu Deus...! Plack, velho... Jamais pensei que ia acontecer algo assim...


Plack não entendeu. Cary, ali? Pensou; talvez o doutor September, supondo uma possível gravidade pós-operatória, havia avisado aos amigos. Porque, além de Cary, ele via agora os rostos de outros empregados da Prefeitura que se agrupavam em torno de seu corpo estendido.


— Como está, Plack? — perguntava Cary, com voz estrangulada — Você... Você se sente melhor?


Então, de maneira fulminante, Plack entendeu a verdade. Havia sonhado! Havia sonhado! “Cary me acertou um golpe na mandíbula, me fez desmaiar; no meu desmaio sonhei esse horror das mãos...”


Lançou uma aguda gargalhada de alívio. Uma, duas, muitas gargalhadas. Seus amigos o contemplavam, com rostos todavia ansiosos e assustados.


— Oh, grande imbecil! — apostrofou Plack, olhando Cary com olhos brilhantes — Você me venceu, mas espere que eu me refaça um pouco...; vou te dar uma surra que te porá um ano de cama...!


Alçou os braços para dar fé de suas palavras com um gesto conclusivo. Então seus olhos viram os cotocos.
 


RICARDO PINTO (tradutor) é poeta e escritor, ou quase. Atua como professor, edita a revista Confraria e é sócio e lavador de dinheiro da editora Confraria do vento. É mestre em Literatura Comparada e teve alguns artigos e poemas publicados em sites e revistas, assim como um livro de poemas Amar-o-mar e Outros Poemas (2000). Em uma das malas que costuma carregar para cima e para baixo de avião, contrabandeou um livro de Cortázar deslocado entre os milhões. Está sob investigação da Polícia Federal, mas graças a deus não tem secretária.

 


 

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