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eduardo guerreiro
o plano: alquimia da ação
1
A corpulência do dia me arrebata. Ando pela rua suado com a garganta
dolorida. Suor e dor me arrebatam. É a corpulência de sensações que
permanecem, não tem hora para acabar, como um show de rockenrol. O
guitarrista sola, o suor sua, a vocalista grita, a garganta dói, o
baterista bate, carros, pessoas e imagens se percutem cheio da adrenalina
do éter. Legal. A palavra “legal” não me arrebata, mas ela é tão engraçada
que é legal, e é tão legal que me arrebata. Mas não posso abusar de me
arrebatar, a garganta não deixa. No momento ela é a patroa da casa.
Entendam: patroa da casa pressupõe capricho de mulher, e capricho de
mulher que se tornou patroa dói. Garganta e tesão doem de diferentes
maneiras, assim como o ser se diz de diferentes maneiras, segundo
Aristóteles. Mas quando penso no longo grito do vocalista fico mais
tranqüilo, é terapêutico. Por exemplo, aquele do Judas Priest; bem, nem
tudo mundo conhece, então pensem naquele do Iron Maiden mesmo, Bruce
Dickinson. É como o suor escorrendo. Essa sensação de calma terapêutica e
o arrebatamento dos carros, pessoas e imagens até que dão um bom contraste
de elementos, do tipo salgado/doce. Imaginem um alternando o outro.
Imaginem que isso é uma música, ou um cinema. Depois imaginem um
penetrando o outro até ficarem indistintos. É uma idéia legal, eu acho.
Serve para restaurantes, diretores de cinema, compositores, videogames,
metaleiros e afins. Esqueci de dizer editoras.
Não, não é não, esquece. Eu achava legal, mas de um instante para outro
todo meu juízo de valor estético mudou radicalmente para sempre. É como se
ele suasse tanto, tanto, que acabasse doendo, como minha garganta. O
excesso de suor desidrata a sensação terapêutica e volta a doer, encontra
a dor antiga somada à dor nova vinda do excesso de remédio da dor antiga.
Essa idéia é bem complexa. Ela exala o suor do esforço espiritual. É um
suor puro, transcendental. Suor puro pode curar o excesso de suor impuro.
Mas o suor puro em excesso será ainda pior... E assim vai a montanha russa
da circularidade especulativa, incansável, oferecendo muita emoção para o
universo intelectual. São os esportes radicais puros. A corpulência da
filosofia me arrebata.
Bruce Dickinson anunciaria a mudança revolucionária de minha concepção de
mundo com seu longo e agudo grito, sim, longo, embora o instante da
mudança seja curto. Não preciso dizer que esse contraste entre anúncio
longo da mudança e mudança curta faz parte da música; esta, por sua vez,
pode ser longa ou curta de acordo com a preferência da imaginação do
leitor, pois, como escritor, sou um vendido e preciso agradar meu cliente.
Em seguida eu diria sério e compenetrado: agora tudo faz sentido. Como se
a dor acabasse.
Por que o “como se” não muda logo de uma vez o “o que é”? O “como se”
sempre perde tempo. Vou tentar elaborar melhor essa idéia. O “o que é” que
consome o tempo do “como se” (ou o contrário) é um “é” que o “como se” não
participa. Não participa, embora seja a causa do “é” desse tipo específico
do “o que é”. É um tipo muito, muito específico, porque “é” fingindo que
“não é”, só para fazer um charminho de poesia. Esse charminho é parecido
com a lírica juvenil do solo de guitarra. Não adianta nada. Mas agrada a
muita gente. É legal. Lembrem-se que “legal” é um índice de importância
muito elevada para quem um dia vai morrer, e antes disso vai passar vários
momentos sentindo sensações muito semelhantes a dores de garganta,
misturadas com outras tantas em complexas relações contrapontísticas. É um
improviso de Jazz onde “legal” é o solista. Confessem que a palavra
“legal” combina com o swing jazzístico. Adorno concordaria comigo, seria
um forte aliado para essa nova idéia que concebi. Sua combinação é muito
sutil, isso é sinal de que ela deve fazer parte da explicação da
existência. E como Adorno deu sua contribuição para a mesma, acho que
estou num bom caminho. Vou estudar essa hipótese e asseguro que quando
tiver a prova precisa de sua validade ou não, comunico a todos os
interessados. Palavra de honra. A palavra “honra” é legal.
2
O escritor é um vendido, como eu tinha dito acima? Sim, ele vende um
montinho de palavras, e destaca uma ou outra, como “legal”. Depois de
destacar uma palavra, destaca outra através da primeira, como fiz com
“honra”. É um procedimento muito astuto. Assim, cada montinho tem sua
palavra destacada. Ele joga um montinho contra o outro, reconcilia-os,
mistura-os, é um verdadeiro alquimista. Destaca e mistura sempre, como um
regente. Imaginem Beethoven regendo. É como me sinto agora. Garanto que é
uma experiência grandiosa, a gente se sente importante. Uma dica para os
críticos: Thomas Mann, em Morte em Veneza, fala sobre isso. Agora entendo
o que ele quis dizer. Na verdade, sinto-me um pouco culpado. Por que eu?
Por que fui o escolhido? Por que pouquíssimas pessoas no mundo são
escolhidas para experimentar isso, isso que Thomas Mann e Beethoven
experimentaram? Acho que essa é a maior injustiça de Deus. Salieri tinha
razão em se revoltar. Ele foi o único marxista coerente, ele foi o único
marxista existencial legítimo, e não Sartre.
Pressinto que todos os que lerão esse texto modificarão sua visão de mundo
de forma definitiva, embora obscura e subterrânea. Só ficará claro o
significado de todos os montinhos de palavras que arquitetei na próxima
grande revolução da humanidade. Antes disso, sugiro apenas que fiquem
atentos e alertas, como soldados nas trincheiras antes da próxima
investida do inimigo. Se algum de vocês entender a relação oculta entre
essa obra e a revolução por vir, talvez até se tornem os visionários da
hora certa e depois da revolução alcancem a glória. Tudo por causa desse
texto. Basicamente, é para isso que ele serve. Fiquei anos, ou melhor,
décadas dedicando a minha vida inteira, sem parar, a cada palavra aqui
depositada. A maneira de respirar, o que e como olhar, o jeito de andar,
de falar, até o jeito de pensar, tudo isso fui elaborando lentamente
especialmente para escrever esse texto. Usei todos os meus amigos,
mulheres, família e cachorro para tal finalidade sem o consentimento de
nenhum deles, por isso, agora é o momento de pedir desculpas a todos. Foi
necessário. Dedico o texto a todos vocês e seus próximos, porque todos,
todos foram sacrificados pela causa sem a ciência do ocorrido. Cuidei para
que tudo ficasse secreto. Trabalhei como um agente de mim mesmo, um espião
da existência em prol da obra. Fui ator em todos os momentos, sempre atuei
em prol da causa, e nunca, nunca prestei atenção no outro ser humano. Isso
é paradoxal, porque fui quem melhor prestou atenção em todo mundo e todas
as coisas, mas tal atenção servia sempre à obra, nunca à pessoa mesma. Ela
era sempre um instrumento da e para a obra. (Aliás, por isso o gênio está
mais próximo do diabo do que de Deus, Doktor Faustus). Só agora, depois de
tê-lo escrito é que me arrependo do grande aproveitador, do ser cruel, do
psicopata que sempre fui. Fui um criminoso aproveitador de tudo: nuvens,
sol, Rio de Janeiro, internet, passarinhos, sorriso de mulher, barata,
cabide, I ching, Philip K Dick, Bach, Bush, século XIII, tesoura...
3
Na verdade, fui um agente duplo: todos pensavam que eu estava sendo apenas
um homem modesto, um escritor mediano. Eu fiz esse papel, para não revelar
minha verdadeira natureza. Fingi que estava aprendendo, escrevia textos
ruins e mandava para os amigos, e procurava dar um ar de que eram textos
difíceis de conceber, embora ruins. Muitos deles até diziam que gostavam,
não sei se por piedade ou por se contentar com pouco; de qualquer forma,
ficavam satisfeitos, pois não me viam como concorrente. Assim agi mais
livremente. Era um agente deles, mas na verdade estava trabalhando para os
propósitos mais íntimos e profundos.
Sendo mais preciso, não era um agente duplo. Para ser mais exato, era um
agente ao quadrado, ou melhor, ao cubo... não, não, era um agente pi. Como
quiserem, o fato é que eu trabalhei para forças ocultas que dirigem sutil
mas rigorosamente a humanidade e o cosmos. Mas por vezes não sabia com
clareza para quem estava trabalhando, infinitos interesses se
interpenetravam, reuniam-se ou combatiam-se e se desagregavam numa só ação
ou numa só frase escrita. Eu era movido por eles como numa avalanche, ou
numa tempestade em alto mar. Muito depois eu descobria que mesmo os
períodos de incerteza tinham um sentido bem definido para a pavimentação
segura de minha estrada interior, inclusive colocando todos os sinais de
trânsito para evitar a inconveniência de um engarrafamento de idéias.
Eu nunca olhei para nenhum outdoor, sempre caminhei reto olhando para
frente. Se uma pedra se colocasse no meio do caminho, eu analisava para me
certificar se não era uma máquina extraterrestre de outro mundo se
disfarçando de máquina do mundo. Geralmente elas se disfarçavam desta
forma, pensando que eu iria cair na mesma cilada que o Drummond.
Geralmente a pedra ficava com raiva de minha perspicácia e voava para lá e
para cá na altura de minha cabeça, como uma abelha, e me dizia que os
povos intergalácticos e visitantes do futuro, tanto humanóides quanto
máquinas e programas virtuais vivos estavam me observando. Alguns não
agüentavam e diziam o quanto eu já era importante para a história do
universo. Inclusive umas pedras no meio do caminho foram mandadas para me
matar, e vinham outras mandadas para me proteger. Nesses períodos, eu via
impressionado batalhas apoteóticas de pedras assassinas, uma se colocando
no meio do caminho da outra metralhando com pedrinhas. Eu tentava
acalmá-las com meu violão azul, mas elas percebiam minha estratégia e
diziam este verso de Wallace Stevens: “The earth is not earth but a stone”.
Eu replicava asseverando que queria um sonho não mais sonho, mas sonho
como uma coisa, a coisa como ela é. Era uma maneira de tentar anular o
feitiço do futuro, contudo, as pedras afirmavam, no meio de uma
carnificina de pedrinhas (pense em Matrix: o meio da porrada é o melhor
local para grandes revelações filosóficas), que tais coisas eram elas
mesmas, que o real é a guerra das coisas como são, uma se colocando no
caminho da outra.
A eternidade é a pedra no meio do caminho do tempo, ou o tempo é que é a
pedra da eternidade? A pergunta é muito profunda. Resposta da obra: eu sou
a mosca na sua sopa. Não, apaga, eu queria dizer que o gênio do escritor é
a gota d’água que tanto bate na indiferença da história até que fura.
Escrever essa parte é doloroso para um criador, por causa dos galos na
cabeça. “Escrever é quebrar pedras”: acho que foi isso que Armando disse.
A cabeça é a pedra? Então faz sentido: escrever e ler é quebrar a cabeça à
toa com todas essas imbecilidades. O leitor deve estar se sentindo um
otário. Se quer uma senha para sua busca pessoal, aí vai: tenha certeza de
que o sentimento corresponde à realidade.
Eu diria: escrever é lançar uma pedra na careca dos humanóides do futuro
para depois ser retribuído com uma avalanche de pedras maquínicas
reclamando de quem atirou a primeira pedra. Escrever é um filme de terror
science fiction B.
(Eu adoraria “poder reduzir o monstro a mim”, mas via que eram as coisas
mesmas que eram monstruosas e eram elas que me faziam ser um monstro e
conceber minha obra, o monstro dos monstros: o eterno monstro de pedra,
devorador das pedrinhas miúdas dos leitores que rolam por ele de tempos em
tempos. Finalmente, entendi que tinha feito o contrário: em vez de
reduzir, com a obra, estendi minha monstruosidade para a eternidade. Ruim)
4
Esqueci de dizer a parte mais importante para que essa obra permaneça para
todo o sempre. Eduardo Guerreiro enviará esse texto para um tal de Rafael
Viegas e implorará, no final da vida, para que ele delete toda a obra. Mas
o Rafael será o seu Max Brod: publicará e divulgará tudo. Então, embora eu
mande esse texto sempre para o Guerreiro, é ao Rafael quem devo a fama que
se alastrará através dos séculos. O Guerreiro é meu Judas, é um traidor:
eu tinha lhe confiado todos os meus textos porque ele estava metido no
meio literário. Como ele é um homem muito mesquinho, disse que só faria
isso se colocasse seu próprio nome. Como eu estou num outro plano de
sabedoria e pouco ligo para meu nome e autoria – o que vale mesmo é a obra
– resolvi aceitar a proposta. Mas num futuro próximo o Guerreiro, movido
pela inveja que sempre teve de mim, pedirá para o Rafael deletar tudo num
momento decisivo, quando estiver agonizando num leito hospitalar. Como
Rafael é um homem nobre e reconheceu o valor da obra, pensará que tal
pedido fazia parte de um momento de crise da genialidade de Eduardo
Guerreiro antes da morte. Então, fazendo análises psicológicas complexas
da personalidade de Guerreiro e ligando ao texto aqui escrito, fará uma
interpretação muito equivocada dessa obra, a qual os críticos do futuro
irão corrigir. Mesmo assim, a história ficará eternamente grata ao esforço
do Rafael.
Quem me contou tudo isso foram as pedras do futuro que me protegeram das
pedras-máquinas assassinas, é claro.
EDUARDO GUERREIRO,
que não é o narrador, pode se identificar. O narrador, no entanto, por não
ser Eduardo Guerreiro, só pode ser o senhor Plim, um agente do destino que
se disfarça trabalhando num posto de gasolina, mas na verdade é o futuro
grande escritor da humanidade e nos representará no iminente encontro com
os extraterrestres. Ele terá um papel ainda mais decisivo quando os
extraterrestres forem revelados como intra-celestes.
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