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aderaldo luciano
ocaso e escuridão:
impactos de aríete na epiderme do dia
Poderia utilizar como epígrafe
para esse bate-papo, como indicador apenas ilustrativo, ou como parte
essencial do contexto, ou apenas como visão, produto do surto e do estado
de nervos, duas lembranças tênues e vagas, ecos de leituras remotas que
empreendi por alguma obrigação acadêmica. A primeira diz respeito ao
Dilema do Jacaré, citado talvez por Zenão de Aléia ou Sêneca ou Tirésias:
1. Conta-se que um magistrado teve sua única filha raptada por um
jacaré. Procurando-o, ouviu do raptor a seguinte proposta: — Para ter tua
filha de volta terás que me dizer acertadamente o que farei com ela: se
vou devorá-la ou se vou devolvê-la. Se errares já sabeis o seu destino.
A segunda citada por Tom Zé, nunca por Roberto Carlos ou Julio Iglesias:
2. Conta-se que Euclides da Cunha chegando a Salvador para a cobertura
da Guerra dos Canudos deparou-se com o seguinte quadro: uma criança,
detida nos arredores de Remanso, estava sendo interrogada por um delegado
de polícia sobre a organização do povo de Canudos e a ideologia do
Conselheiro, ao que pergunta ou pergunta-se: —...mas Deus está de que
lado?
Sejam essas duas reminiscências os nossos arautos: o dilema entre o acerto
e o erro. Pois no caso do jacaré tanto o acerto como o erro levarão à dor.
Instaura-se o mal-estar, suspende-se o tempo, aumenta-se o incômodo gerado
por aquele velho sentimento de impotência, regente da orquestra das
lágrimas. Esse imbróglio interior não tem, ou tem, como causa o mundo
conhecido. Mesmo se sabendo que um jacaré jamais raptará alguém, o pacto
para um caminho ideal de reflexão, sobre essa hipotética encruzilhada, é
costurado entre nós desta sala, extensão do Universo, e o texto daquela
ante-sala, extensão da Mente. É típica dos gregos a formulação do enigma,
o edificar a esfinge, o especular sobre o destino. E essa esfinge, o
jacaré, e esse Édipo avesso, o magistrado, se embrulham por duas figuras
apenas citadas e que não podem ser vistas: a filha raptada e o ato final
do raptor. O magistrado diante do despenhadeiro do erro, pois se acertar,
perde, e se errar, perde também, espreme o seu peito contra o
desconhecido, que ele não vê, no âmago do jacaré, transformando este mesmo
jacaré em seu pesadelo acordado, sem apocalipse, sem revelação.
Pensemos agora na criança interrogada, perdendo a inocência ao especular
sobre o desconhecido partido tomado por Deus, meio a desgraça de seu povo.
O delegado, parente daquele jacaré, do dilema, é uma intrusão em sua
simples meta de seguir a construção de um vilarejo pobre e miserável sob a
pregação da austeridade e do sofrimento como ferramentas para a
divinização. Ela, a criança, é o próprio seqüestrado, cuja formulação do
dilema colocará por terra o seu seqüestrador que, se responder sobre qual
dos lados repousa a benção de Deus, ferirá fatalmente toda a tradição
cristã, desfigurando assim a empreitada das forças federais e
fundamentando o sentimento messiânico do seqüestrado.
Gostaríamos, a muito custo, mas não ilegitimamente, de unificar os dois
dilemas numa proposição que una a tristeza por não se poder entender
aquilo que se vê, o medo por se entender aquilo que se vê e a angústia por
não se poder nem ver nem entender. Minha argonave partiu da Grécia e
aportou na fundação do Brasil, na Bahia do Monte Pascoal, no Nordeste
insular e paradoxal. Senão, vejamos.
A música popular regional nordestina, essa que facilmente se chama forró,
em todas as suas dimensões, assenta-se sobre dois pilares: Luiz Gonzaga e
Jackson do Pandeiro. O primeiro revela aos olhos da nação as agruras do
espaço físico, geográfico, das secas e cheias, de rios efêmeros e fomes
perenes, bem como o ambiente político com seus coronéis e padres, o poder
paralelo dos cangaceiros e as mortes por vingança, o enxoval do vaqueiro e
as festas populares. O outro nos apresenta os cabarés e as umbigadas, a
ginga da peixeira e as aventuras dos forrozeiros, o amor putânico e o
rala-coxa, mais alegre e urbano, enquanto o primeiro é predominantemente
rural. Resumem, portanto, ou melhor, sintetizam a mitologia nordestina.
Temos falado até agora no par semiológico ver/não ver, luz/trevas. Antes,
porém, do avanço, relato uma conversa partilhada com o professor Eduardo
Portella quando afirmava ele que o povo dos cafundós (sim, lá também
existem os cafundós!) da Europa do Leste, dos interiores tchecos, sérvios,
húngaros, bósnios e além, sofrem de uma predisposição para a angústia.
Tentei inserir uma certa angústia do homem nordestino, mas a conversa não
evoluiu. Fiquei inseminado pelo tema e saí perseguindo meus murmúrios.
Deságua aqui nesta Baía, no coração do Leblon, a minha inquietação.
Situações circunstanciais de opressão pelo meio ao que parece podem
fomentar uma certa ponta de angústia. Pensei, assim, na aridez da vida dos
miseráveis de Canudos que não sabiam, ou não conheciam, ou não viam motivo
para tanta guerra. Alastrei meu olhar para os desdentados dos vales
profundos, viventes-plantas cujas unhas dos pés nunca arranharam um pedaço
de pão quente saído do forno ainda há pouco. Vi alguns migrantes caídos na
Cinelândia. Abismando-me com essas paisagens distantes e essas outras
presentes, calei. Ver dói, não ver, idem. Isso que senti aportou em
Gonzaga e Jackson.
A música mais conhecida de Gonzaga é Asa Branca. Qualquer funkeiro ou
rapper, rockeiro ou erudito conhece seus acordes simples, sua letra grave
e sua estrutura quadrada. Mas olhemos para a letra com mais demora.
Deixemo-la irrigar-nos.
Quando olhei a terra ardendo
Qual fogueira de São João
Eu perguntei a Deus do céu, ai
Por que tamanha judiação
Que braseiro, que fornalha
Nem um pé de plantação
Por falta d'água perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão
Até mesmo o asa branca
Bateu asas do sertão
Então eu disse adeus Rosinha
Guarda contigo meu coração
Quando o verde dos teus olhos
Se espalhar na plantação
Eu te asseguro não chores não, viu
Que eu voltarei, viu meu coração.
Agora vejamos essa outra
canção:
Assum preto
Tudo em vorta é só beleza
Sol de Abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dor .
Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá de mió
Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vezes a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá
Assum Preto, o meu cantá
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meu
Muito bem, as duas são de
Gonzaga e Humberto Teixeira. Pensemos em nossos dilemas epigráficos:
sofrer por ver e sofrer por não ver, em suas leituras livres. E, agora,
volvamos um olhar sobre o título atribuído a esse roteiro: ocaso e
escuridão. Se em Asa Branca o ato de ver causa o desespero, porque não
dizer a angústia, por poder observar que tudo está sendo devorado e que o
dilema se instaura (partir ou morrer), em Assum Preto dá-se o contrário:
não ver proporcionará o cantar mais lindo. A reflexão vai bem mais além
quando se prefere trocar a luz dos olhos pelas grades da prisão. Agora
intelectualizemos o par opositivo: diante da luz, a angústia, longe da
luz, o belo. Parece-me o paradoxo ditado e vivido por Homero, em si
próprio, fundando toda a literatura universal, inclusive a metamorfose
coleóptera de Gregor Samsa. Agora pairemos sobre esta outra canção cantada
por Jackson:
Lamento cego
Irmão, que está me escutando
Preste bem atenção.
Já vi um cego contando
Sua história num rojão.
Quem vê a luz deste mundo
Não sabe o que é sofrer.
Que sofrimento profundo
Querer ver e não poder.
Irmão, mais triste eu fico
Com tanta ingratidão
Dois gravetos de angico
Me tiraram a visão.
Por isso nós tamo aqui
Eu e minha viola.
Por Jesus vamos pedir
Meu irmão, me dê uma esmola
Que Deus recompense então
A sua caridade
E lhe dê sempre a visão
Saúde e felicidade.
É uma composição de Jackson e
Nivaldo Lima. Se em Asa Branca ver é tomar consciência das próprias
catástrofes e ser obrigado a optar sobre um dilema, em Assum Preto, não
ver é proporcionar a manifestação do Belo. Aqui neste lamento há o
maldizer por não poder enxergar ou como diz a letra “que sofrimento
profundo querer ver e não poder.” Mas, afinal, que sofrimento é esse? Qual
o seu nome? Onde se instala? Nossa sociedade globalizada é de alma visual.
A visão sobrepõe-se ao tato e ao metafísico. O fim do pensar. A
velocidade. A banalização da sexo, da violência e da literatura são
ferramentas poderosas no processo de massificação e homogeneização
cultural. As nossas empresas de telefonia celular sabem disso. Suas
máquinas não mais só falam, elas fotografam, elas transmitem ao vivo. O
cego de Jackson sofre por miseravelmente não poder ver, não sentir-se
inserido nas cores. Roga a esmola e em contrapartida oferece como paga a
recompensa de Deus com a visão eterna, com a saúde e com a felicidade.
Contraditoriamente, já que estamos dialogando sobre dilemas, o fim das
promessas do progresso e do bem-estar oferecido pela tecnologia e pela
técnica, as benesses do paraíso, o leite e o mel, esses dons assinados
pelo mesmo Deus, não nos presenteiam mais com saúde e felicidade. Veja-se
o colapso da saúde nos países periféricos e a escassez do emprego em todo
o mundo. O dilema de Hamlet passaria de ser ou não ser a ver ou não ver. A
angústia da Europa Oriental não é maior lá ou cá. Não há predisposição
deste ou daquele povo. Se há algum tempo a Ilustração nos ofereceu a Luz, a
pós-modernidade nos apresenta a conta e a Light, extensão do
Mundo-Capital-Consumo, foi privatizada.
Ainda nos resta o diálogo dos dois cegos citados por Leonardo Mota em seu
Cantadores. Diz o primeiro:
Tenham pena deste cego,
Filhos da Virge Maria;
Eu sou cego de nascença,
Nunca vi a luz do dia!
Ao que o outro respondeu:
Quem nasceu cego da vista
E dela não se lucrou,
Não sente tanto ser cego
Como quem viu e cegou!
Um embate sobre a maior
miséria. Agora ouçamos: perguntei a um desses policiais que participaram
do massacre do Carandiru qual jacaré seqüestrara minha lâmpada de Aladim.
Veio-me a resposta como uma bala: surda, certeira e devastadora extraída
do poema de Drummond:
Nesse país é proibido sonhar.
Findo, senhores, com uma canção
do Cego Aderaldo, um parvo cuja angústia foi ver demais:
As três lágrimas
Eu ainda era pequeno
mas me lembro bem
de ver minha pobre Mãe
em negra viuvez.
Meu pai jazia morto
Estendido em um caixão
E eu chorei então
Pela primeira vez!
E a pobre minha Mãe
Daquilo estremeceu:
De uma moléstia forte
A minha mãe morreu.
Fiquei coberto em luto
E tudo se desfez
E eu chorei então
Pela segunda vez.
Então, o Deus da Glória,
O mais sublime artista,
Decretou lá do Céu,
Perdi a minha vista.
Fiquei na escuridão,
Ceguei com rapidez
E eu chorei então
Pela terceira vez.
Meus prantos se enxugaram.
Das lágrimas que corriam
Chegou-me a poesia
E eu me consolei.
Sem pai, sem mãe, sem vista,
Meus olhos se apagaram;
Tristonhos se fecharam
E eu nunca mais chorei.
ADERALDO LUCIANO, além de músico, poeta e cangaceiro urbano,
leciona Literatura Brasileira no curso de Letras da Universidade Gama e
Sousa. Enquanto conclui vários livros ainda inéditos, escreve para
diversos jornais e revistas sobre literatura de cordel, poesia e forró.
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