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whisner fraga
a gaita
para o vandré
nem que fosse, portanto que lhe relembrei, nefando, confesso, pois de
acompanhá-lo banheiros adentro afora, quando tempo suficiente, isso raras
vezes, no mais era ali, plena sala, onde estivesse, e digo isso: sim era
horrível de se presenciar, aquela bola enfermiça sendo expulsa de seu bojo
escavado, questiono se deus não teria nos esquecido aqui, ou como seríamos
tão sós?, que graça de sua mãe me contando (jamais ousaria na frente dele)
que os céus precisavam de boas almas, enciumado, preferindo sua presença
aqui a concedê-lo a anjos-piadas, ou de me embrenhar e de embrenhanças me
perder, sofrível fim de, corríamos os dois, era costume ajudá-lo, um
braço, ombro, esse tipo de apoio, e vê-lo, sangue e desespero, ainda que
incomparável a tristeza, escondêssemos num silêncio inviolável a gravidade
de sua condição e que vergonha há em sentir dó?, quantas temi vomitar
também, não solícito, antes enojado, refleti que merda é respirar e tenho
bons motivos para tal comparação, ele, que me vendo acuado diante da
comemoração de um natal longínquo me convidou, ei, vamos para casa, por
que ficar aí remoendo sei-lá e depois sem comida decente, estamos
festejando ou não?, ao que, tocado, assenti e ainda seu presente, um
livro, ele que sempre soube desses meus gostos pela leitura, poderia
chamá-lo de outra coisa senão amigo?
e morria, víamos isso quando confidenciou-me: não tenho medo da morte,
alguém na minha situação pode temê-la?, ímpetos de responder-lhe: não!,
porque assim era, nem quando subindo quatro lances de escada, entre afoito
e reservado, me inquiriu se não havia sido de fato uma grande vitória,
ofegante me encarava e infligia sorrisos (ironias?) na face macilenta, e
horrível ter vindo justamente essa imagem à tona, mas o que mais poderia
desejar um sujeito que possuía, no meio disso que nomeamos tórax, apenas
oitavo de pulmão?, que censuraria então hoje se visse esse cigarro entre
meus dedos e o medo de tudo que caminha?, que me mostrou não ser mais do
que uma mulher que o amasse para que vivesse dia e noite em seu entorno?,
sem questioná-lo assim supus a vaidade nessa ânsia de tornar-me escritor,
mesmo dedicando-me com afinco a uma tarefa qualquer que me fizesse
esquecer, isso justamente, a vontade de alguém por perto.
ou discussões sobre aquilo e isso, sexo de anjos, chifres em cavalos e
mulheres, foi que me pediu, acompanhasse-o ao bar e vendo-a no balcão,
observá-la e para mim ali a partida, consciência de seu estado, ele
gesticulando fosse parte de sua pantomima, ela virou-se a pedir socorro,
ele dali a pouco ao chão, mais tarde definitivamente. acudi-o, amigo
envergonhado, hoje entanto humilhado por essa formalidade, acorri-o, já
leve o bastante uma criança erguê-lo, amarelo mais que extrato de resedá,
rumei para o hospital e.
e veio, todos trajes de gala, smokings, nossas mães orgulhosas, ele por
perto, até mais tarde outra surpresa, antes, ontem também. na missa, disso
já sabia, orgulho saber que viera até ali, quando algumas vezes tombara
diante de um projeto, exasperara-se com o estômago constantemente a
rejeitar, desmaios, deus lá embaixo brincando com suas cordas, revoltei-me
com sua reza e a dizer que feito o que ele quisesse, abracei-o outra vez,
cônscio da despedida, ganhar a vida distante, amigos de curso e é tudo,
sem vínculos, padre seu discurso pronto, e ao fim, todos em silêncio, ele
empunhando sua gaita iniciou o hino nacional mais comovente que já
presenciei. tremiam suas primeiras notas, e observei, temeroso,
possibilidades de tosse, mas ele-forças rascou entranhas em busca de
sopros, e vi futuros tecnocratas ostentando incompreensões e nostalgias, e
recebeu meu abraço, ainda de sua boca ouvi deve ser a última vez, cara,
meu peito está queimando ou nem.
e foi. pai que às vezes foi meu se à sua casa eu silente, para não
atrapalhar como costumo fazer, café posto dizia-me servisse, envergonhado
empunhava uma xícara, um pão-com-manteiga, para que não precisasse negar e
assim dizer uma outra meia-dúzia de palavras que nem criatividade para
dispô-las em frases, vi-o em sua cadeira-de-balanço e em seu colo a gaita,
fui-me colocar em seu joelho e como é que você aprendeu a tocar tão bem?,
existem cursos para isso?, ele me encarou e brotando de seu lábio um
tremor recente, confidenciou-me que finalmente tinha medo, seria positivo
seu saldo com os céus ou todos devemos?
a fabiana. correu para ela quando, sentados tomávamos vitaminas, ela
chegou e pediu um sonho-de-valsa, ele sem fôlego esperava que o visse, e
mulher, encontrou-nos a um canto, já calados esperando o momento em que
ela descascaria seu bombom e lábios prenhes, beijaria o chocolate
invertendo partos, e veio. sorriu e abraçaram-se e ela afagando seu
cabelo, já ralo, cobrindo-o de carinhos, hoje desconfio de dós ou
instintos maternais, confiou-lhe a hora e o local em que se encontrariam,
pouco depois. e tchau, até mais, o vejo lá. ele que jamais fiquei com uma
mulher e sabe onde é o encontro? na república dela! e está sozinha, pode?
o que tenho de fazer, como são essas coisas de ficar com alguém? é bom?
eu, desse romantismo canhestro e desajeitado aconselhei-o fosse carinhoso
e que amasse, eis. mas que amor suportaria um acesso de tosse durante... e
e o pior é não poder ouvir esse som que me deixa calmo, não posso começar
a tocar e pronto, em mim se perturba meu corpo, o que toco é com minha
lembrança e quem se emocionaria com melodias tão mudas?
e ela, que ficaram no desejo, sem se consumar o que poderia redimir (ou
levá-lo de vez para o inferno em que tanto acreditou) ou como esperava o
futuro, sumarento de planos, e confessando: é assim que consigo viver
hoje, senão já me teria entregue, e não é um pecado essa rendição?,
pensando em grandes filósofos, impaciente com noções de faltas
irremissíveis, contive-me e refugiando num abraço de medo: levaria de mim
uma lembrança semelhante à que os homens construíram mais tarde?, recuei
diante da dor e não sei se de repente seus projetos denunciavam tempos
indisponíveis, refeitos demonstraram a exigüidade das horas e resoluto,
arquivou-os, entregando-se.
semana depois eu longe, um telefonema, afonso perguntou-me praticidades,
depois você vai à missa de sétimo dia? e refeito do susto, ele havia
morrido e a distância fez justamente o que desejei: me afastou de todos e
sequer deixei endereço, qualquer contato, como conseguiu meu telefone?,
assim e assado, um trabalhão encontrá-lo, ele também poderia, mas preferiu
fosse feita a sua vontade, posta acima de outras tão superiores, urgentes,
não, afonso, não irei, ele já esperando a resposta ajuntou: mas entre em
contato com a família dele, cara, parece que seu amigo deixou um recado
para você, um presente, tem de ir lá buscar a tal lembrança, uma flauta,
acho, sei lá. mas, e o trabalho, como vai?
WHISNER FRAGA é autor do livro de contos Coreografia dos Danados
(prêmio Edições Galob Ranço, RJ, 2002).
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