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soares feitosa


joelhos & mel

 

 

 

Veja, sou doido por mel de engenho, com farinha. Com cuidados, porém, que essa mistura tem ciências. O mel não pode ser por demais espesso, nem muito fino; nem a farinha, peneirada, ou por demais caroçuda. Em suma, uma coisa deliciosa, porém cheia de manhas.


Então, o jovem sentava-se à mesa e comia morigeradamente. A mãe vinha com o prato vazio à sobremesa. Ele botava um pouco de mel e, por cima, a farinha. Mexia.
 

— Mãe, mais mel... está duro demais.
 

— !
 

— Mãe, mais farinha, que está muito fino...
 

— !
 

— Mãe, mais mel... Mãe, mais farinha... Mãe, mais...
 

O ritual se repetia, muitas e muitas vezes, até que o prato (a rigor, um alguidar, imenso) completamente cheio de mel com farinha, ele entendia que "ponto" da mistura estava ótimo.


Quando ele aprontava-se da colher à primeira bocadada, a mãe levantava a mão e, no mesmo silêncio, passava-se-lhe para as costas. Ele já sabia: soltava a colher, já cheia de mel, dentro do prato de mel; jogava as mãos para trás, e ela, num gesto de grande dor (nela, mãe; nele, não), espetava-lhe gentil e rapidamente a polpa de um dos dedos. Sem dizer palavra, conferia, na fita de medir; e, enlaçando-lhe os ombros com as duas mãos, retirava, no maior silêncio, por cima da cabeça dele, o prato transbordante de mel.
 

Até que, um dia, repetido todo o infinito ritual da sobremesa, ela, em vez de enlaçar-lhe os ombros e puxar-lhe intacto o prato de mel, retornou à mesa, pegou a menor das colherinhas de café, e tocou-a com a parte de baixo no mel com farinha, na parte mais mel, só o convexo, pelo lado de fora:
 

— Meu filho, a dosagem está suportável.
 

E os joelhos de ambos foram insuficientes para tanto amargo.

 

 

SOARES FEITOSA, cearense há 61 anos, é editor do Jornal de Poesia, poeta, autor dos livros Psi e A Penúltima, além de ser advogado tributarista. Atualmente reside numa rede em Fortaleza. www.jornaldepoesia.jor.br

 


 

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