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anna carolina da costa avelheda
novo espírito literário: a estética aquática de
gaston bachelard em dois amigos
Os elementos cósmicos
De acordo com os ensinamentos de Bachelard, cada elemento material é um
sistema de Fidelidade Poética que faz com que o poeta se identifique
existencialmente com ele e funda nele todas as suas imagens criadoras. Ao
cantar cada um dos quatro elementos,
“[...] Acreditamos ser fiéis a uma imagem favorita, quando, na verdade,
estamos sendo fiéis a um sentimento humano primitivo, a uma realidade
orgânica primordial, a um temperamento onírico fundamental.”
O poeta depara-se com maior facilidade de se exprimir em dada matéria,
porque há uma afinidade natural entre o artista e o elemento. As imagens,
brotando quase instantaneamente, passam do inconsciente ao consciente
poético, concedendo ao devaneio artístico a substância que lhe é
necessária para a sua concretização como obra literária:
“Para que um devaneio tenha prosseguimento com bastante constância para
resultar em uma obra escrita, [...], é preciso que ele encontre sua
matéria, é preciso que um elemento material lhe dê sua própria substância,
sua própria regra, sua poética específica.”
Dessa maneira, professar fidelidade a um elemento material é confessar um
comportamento orgânico, um temperamento onírico fundamental – dá-se a
Isomorfia entre as profundezas da matéria e os tesouros da alma humana,
que prega serem os homens seres profundos e elevados, união entre Natureza
e Deuses, duas matérias num só corpo.
O ar
O Ar constitui-se como o elemento da leveza e da liberdade, traduzindo-se
num ímpeto ascensional, na dialética básica da Ritmanálise da queda e do
vôo. A tresloucada vontade de ascender é perpassada pelo temor íntimo de
descender. O sonhador do Ar encontra-se em intenso conflito contra a Lei
da Gravidade – a posição vertical fora alcançada com muita dificuldade
para se deixar perdê-la assim tão facilmente; a posição horizontal só é
assumida quando da morte. O ser humano – mescla de sensibilidade aérea que
almeja tudo doar e de sensualidade terrestre que deseja nada perder – não
se pode deixar viver horizontalmente, visto que só se auto-afirma quando
potencializa sua propulsão transcendente a despeito das forças que visam a
confiná-lo em sua condição demasiadamente humana.
O sol diurnoturno, que se mostra e se esconde, que nasce e se deixa
morrer, é a força que estimula o homem a se renovar a cada amanhecer. O
dia e a noite, a elevação e a queda, o corpo e o espírito, o bem e o mal
são causa-recíproca um do outro.
O sonhador do Ar vê, sente, exprime a vertigem da Altura: a zonzeira é a
consciência da altura desmedida; a altura é a força provocada para
usufruir o êxtase de superá-la. A elevação e a libertação não são fim, mas
princípio: são os elementos propiciatórios. O aéreo germina para sonhar,
como a árvore ctônico-urânica que lança mais profundo as suas raízes –
movimento centrípeto, caracterizado pelo dinamismo que conserva, pela
morte que não cessa de nascer – para capacitar-se de chegar mais supremo a
sua copa – movimento centrífugo, caracterizado pelo dinamismo que
transforma, pela vida que não cessa de morrer.
A terra
A Terra é elemento responsável pela harmonização dialética entre a
germinação e a expansão, o expandir-se em cosmicidade e o recolher-se em
intimidade, o mostrar-se e o ocultar-se, o emergir e o imergir, como num
movimento de sístole e diástole de um coração em perpétua pulsação.
A imagem primordial do Universo Terrestre é a casa completa, com porão e
sótão, porque reúne as duas disposições que se ritmanalisam na imaginação
da terra: a Psicologia do Contra, caracterizando a perspectiva dos
Devaneios da Vontade, e a Fenomenologia do Dentro, caracterizando a
perspectiva dos Devaneios do Repouso. Não se trata, entretanto, de uma
casa qualquer. Não é a Casa real, em que vivemos, nem mesmo a Casa Natal,
sensação nostálgica que evocamos, mas a Casa Onírica, que consiste no
germe primordial que permite que habitemos qualquer das casas empíricas. O
sótão é o ninho, a casa de todos os ventos, a casa aérea e leve –
caracterizando a precariedade e a segurança. O corpo da casa é o ventre, a
caverna, a crisálida – caracterizando o repouso e o alimento, a proteção e
a germinação. O porão é o labirinto, o sarcófago – caracterizando a
Morte
Viva, a conjugação de recintos de trevas e caminhos para a luz.
Na perspectiva da Verticalidade, a Casa Onírica, proposta por Bachelard,
tem como elemento dinamizador as escadas, que garantem o acesso ao porão –
as quais sempre descemos, deflagrando um passado enorme, imune de
datações, e levando a casa à terra úmida e negra – e ao sótão – as quais
sempre subimos, encontrando as funções racionais, a luz, e os grandes
terrores do Ambiente Noturno. Na perspectiva da Horizontalidade, a Casa
Onírica tem por elemento dinamizador os corredores, que constituem lugar
de trânsito, de complementariedade entre esperança-medo,
expectativa-incerteza – são extensos corredores, cheios de portas, que
levam a outros corredores, com ainda mais portas.
Na perspectiva do Interior-Exterior, a Casa Onírica tem por elemento dinamizador as portas, que garantem a indevassabilidade do interior de
cada cômodo, assim como a proteção que a casa prodigaliza – a porta da
casa garante aconchego, calor, familiaridade; protege contra o
desterro,
as intempéries, o desconhecido. Na perspectiva da Abertura, a
Casa Onírica
tem por elemento dinamizador as janelas, que constituem os olhos da casa.
A poética terrestre divide-se em dois devaneios:
Devaneios da vontade
Caracteriza-se pela Psicologia do Contra, pelo lado Masculino do ser, pela
resistência agressiva, pela Imaginação das forças, pelo predomínio da
Energia.
Terrestremente, a gravidade é um fardo sobre a alma, revelando-se como uma
força que se abate contra o homem. É graças à existência dessa força
descensional que o ímpeto do vôo se torna miraculoso, visto que, tanto
maior a atuação dessa força sobre o ser, quanto maior a vontade de
superá-la.
À psicologia da gravidade, corresponde uma nostalgia da leveza, uma
procura pela libertação do fardo que se sobrepõe às forças humanas. Existe
um nexo de solidariedade entre a leveza e o peso, dando-se a percepção da
relatividade intrinsecamente terrestre: o leve é o pesado que se aliviou;
o pesado é o leve que se sobrecarregou. A decisão fundamental da Vida deve
ser tomada quanto a aliviar-se ou sobrecarregar-se – tornar-se leviano ou
pronto a carregar o mundo sobre as costas –, quanto a inventar a vida ou a
deixá-la decidir-se pelo ser (!).
Terrestremente, a vertigem é uma náusea no espírito, um ímpeto ameaçado
pela solidão, pelo temor da queda brusca e incontrolável. A sensação de
queda é vivida auditivamente: a profundeza nadificante é uma voz que se
afasta, ... se torna longínqua, ... se abafa, ... se perde, ... não volta
mais. A vertigem do baixo sustenta, garante a vertigem do alto.
O Complexo de Atlas ilustra perfeitamente a dialética da Gravidade,
representada pela vivência do esmagamento e pela vontade do aprumo –
elementos congregados pela Montanha, imagem primordial da poética
terrestre ma perspectiva dos Devaneios da Vontade. Esse movimento de
lassidão e de esforço realiza poeticamente o enfrentamento entre as forças
humanas e as forças cósmicas. O desafio do sonhador terrestre é, portanto,
derrotar a gravidade, virilizar corpo e espírito, tornar-se senhor do
Cosmos. Ou seja, o sonhador terrestre deve-se emancipar da condição de
ínfimo partícipe na gênese do mundo e heroicizar-se.
Devaneios do repouso
Caracteriza-se pela Fenomenologia – de que Bachelard mantém a idéia de
estudar as imagens poéticas por si mesmas, no momento em que emergem da
consciência – do Dentro, pela face Feminina, pelo Aconchego, pela
Proteção.
A Terra é interioridade profunda e misteriosa, sendo o homem a única
criatura da terra que tem vontade de olhar o interior de outras. O
sonhador da Intimidade quer ver além, quer superar a passividade da visão.
Através da imaginação material e dinâmica, há possibilidade de acesso ao
oculto, à escuridão interior das coisas.
A Natureza se engrandece no ininterrupto jogo do mostrar-se e do
esconder-se, no perpétuo ritmo de máscara e ostentação. Ocultar(-se) é uma
força primária, uma necessidade ligada à constituição de reservas.
Obscurecer é tão importante quanto esclarecer; o interior tem de preservar
o seu mistério – Função de Trevas, pela qual a intimidade revela-se,
velando-se.
A imaginação material e dinâmica procede à química de profundidades –
descer sempre mais fundo, remexer sempre mais intimamente: sob a
substância, encontra-se a molécula; dentro da molécula, o átomo; no átomo,
o núcleo; no núcleo, as mil partículas.
Através do trabalho onírico no interior das coisas, é possível dirigir-se
à raiz sonhadora das palavras. Pela desmaterialização da Linguagem, que
nada sabe do inconsciente, a imaginação reativa todas as oposições, as
ambigüidades esquecidas ou negadas. A unidade substancial é rompida por
princípios antagônicos – fogo frio, água seca, sol
negro –, em que o
adjetivo contradiz o substantivo.
Bachelard recorre à Lei da Isomorfia das Imagens para estabelecer o
verdadeiro princípio poético do pensamento. Essa lei permite que Bachelard
escreva as poéticas dos quatro elementos, reunindo as poéticas e seus
poetas, através da detecção de imagens-princípio. Além disso, autoriza que
as obras literárias sejam estudadas como diagramas imagéticos,
configurados pela sintaxe das imagens.
O fogo
O Fogo é elemento material da transmutação radical, dialetizando-se na
confluência de duas valorações opostas entre bem e mal: o Fogo é casto e
lúbrico; arde no inferno, brilha no céu. O sonhador do fogo almeja a
transcensão, a mudança categônica.
A completa desintegração pelas chamas é condição indispensável para o
renascimento, para a ressurreição. Deste princípio básico da poética do
fogo, podem-se depreender dois complexos: (i) Complexo de Empédocles, em
que o fogo funciona como o agente de transmutações, como o dispensador da
morte total, que vai garantir a integridade na partida para a outra vida;
e (ii) Complexo de Novalis, em que o fogo funciona como o calidum
inatum,
como o bem supremo que só se concede ao ser eleito.
A luz da chama é o motor dinâmico que determina o ser vertical e
transcendente do fogo. A luz é não o símbolo angelical da pureza, mas o
agente passional da purificação. O sonhador do fogo deve-se impor à
horizontalidade da vida, ininterruptamente reacendendo a vontade de
inflamar-se, de entusiasmar-se, de ultrapassar os limites impostos pelo
próprio corpo. O ser só se liberta quando se extingue, para re-generar-se.
A água
A Água é legenda do ser cuja essência consiste em desformar-se. A Água
aparece como elemento transitório, como uma metamorfose ontológica e
essencial entre o fogo e a terra, participando de uma espécie de destino
de queda, de morte cotidiana, de sofrimento infinito. Assim como o Rio,
que se transmuta à viagem das águas, o homem se transmuta à viagem das
horas, constituindo as seguintes imagens isomórficas: homem/rio,
tempo/águas, vida/viagem.
Segundo Bachelard (2002: 7), o sonhador da água é “um ser em vertigem, um
ser que morre a todo instante, um ser que deixa desmoronar algo de sua
substância constantemente”. A poesia da água é a metapoética da morte – a
beleza só é possível mediante a morte; a morte só é bela mediante a água.
É no ambiente aquático que se dão os Complexos de Caronte e de Ofélia. No
primeiro, verifica-se a faceta macabra e horripilante da morte, visto que
a barca conduz inapelavelmente a um Inferno. Segundo Bachelard (2002: 77),
atirar-se ao mar é mais que uma espécie de desafio que a morte oferece, é
a vontade de correr esse risco:
"A morte é uma viagem e a viagem é uma morte. Partir é morrer um pouco.
Morrer é verdadeiramente partir, e só se parte bem, corajosamente,
nitidamente, quando se segue o fluir da água, a corrente do largo rio.
Todos os rios desembocam no Rio dos mortos. Apenas essa morte é fabulosa.
Apenas essa partida é uma aventura."
No segundo, verifica-se o caráter sedutor e fascinante da morte, visto que
morrer é um convite ao doce aconchego do ventre materno. No Complexo de
Ofélia, parece haver uma inclinação muito maior à morte pelo suicídio,
como forma de fugir às inconsistências da vida terrestre:
"A água é o elemento da morte jovem e bela, da morte florida, e nos dramas
da vida e da literatura é o elemento da morte sem orgulho nem vingança, do
suicídio masoquista. A água é o símbolo profundo, orgânico, da mulher que
só sabe chorar suas dores e cujos olhos são facilmente afogados de
lágrimas. O homem, diante de um suicídio feminino, compreende essa dor
funérea por tudo o que nele, como em Laertes, é mulher. Volta a ser homem
– tornando-se outra vez seco – depois que as lágrimas secam."
Da Poética da Água, pode-se depreender a seguinte equação: Contemplar as
águas é equivalente a dissolver-se, escoar-se, morrer – toda água leve se
entorpece, toda água clara se ensombrece, toda água viva perece. A água á
a matéria plácida da formosa morte; o morrer, aspiração encoberta do
devaneio poético, se dá em dois níveis: (i) superficialmente, em que o
reflexo desmaterializa a realidade imperfeita, a fim de realizar a
idealidade perfeita; e (ii) profundamente, em que a água oferece um abrigo
ao imenso sofrimento humano, constituindo um irrecusável convite ao fim.
Como outrora fora dito, por alguém muito querido, Quem fala de tudo em
nada se aprofunda. Sendo assim, o trabalho aqui apresentado pretende
embasar-se neste último elemento, como doador de vida e dispensador de
morte.
O psiquismo hidrante
“Aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água
que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salte para a vida
eterna.” (Jo 4:7-14)
A água é matéria de difícil apreensão. Representação magnífica, diga-se de
passagem, do Elemento Água é atribuída aos pincéis de Lima de Freitas. No
centro, tem-se o ovo, princípio vital feminino, rodeado por pequenas
labaredas, que constituem o fogo masculino. No interior do óvulo, tem-se a
Árvore da Vida, com seus ramos plenos de folhas lançando-se ao limite
ascensional, e suas raízes aprofundando-se ao limite descensional. Um
poeta e sua Lira, símbolo e instrumento do Equilíbrio Cósmico, sentam-se
em um barco, constituído por uma meia-lua que se reflete nas vagas
marítimas. São os acordes extraídos da Lira pelo poeta que fazem dançar os
peixes, que fazem vibrar o cosmos de forma harmônica. Externamente ao
óvulo, encontram-se medusas, que constituem os inimigos que a Vida está
destinada a enfrentar – inimigos prontos a devorar o mais ínfimo sinal de
vida que se lhes demonstre. Os peixes são o símbolo primordial do elemento
Aquático, visto que os atributos simbólicos da água são também atribuídos
aos peixes.
A água, compreendida empiricamente, é símbolo universal de Vida, de
Fertilidade, de Fecundidade – as maiores taxas de oxigênio provêm do
Oceano, peixes se multiplicam com admirável facilidade, o espaço marinho é
abundantemente habitado, por animais de todas as espécies.
Todavia, a Água apresenta, também, uma Simbologia no Plano Espiritual.
Nesta última vertente, a água representa uma matéria perfeita, simples,
totalmente límpida e transparente; é elemento Sagrado, com Virtudes
Purificadoras – como exemplo, tem-se a água do Batismo que, mesmo
concedida uma única vez na Vida, é capaz de lavar o Pecado Original,
transformando o Homem num Homem novo, graças ao seu poder de
regenerescência.
Em contrapartida ao símbolo da Água pura e criadora, tem-se a Água amarga,
devastadora, dispensadora de Morte, produtora de maldições – as águas
tenebrosas dos mares profundos, das vagas gigantescas. No conto
trabalhado, a mesma água que constituía a única fonte de Vida da cidade em
ruínas – na água, encontrava-se a última esperança de alimento digno de um
ser humano, visto que toda a cidade já se alimentava do que encontrasse
pela frente, como se pode perceber em “Tornavam-se muito raros os pardais
sobre os telhados, e os esgotos se despovoavam. Comia-se o que se
encontrava.” – é a responsável pelo afogamento, pela degeneração completa
dos personagens Morissot e Sauvage, como se pode perceber em “– Imaginem
que, em cinco minutos, estarão no fundo daquela água”.
A água, em sua faceta mais brilhantemente valorizada por Bachelard,
representa a morte cotidiana, a morte ininterrupta, incessante e
interminável. Assim como a Água que corre, cai de cascatas e cachoeiras e
acaba sempre por morrer horizontalmente, o ser humano apresenta-se como um
ser em Vertigem que deixa, constantemente, desmoronar algo de si. Como
demonstra Bachelard,
“A Água é não mais o vão destino de um sonho que não se acaba, mas um
destino especial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser.”
(2002: 6)
No conto trabalhado, antes mesmo de serem ameaçados de morte, os
personagens encontram-se cotidianamente desfalecidos, dilacerados,
desacontecidos pela interrupção da doce convivência com as águas. O texto
constrói, portanto, um paradoxo poético – no qual verdadeiramente reside a
sua tranqüila beleza aquática: os personagens, que já se encontravam
mortos, vivem uma derradeira e grandiosa vez – no momento em que refazem a
convivência com a tranqüilidade hídrica – e, na morte, se consagram ao
elemento amado. Fora da comunhão com a água, portanto, esses dois senhores
quietos e taciturnos talvez nem tenham existência própria: como paga
poética, recebem o aconchego do doce ventre materno.
No entanto, a Água não é elemento desfalecido essencialmente; sua
essência, assim como nos demonstra Bachelard, é a de uma matéria que está
prestes a perecer, a se transformar, a tornar-se outra:
“Toda água viva é uma água que está a ponto de morrer. Em poesia dinâmica,
as coisas não são o que são, são o que se tornam. [...] Contemplar a Água
é escoar-se, é dissolver-se, é morrer. Nunca a água pesada se torna leve,
nunca uma água escura se faz clara. É sempre o inverso. O conto da água é
o conto humano de uma água que morre. O devaneio começa diante da água
límpida, toda em reflexos imensos, fazendo ouvir uma música cristalina. [O
devaneio] acaba no âmago da água triste e sombria, de uma água que
transmite estranhos e fúnebres murmúrios.” (2002: 49)
No conto trabalhado, a água se apresenta, primordialmente, como elemento
vívido e ludibriante, que dissimula o universo submerso macabro que se lhe
oculta, auxiliada pela bela paisagem que a rodeia e o cantar dos pássaros
que a vigiam, como se pode perceber em:
“Quando o sol rejuvenescido fazia flutuar sobre o rio tranqüilo essa
pequena barrela que corre com a água, e derramava no dorso dos dois
obstinados pescadores um bom calor de estação recente, Morissot dizia por
vezes ao seu vizinho: ‘– Que doçura, hem?’ –
e o Sr. Sauvage respondia: ‘–
Não conheço nada melhor’.”
Essa mesma água límpida, vívida, purificada pode ser depreendida do início
da Aventura dos personagens, em que eles chegam à beira do rio e retomam o
vício que lhes aliena, o capricho que lhes servirá de isca para o Juízo
final:
“Diante deles, a Ilha Marante abandonada ocultava-os de ribanceira oposta.
[...] O Sr. Sauvage pescou a primeira cavala. Morissot apanhou a segunda,
e de momento a momento levantavam as linhas com um bichinho prateado a
saltitar na extremidade do fio, verdadeira pesca milagrosa.”
É ao cair do Sol que a Água assume sua postura triste e sombria, iluminada
pela cor escarlate das nuvens que encobrem o céu ensangüentado pelo poente
– termos que funcionam como um indício, que possibilitam um correlato
imediato entre as dicas lançadas e a resolução que se dará – e auxiliada
pelo ruído do canhão que não deixava de troar:
“Quando o céu, ensangüentado pelo poente, lançava na água imagens de
nuvens escarlates, purpurejava o rio inteiro, inflamava o horizonte,
tornava vermelhas com o fogo e dourava, entre os dois amigos, as árvores
já arruinadas, trêmulas de um tremor de inverno, o Sr. Sauvage fitava
Morissot, a sorrir, e exclamava: ‘– Que espetáculo!’ e Morissot,
maravilhado, respondia, sem afastar dos olhos o seu flutuador: ‘– Isso é
melhor do que o bulevar, hem?’.”
A Água tem essa postura macabra confirmada no momento em que a morte dos
personagens se dá em seu interior, em seu universo submerso outrora
desconhecido pelos mesmos que, alienados, insistiam em se colocar à pesca
mesmo enquanto “a cada instante, a montanha golfava a sua exalação de
morte, soprava seus vapores leitosos”, como se pode perceber em:
“Dois soldados seguravam Morissot pela cabeça e pelas pernas; dois outros
pegaram o Sr. Sauvage de modo idêntico. Os corpos, balançados com força
por um instante, foram atirados ao longe, descreveram uma curvas, depois
mergulharam no rio, a prumo, arrastados pelas cordas. A Água esguichou,
borbulhou, estremeceu, acalmou-se por fim, ao passo que pequeninas vagas
vinham até as margens. Flutuava um pouco de sangue.”
A Poética da Água, metapoética da Morte, seguidora da tricotomia macabra
Água-Beleza-Morte, apresenta-se sob dois complexos distintos: (i) Complexo
de Caronte, no qual se percebe a faceta macabra e horripilante, visto que
a Barca tem como destino indubitável um Inferno; e (ii) Complexo de
Ofélia, no qual se percebe o caráter fascinante da morte, visto que é um
convite ao aconchego do ventre materno, à proteção feminina. Estes
complexos encontram-se não em Distribuição Complementar, mas em
Complemantariedade inextrincável.
No conto trabalhado, a primeira que se apresenta é a faceta Macabra da
Morte, haja vista a crudelidade com que são arrancadas as vidas de
cidadãos indefesos pelo andamento da guerra:
“Eles nunca tinham avistado nenhum, mas sentiam-nos ali desde meses atrás,
ao redor de Paris, arruinando a França, pilhando, chacinando, esfomeando,
invisíveis e todo-poderosos. E uma espécie de Supersticioso terror
somava-se ao ódio que tinham a esse povo desconhecido e vitorioso.”
“E o Mont-Valérien troava sem repouso, demolindo, a balaços de artilharia,
casas francesas, triturando vidas, arrasando seres, dando fim a muitos
sonhos, e muitas esperadas alegrias, a muitas felicidades prometidas,
abrindo em corações de esposas, em corações de moças, em coração de mães,
além, noutras terras, sofrimentos que não teriam fim.”
Noutra vertente, a Morte se apresenta sob sua faceta fascinante e
sedutora, visto que a Morte, por mais que proveniente de um mal-entendido,
não se demonstra aos personagens em seu aspecto tenebroso e apavorante –
tanto que os mesmos, ainda que diante das ameaças do Coronel Alemão, nada
retrucam em sua defesa – mas em seu aspecto sedutor, envolvente,
acolhedor; mostra-se como uma proteção das intempéries terrenas, do perigo
bélico que fazia parte do cotidiano parisiense:
“– Para mim, os senhores são dois espiões mandados para me espreitarem. Eu
os prendo e fuzilo. Os senhores fingiam pescar para melhor dissimularem os
seus propósitos. Caíram em minhas mãos, tanto pior para os senhores; é a
guerra. Mas, como saíram pelos postos avançados, têm certamente uma
palavra de ordem, e eu lhes perdoarei. [...] – Ninguém o saberá nunca, os
senhores entrarão em Paz. O segredo desaparecerá com os senhores. Se se
recusarem, morrerão, e imediatamente. Escolham. Eles permaneceram
imóveis, sem abrir a boca.”
Sendo assim, pode-se perceber que a Imagem primordial do ambiente aquático
é a Fonte, fonte diurnoturna que, ao mesmo tempo em que almeja emergir à
claridade diáfana do dia, anseia imergir na obscuridade opaca da noite – a
água, que oferece o Alimento vivo ao Coronel, oferece um objeto de
vingança pela vigia a qual fora submetido:
“O alemão deu novas ordens. Seus homens se dispersaram, e voltaram depois
com cordas e pedras, que ataram aos pés dos dois mortos; em seguida,
levaram-nos à ribanceira. [...] O oficial, sempre sereno, disse à
meia-voz: ‘– Agora é a vez dos peixes!’ [...] ‘– Trate de me frigir quanto
antes esses bichinhos, enquanto estão vivos. Será uma delícia’.”
Dá-se, enfim, a Dialética Poética, a ritmanálise dos compostos: morte e
vida, claro e escuro, dia e noite, ser humano e Animal – tanto os peixes
quanto os homens são devorados repentinamente: os homens, pela água; os
peixes, pelo Coronel – se complementam numa Unidade inextrincavelmente
dual.
ANNA CAROLINA DA COSTA
AVELHEDA, bacharel em Letras – Português/Literaturas – pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, é pesquisadora integrante
vinculada à linha de pesquisa "Língua e Sociedade: variação e mudança".
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