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anna carolina da costa avelheda


novo espírito literário: a estética aquática de gaston bachelard em dois amigos

   

 

 

Os elementos cósmicos


De acordo com os ensinamentos de Bachelard, cada elemento material é um sistema de Fidelidade Poética que faz com que o poeta se identifique existencialmente com ele e funda nele todas as suas imagens criadoras. Ao cantar cada um dos quatro elementos,

“[...] Acreditamos ser fiéis a uma imagem favorita, quando, na verdade, estamos sendo fiéis a um sentimento humano primitivo, a uma realidade orgânica primordial, a um temperamento onírico fundamental.”

O poeta depara-se com maior facilidade de se exprimir em dada matéria, porque há uma afinidade natural entre o artista e o elemento. As imagens, brotando quase instantaneamente, passam do inconsciente ao consciente poético, concedendo ao devaneio artístico a substância que lhe é necessária para a sua concretização como obra literária:

“Para que um devaneio tenha prosseguimento com bastante constância para resultar em uma obra escrita, [...], é preciso que ele encontre sua matéria, é preciso que um elemento material lhe dê sua própria substância, sua própria regra, sua poética específica.”

Dessa maneira, professar fidelidade a um elemento material é confessar um comportamento orgânico, um temperamento onírico fundamental – dá-se a Isomorfia entre as profundezas da matéria e os tesouros da alma humana, que prega serem os homens seres profundos e elevados, união entre Natureza e Deuses, duas matérias num só corpo.
 


O ar

O Ar constitui-se como o elemento da leveza e da liberdade, traduzindo-se num ímpeto ascensional, na dialética básica da Ritmanálise da queda e do vôo. A tresloucada vontade de ascender é perpassada pelo temor íntimo de descender. O sonhador do Ar encontra-se em intenso conflito contra a Lei da Gravidade – a posição vertical fora alcançada com muita dificuldade para se deixar perdê-la assim tão facilmente; a posição horizontal só é assumida quando da morte. O ser humano – mescla de sensibilidade aérea que almeja tudo doar e de sensualidade terrestre que deseja nada perder – não se pode deixar viver horizontalmente, visto que só se auto-afirma quando potencializa sua propulsão transcendente a despeito das forças que visam a confiná-lo em sua condição demasiadamente humana.


O sol diurnoturno, que se mostra e se esconde, que nasce e se deixa morrer, é a força que estimula o homem a se renovar a cada amanhecer. O dia e a noite, a elevação e a queda, o corpo e o espírito, o bem e o mal são causa-recíproca um do outro.
O sonhador do Ar vê, sente, exprime a vertigem da Altura: a zonzeira é a consciência da altura desmedida; a altura é a força provocada para usufruir o êxtase de superá-la. A elevação e a libertação não são fim, mas princípio: são os elementos propiciatórios. O aéreo germina para sonhar, como a árvore ctônico-urânica que lança mais profundo as suas raízes – movimento centrípeto, caracterizado pelo dinamismo que conserva, pela morte que não cessa de nascer – para capacitar-se de chegar mais supremo a sua copa – movimento centrífugo, caracterizado pelo dinamismo que transforma, pela vida que não cessa de morrer.

 

A terra

A Terra é elemento responsável pela harmonização dialética entre a germinação e a expansão, o expandir-se em cosmicidade e o recolher-se em intimidade, o mostrar-se e o ocultar-se, o emergir e o imergir, como num movimento de sístole e diástole de um coração em perpétua pulsação.


A imagem primordial do Universo Terrestre é a casa completa, com porão e sótão, porque reúne as duas disposições que se ritmanalisam na imaginação da terra: a Psicologia do Contra, caracterizando a perspectiva dos Devaneios da Vontade, e a Fenomenologia do Dentro, caracterizando a perspectiva dos Devaneios do Repouso. Não se trata, entretanto, de uma casa qualquer. Não é a Casa real, em que vivemos, nem mesmo a Casa Natal, sensação nostálgica que evocamos, mas a Casa Onírica, que consiste no germe primordial que permite que habitemos qualquer das casas empíricas. O sótão é o ninho, a casa de todos os ventos, a casa aérea e leve – caracterizando a precariedade e a segurança. O corpo da casa é o ventre, a caverna, a crisálida – caracterizando o repouso e o alimento, a proteção e a germinação. O porão é o labirinto, o sarcófago – caracterizando a Morte Viva, a conjugação de recintos de trevas e caminhos para a luz.


Na perspectiva da Verticalidade, a Casa Onírica, proposta por Bachelard, tem como elemento dinamizador as escadas, que garantem o acesso ao porão – as quais sempre descemos, deflagrando um passado enorme, imune de datações, e levando a casa à terra úmida e negra – e ao sótão – as quais sempre subimos, encontrando as funções racionais, a luz, e os grandes terrores do Ambiente Noturno. Na perspectiva da Horizontalidade, a Casa Onírica tem por elemento dinamizador os corredores, que constituem lugar de trânsito, de complementariedade entre esperança-medo, expectativa-incerteza – são extensos corredores, cheios de portas, que levam a outros corredores, com ainda mais portas.


Na perspectiva do Interior-Exterior, a Casa Onírica tem por elemento dinamizador as portas, que garantem a indevassabilidade do interior de cada cômodo, assim como a proteção que a casa prodigaliza – a porta da casa garante aconchego, calor, familiaridade; protege contra o desterro, as intempéries, o desconhecido. Na perspectiva da Abertura, a Casa Onírica tem por elemento dinamizador as janelas, que constituem os olhos da casa.


A poética terrestre divide-se em dois devaneios:
 


Devaneios da vontade

Caracteriza-se pela Psicologia do Contra, pelo lado Masculino do ser, pela resistência agressiva, pela Imaginação das forças, pelo predomínio da Energia.


Terrestremente, a gravidade é um fardo sobre a alma, revelando-se como uma força que se abate contra o homem. É graças à existência dessa força descensional que o ímpeto do vôo se torna miraculoso, visto que, tanto maior a atuação dessa força sobre o ser, quanto maior a vontade de superá-la.


À psicologia da gravidade, corresponde uma nostalgia da leveza, uma procura pela libertação do fardo que se sobrepõe às forças humanas. Existe um nexo de solidariedade entre a leveza e o peso, dando-se a percepção da relatividade intrinsecamente terrestre: o leve é o pesado que se aliviou; o pesado é o leve que se sobrecarregou. A decisão fundamental da Vida deve ser tomada quanto a aliviar-se ou sobrecarregar-se – tornar-se leviano ou pronto a carregar o mundo sobre as costas –, quanto a inventar a vida ou a deixá-la decidir-se pelo ser (!).


Terrestremente, a vertigem é uma náusea no espírito, um ímpeto ameaçado pela solidão, pelo temor da queda brusca e incontrolável. A sensação de queda é vivida auditivamente: a profundeza nadificante é uma voz que se afasta, ... se torna longínqua, ... se abafa, ... se perde, ... não volta mais. A vertigem do baixo sustenta, garante a vertigem do alto.


O Complexo de Atlas ilustra perfeitamente a dialética da Gravidade, representada pela vivência do esmagamento e pela vontade do aprumo – elementos congregados pela Montanha, imagem primordial da poética terrestre ma perspectiva dos Devaneios da Vontade. Esse movimento de lassidão e de esforço realiza poeticamente o enfrentamento entre as forças humanas e as forças cósmicas. O desafio do sonhador terrestre é, portanto, derrotar a gravidade, virilizar corpo e espírito, tornar-se senhor do Cosmos. Ou seja, o sonhador terrestre deve-se emancipar da condição de ínfimo partícipe na gênese do mundo e heroicizar-se.
 


Devaneios do repouso


Caracteriza-se pela Fenomenologia – de que Bachelard mantém a idéia de estudar as imagens poéticas por si mesmas, no momento em que emergem da consciência – do Dentro, pela face Feminina, pelo Aconchego, pela Proteção.


A Terra é interioridade profunda e misteriosa, sendo o homem a única criatura da terra que tem vontade de olhar o interior de outras. O sonhador da Intimidade quer ver além, quer superar a passividade da visão. Através da imaginação material e dinâmica, há possibilidade de acesso ao oculto, à escuridão interior das coisas.

 
A Natureza se engrandece no ininterrupto jogo do mostrar-se e do esconder-se, no perpétuo ritmo de máscara e ostentação. Ocultar(-se) é uma força primária, uma necessidade ligada à constituição de reservas. Obscurecer é tão importante quanto esclarecer; o interior tem de preservar o seu mistério – Função de Trevas, pela qual a intimidade revela-se, velando-se.


A imaginação material e dinâmica procede à química de profundidades – descer sempre mais fundo, remexer sempre mais intimamente: sob a substância, encontra-se a molécula; dentro da molécula, o átomo; no átomo, o núcleo; no núcleo, as mil partículas.


Através do trabalho onírico no interior das coisas, é possível dirigir-se à raiz sonhadora das palavras. Pela desmaterialização da Linguagem, que nada sabe do inconsciente, a imaginação reativa todas as oposições, as ambigüidades esquecidas ou negadas. A unidade substancial é rompida por princípios antagônicos – fogo frio, água seca, sol negro –, em que o adjetivo contradiz o substantivo.


Bachelard recorre à Lei da Isomorfia das Imagens para estabelecer o verdadeiro princípio poético do pensamento. Essa lei permite que Bachelard escreva as poéticas dos quatro elementos, reunindo as poéticas e seus poetas, através da detecção de imagens-princípio. Além disso, autoriza que as obras literárias sejam estudadas como diagramas imagéticos, configurados pela sintaxe das imagens.
 


O fogo


O Fogo é elemento material da transmutação radical, dialetizando-se na confluência de duas valorações opostas entre bem e mal: o Fogo é casto e lúbrico; arde no inferno, brilha no céu. O sonhador do fogo almeja a transcensão, a mudança categônica.


A completa desintegração pelas chamas é condição indispensável para o renascimento, para a ressurreição. Deste princípio básico da poética do fogo, podem-se depreender dois complexos: (i) Complexo de Empédocles, em que o fogo funciona como o agente de transmutações, como o dispensador da morte total, que vai garantir a integridade na partida para a outra vida; e (ii) Complexo de Novalis, em que o fogo funciona como o calidum inatum, como o bem supremo que só se concede ao ser eleito.


A luz da chama é o motor dinâmico que determina o ser vertical e transcendente do fogo. A luz é não o símbolo angelical da pureza, mas o agente passional da purificação. O sonhador do fogo deve-se impor à horizontalidade da vida, ininterruptamente reacendendo a vontade de inflamar-se, de entusiasmar-se, de ultrapassar os limites impostos pelo próprio corpo. O ser só se liberta quando se extingue, para re-generar-se.
 


A água


A Água é legenda do ser cuja essência consiste em desformar-se. A Água aparece como elemento transitório, como uma metamorfose ontológica e essencial entre o fogo e a terra, participando de uma espécie de destino de queda, de morte cotidiana, de sofrimento infinito. Assim como o Rio, que se transmuta à viagem das águas, o homem se transmuta à viagem das horas, constituindo as seguintes imagens isomórficas: homem/rio, tempo/águas, vida/viagem.


Segundo Bachelard (2002: 7), o sonhador da água é “um ser em vertigem, um ser que morre a todo instante, um ser que deixa desmoronar algo de sua substância constantemente”. A poesia da água é a metapoética da morte – a beleza só é possível mediante a morte; a morte só é bela mediante a água. É no ambiente aquático que se dão os Complexos de Caronte e de Ofélia. No primeiro, verifica-se a faceta macabra e horripilante da morte, visto que a barca conduz inapelavelmente a um Inferno. Segundo Bachelard (2002: 77), atirar-se ao mar é mais que uma espécie de desafio que a morte oferece, é a vontade de correr esse risco:

"A morte é uma viagem e a viagem é uma morte. Partir é morrer um pouco. Morrer é verdadeiramente partir, e só se parte bem, corajosamente, nitidamente, quando se segue o fluir da água, a corrente do largo rio. Todos os rios desembocam no Rio dos mortos. Apenas essa morte é fabulosa. Apenas essa partida é uma aventura."

No segundo, verifica-se o caráter sedutor e fascinante da morte, visto que morrer é um convite ao doce aconchego do ventre materno. No Complexo de Ofélia, parece haver uma inclinação muito maior à morte pelo suicídio, como forma de fugir às inconsistências da vida terrestre:

"A água é o elemento da morte jovem e bela, da morte florida, e nos dramas da vida e da literatura é o elemento da morte sem orgulho nem vingança, do suicídio masoquista. A água é o símbolo profundo, orgânico, da mulher que só sabe chorar suas dores e cujos olhos são facilmente afogados de lágrimas. O homem, diante de um suicídio feminino, compreende essa dor funérea por tudo o que nele, como em Laertes, é mulher. Volta a ser homem – tornando-se outra vez seco – depois que as lágrimas secam."


Da Poética da Água, pode-se depreender a seguinte equação: Contemplar as águas é equivalente a dissolver-se, escoar-se, morrer – toda água leve se entorpece, toda água clara se ensombrece, toda água viva perece. A água á a matéria plácida da formosa morte; o morrer, aspiração encoberta do devaneio poético, se dá em dois níveis: (i) superficialmente, em que o reflexo desmaterializa a realidade imperfeita, a fim de realizar a idealidade perfeita; e (ii) profundamente, em que a água oferece um abrigo ao imenso sofrimento humano, constituindo um irrecusável convite ao fim.


Como outrora fora dito, por alguém muito querido, Quem fala de tudo em nada se aprofunda. Sendo assim, o trabalho aqui apresentado pretende embasar-se neste último elemento, como doador de vida e dispensador de morte.

 

O psiquismo hidrante


“Aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salte para a vida eterna.” (Jo 4:7-14)

A água é matéria de difícil apreensão. Representação magnífica, diga-se de passagem, do Elemento Água é atribuída aos pincéis de Lima de Freitas. No centro, tem-se o ovo, princípio vital feminino, rodeado por pequenas labaredas, que constituem o fogo masculino. No interior do óvulo, tem-se a Árvore da Vida, com seus ramos plenos de folhas lançando-se ao limite ascensional, e suas raízes aprofundando-se ao limite descensional. Um poeta e sua Lira, símbolo e instrumento do Equilíbrio Cósmico, sentam-se em um barco, constituído por uma meia-lua que se reflete nas vagas marítimas. São os acordes extraídos da Lira pelo poeta que fazem dançar os peixes, que fazem vibrar o cosmos de forma harmônica. Externamente ao óvulo, encontram-se medusas, que constituem os inimigos que a Vida está destinada a enfrentar – inimigos prontos a devorar o mais ínfimo sinal de vida que se lhes demonstre. Os peixes são o símbolo primordial do elemento Aquático, visto que os atributos simbólicos da água são também atribuídos aos peixes.


A água, compreendida empiricamente, é símbolo universal de Vida, de Fertilidade, de Fecundidade – as maiores taxas de oxigênio provêm do Oceano, peixes se multiplicam com admirável facilidade, o espaço marinho é abundantemente habitado, por animais de todas as espécies.

Todavia, a Água apresenta, também, uma Simbologia no Plano Espiritual. Nesta última vertente, a água representa uma matéria perfeita, simples, totalmente límpida e transparente; é elemento Sagrado, com Virtudes Purificadoras – como exemplo, tem-se a água do Batismo que, mesmo concedida uma única vez na Vida, é capaz de lavar o Pecado Original, transformando o Homem num Homem novo, graças ao seu poder de regenerescência.


Em contrapartida ao símbolo da Água pura e criadora, tem-se a Água amarga, devastadora, dispensadora de Morte, produtora de maldições – as águas tenebrosas dos mares profundos, das vagas gigantescas. No conto trabalhado, a mesma água que constituía a única fonte de Vida da cidade em ruínas – na água, encontrava-se a última esperança de alimento digno de um ser humano, visto que toda a cidade já se alimentava do que encontrasse pela frente, como se pode perceber em “Tornavam-se muito raros os pardais sobre os telhados, e os esgotos se despovoavam. Comia-se o que se encontrava.” – é a responsável pelo afogamento, pela degeneração completa dos personagens Morissot e Sauvage, como se pode perceber em “– Imaginem que, em cinco minutos, estarão no fundo daquela água”.


A água, em sua faceta mais brilhantemente valorizada por Bachelard, representa a morte cotidiana, a morte ininterrupta, incessante e interminável. Assim como a Água que corre, cai de cascatas e cachoeiras e acaba sempre por morrer horizontalmente, o ser humano apresenta-se como um ser em Vertigem que deixa, constantemente, desmoronar algo de si. Como demonstra Bachelard,

“A Água é não mais o vão destino de um sonho que não se acaba, mas um destino especial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser.” (2002: 6)

No conto trabalhado, antes mesmo de serem ameaçados de morte, os personagens encontram-se cotidianamente desfalecidos, dilacerados, desacontecidos pela interrupção da doce convivência com as águas. O texto constrói, portanto, um paradoxo poético – no qual verdadeiramente reside a sua tranqüila beleza aquática: os personagens, que já se encontravam mortos, vivem uma derradeira e grandiosa vez – no momento em que refazem a convivência com a tranqüilidade hídrica – e, na morte, se consagram ao elemento amado. Fora da comunhão com a água, portanto, esses dois senhores quietos e taciturnos talvez nem tenham existência própria: como paga poética, recebem o aconchego do doce ventre materno.


No entanto, a Água não é elemento desfalecido essencialmente; sua essência, assim como nos demonstra Bachelard, é a de uma matéria que está prestes a perecer, a se transformar, a tornar-se outra:

“Toda água viva é uma água que está a ponto de morrer. Em poesia dinâmica, as coisas não são o que são, são o que se tornam. [...] Contemplar a Água é escoar-se, é dissolver-se, é morrer. Nunca a água pesada se torna leve, nunca uma água escura se faz clara. É sempre o inverso. O conto da água é o conto humano de uma água que morre. O devaneio começa diante da água límpida, toda em reflexos imensos, fazendo ouvir uma música cristalina. [O devaneio] acaba no âmago da água triste e sombria, de uma água que transmite estranhos e fúnebres murmúrios.” (2002: 49)

No conto trabalhado, a água se apresenta, primordialmente, como elemento vívido e ludibriante, que dissimula o universo submerso macabro que se lhe oculta, auxiliada pela bela paisagem que a rodeia e o cantar dos pássaros que a vigiam, como se pode perceber em:


“Quando o sol rejuvenescido fazia flutuar sobre o rio tranqüilo essa pequena barrela que corre com a água, e derramava no dorso dos dois obstinados pescadores um bom calor de estação recente, Morissot dizia por vezes ao seu vizinho: ‘– Que doçura, hem?’ – e o Sr. Sauvage respondia: ‘– Não conheço nada melhor’.”

Essa mesma água límpida, vívida, purificada pode ser depreendida do início da Aventura dos personagens, em que eles chegam à beira do rio e retomam o vício que lhes aliena, o capricho que lhes servirá de isca para o Juízo final:

“Diante deles, a Ilha Marante abandonada ocultava-os de ribanceira oposta. [...] O Sr. Sauvage pescou a primeira cavala. Morissot apanhou a segunda, e de momento a momento levantavam as linhas com um bichinho prateado a saltitar na extremidade do fio, verdadeira pesca milagrosa.”

É ao cair do Sol que a Água assume sua postura triste e sombria, iluminada pela cor escarlate das nuvens que encobrem o céu ensangüentado pelo poente – termos que funcionam como um indício, que possibilitam um correlato imediato entre as dicas lançadas e a resolução que se dará – e auxiliada pelo ruído do canhão que não deixava de troar:

“Quando o céu, ensangüentado pelo poente, lançava na água imagens de nuvens escarlates, purpurejava o rio inteiro, inflamava o horizonte, tornava vermelhas com o fogo e dourava, entre os dois amigos, as árvores já arruinadas, trêmulas de um tremor de inverno, o Sr. Sauvage fitava Morissot, a sorrir, e exclamava: ‘– Que espetáculo!’ e Morissot, maravilhado, respondia, sem afastar dos olhos o seu flutuador: ‘– Isso é melhor do que o bulevar, hem?’.”

A Água tem essa postura macabra confirmada no momento em que a morte dos personagens se dá em seu interior, em seu universo submerso outrora desconhecido pelos mesmos que, alienados, insistiam em se colocar à pesca mesmo enquanto “a cada instante, a montanha golfava a sua exalação de morte, soprava seus vapores leitosos”, como se pode perceber em:

“Dois soldados seguravam Morissot pela cabeça e pelas pernas; dois outros pegaram o Sr. Sauvage de modo idêntico. Os corpos, balançados com força por um instante, foram atirados ao longe, descreveram uma curvas, depois mergulharam no rio, a prumo, arrastados pelas cordas. A Água esguichou, borbulhou, estremeceu, acalmou-se por fim, ao passo que pequeninas vagas vinham até as margens. Flutuava um pouco de sangue.”

A Poética da Água, metapoética da Morte, seguidora da tricotomia macabra Água-Beleza-Morte, apresenta-se sob dois complexos distintos: (i) Complexo de Caronte, no qual se percebe a faceta macabra e horripilante, visto que a Barca tem como destino indubitável um Inferno; e (ii) Complexo de Ofélia, no qual se percebe o caráter fascinante da morte, visto que é um convite ao aconchego do ventre materno, à proteção feminina. Estes complexos encontram-se não em Distribuição Complementar, mas em Complemantariedade inextrincável.


No conto trabalhado, a primeira que se apresenta é a faceta Macabra da Morte, haja vista a crudelidade com que são arrancadas as vidas de cidadãos indefesos pelo andamento da guerra:

“Eles nunca tinham avistado nenhum, mas sentiam-nos ali desde meses atrás, ao redor de Paris, arruinando a França, pilhando, chacinando, esfomeando, invisíveis e todo-poderosos. E uma espécie de Supersticioso terror somava-se ao ódio que tinham a esse povo desconhecido e vitorioso.”

“E o Mont-Valérien troava sem repouso, demolindo, a balaços de artilharia, casas francesas, triturando vidas, arrasando seres, dando fim a muitos sonhos, e muitas esperadas alegrias, a muitas felicidades prometidas, abrindo em corações de esposas, em corações de moças, em coração de mães, além, noutras terras, sofrimentos que não teriam fim.”

Noutra vertente, a Morte se apresenta sob sua faceta fascinante e sedutora, visto que a Morte, por mais que proveniente de um mal-entendido, não se demonstra aos personagens em seu aspecto tenebroso e apavorante – tanto que os mesmos, ainda que diante das ameaças do Coronel Alemão, nada retrucam em sua defesa – mas em seu aspecto sedutor, envolvente, acolhedor; mostra-se como uma proteção das intempéries terrenas, do perigo bélico que fazia parte do cotidiano parisiense:

“– Para mim, os senhores são dois espiões mandados para me espreitarem. Eu os prendo e fuzilo. Os senhores fingiam pescar para melhor dissimularem os seus propósitos. Caíram em minhas mãos, tanto pior para os senhores; é a guerra. Mas, como saíram pelos postos avançados, têm certamente uma palavra de ordem, e eu lhes perdoarei. [...] – Ninguém o saberá nunca, os senhores entrarão em Paz. O segredo desaparecerá com os senhores. Se se recusarem, morrerão, e imediatamente. Escolham. Eles permaneceram imóveis, sem abrir a boca.”

Sendo assim, pode-se perceber que a Imagem primordial do ambiente aquático é a Fonte, fonte diurnoturna que, ao mesmo tempo em que almeja emergir à claridade diáfana do dia, anseia imergir na obscuridade opaca da noite – a água, que oferece o Alimento vivo ao Coronel, oferece um objeto de vingança pela vigia a qual fora submetido:

“O alemão deu novas ordens. Seus homens se dispersaram, e voltaram depois com cordas e pedras, que ataram aos pés dos dois mortos; em seguida, levaram-nos à ribanceira. [...] O oficial, sempre sereno, disse à meia-voz: ‘– Agora é a vez dos peixes!’ [...] ‘– Trate de me frigir quanto antes esses bichinhos, enquanto estão vivos. Será uma delícia’.”

Dá-se, enfim, a Dialética Poética, a ritmanálise dos compostos: morte e vida, claro e escuro, dia e noite, ser humano e Animal – tanto os peixes quanto os homens são devorados repentinamente: os homens, pela água; os peixes, pelo Coronel – se complementam numa Unidade inextrincavelmente dual.
 

 

 

ANNA CAROLINA DA COSTA AVELHEDA, bacharel em Letras – Português/Literaturas – pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é pesquisadora integrante vinculada à linha de pesquisa "Língua e Sociedade: variação e mudança".

 


 

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