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clodie vasli


pequeno jardim depois que a chuva cai

 

 

 

No outono ou apagando um cigarro atrás do outro

Raramente gosta do que escreve. Na verdade, nunca sente nenhuma espécie de satisfação com o resultado final. E é precisamente por isso que, sempre logo após de acabar um texto, o joga fora. Não considera seus sentimentos material que interessaria a qualquer pessoa.

Achou até mesmo – quando era criança – que um dia poderia (quem saberia) ser feliz ou algo parecido com.

Mas agora (impaciente) destrói com fúria, no meio da fumaça, tudo o que acabou de escrever. Não escreve os seus rascunhos no computador. Acha melhor enfrentar o papel vazio a exigir o sangue preto em forma de sentenças, períodos e parágrafos.

Mais um. Apaga mais um e o cinzeiro vai enchendo-se de cinzas.

Em seu quarto, a fumaça suspensa entre a luz da lâmpada da escrivaninha e as rugas de sua testa e ao seu redor o escuro.

Mas escrever o quê?

Quem sabe escrever um livro, talvez fazer um filme, pintar um quadro ou dirigir uma peça de teatro. Ia acender mais um cigarro mas percebe que está sem fósforos. Vai até a lojinha pegar mais uma caixa.

Poderia escrever sobre a cozinha de sua casa ou sobre uma gaveta cheia de facas afiadas.

Mais papel para a lixeira. Sente um cansaço, uma preguiça, uma dor nas costas, nos ombros e no pescoço.

Com o cigarro entre os dedos, liga o rádio. Nenhuma estação àquela altura do ano.

Fuma mais um e olha para a escuridão à sua volta – quem sabe escrever sobre a noite, solidão, tédio, tristeza ou vazio.

Quem sabe escrever sobre pessoas que fumam sozinhas, em casa, àquela hora da noite, no outono.

De longe, observa os prédios apagados mas sempre há uma janela acesa. Não há?

 


Depois que a chuva cai

O barulhinho que a chuva faz nas folhas das plantas e no telhado e no chão. Chove de madrugada na escuridão.

Eu estou sempre acordado em momentos inadequados para a maioria das pessoas.

É que não trabalho bem durante o dia. Se não fosse a noite, eu nada escreveria.

Mas talvez (isso eu não sei e nem sei se algum dia saberei) tudo o que eu escrevi não tenha tido utilidade alguma. Como apenas mais uma chuva… como apenas mais uma madrugada ou mais um dia a minha poesia.

E, enquanto a chuva cai, faço um pedido só que para quem afinal?

Quantas pessoas estão acordadas neste momento nesta cidade e também sem conseguir dormir e também cansadas e também sozinhas como eu estou agora?

Mas a mim – que a chuva me faz escrever – só me resta adormecer.

Amanhã acordo cedo, vou ao quintal só para sentir o cheiro do verde-molhado.

A terra, as flores e as árvores carregadas de frutas maduras.

Uma chuva não é uma lembrança e não é uma dor e não é um motivo e muito menos uma inspiração.

Uma chuva é somente uma chuva.



Pequeno jardim, terra fértil e flores delicadas

Até isso demora: a próxima página, a próxima palavra, a próxima frase que tentará exprimir o que sinto embora o que eu sinta não seja passível de ser demonstrado com palavras...

Sinto sempre a mesma sensação e passo horas me ocupando de longos períodos para acabar por dizer sempre o mesmo. E, depois de tê-lo dito, a constatação: não era bem isso. É mais ou menos mas não exatamente. É como tentar segurar com força o que está no ar: idéias, átomos, partículas suspensas de pó...

Não consigo agarrar nem com as mãos nem através de palavras o que estou sentindo. Só me resta tecer justificativas, pedidos de perdão, longas falas desinteressantes como esses dias, entediantes como essas tardes, atormentadas como essas noites, desconfortáveis como essas madrugadas e mal-humoradas como essas manhãs...

É a essência desse discurso de raiz que adentra a terra há séculos: você ouve o que eu quero dizer nas canções, nos filmes, nos espetáculos, nos shows, nas exposições, nos sonhos...

E aí você pára um pouco e se pergunta quem sou eu, distraidamente...

Esquece. Volta-se para a tela e continua a trabalhar. Até o fim do dia. Até o fim-de-semana. Até o fim do mês. Até o fim do ano. E assim por diante...

Sabe uma resposta que nunca ninguém poderá lhe dar? É isso o que eu escrevo. É disso que vivo. É nisso que me desloco. Lento. Longe. Livre...

Eu convido você a experimentar essa sensação: perdoe-se...

E você irá trabalhar diferente, dançar diferente, dormir diferente, sonhar principalmente sonhar diferente...

E então você verá que a próxima página nem é tão difícil assim de ser escrita e que a próxima palavra – de afeto ou de maldição – é sempre e apenas a palavra mais interessante e você descobrirá que a próxima frase jamais será a última frase. Jamais será a primeira...

Uma fase na minha vida é apenas uma frase na minha vida.


 
 

CLODIE VASLI é cronista, poeta e aprendiz de artista plástico. Além de graduar-se em comunicação social na universidade federal do Rio Grande do Sul em 2003, foi coroinha, líder de grupo jovem, balconista de padaria, síndico de moradia universitária, copeiro de hotel, telefonista, entregador de jornais e fotografias, vendedor de seguro-de-saúde, supervisor em um café, garçom, estagiário de relações públicas e jornalista. Além disso, foi colaborador e colunista da revista brasileira Real, editada na Inglaterra. O autor mora em Londres desde 2004 e mantém o blog Visionary Archtecture Experiments.
 


 

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