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aderaldo luciano
Viver é como dormir: uns têm pesadelos, outros não
querem acordar e há aqueles, como eu, que são acalentados pela insônia
(A última coluna de Aderaldo Luciano para a Confraria. Agora ele vai
dedicar-se exclusivamente à culinária japonesa)
1. Estou em conflito com minha tese de doutorado. Ela está ganhando o cabo
de guerra. Teima em não sair do lugar e seu peso é grave, seus pés se
enterraram na terra e dali não avançam nem um milímetro. Cometi um erro de
avaliação e estou pagando o preço. Abandonei antigos projetos e o novo
projeto pede mais gás. E para mim, todo gás agora, é de efeito estufa.
Estou estufando. Vou tentando e cada vez que me sento para escrever, vem
uma voz e me diz: –
Não vai sair, não vai sair, não vai sair!” Daqui a
pouco é todo mundo gritando: “–
Não vai sair, não vai sair!”, como naquela
música louca de Roberto Carlos “Guerra dos meninos”, que alguns
evangélicos dizem que é diabólica.
2. –
Menino, tomai cuidado
Com as vozes que escutais
Porque o poço da vida
Já nos dá vozes demais
Este boneco não fala
Há outra fala por trás!
–
Não zombe assim do rapaz
Pois isso ele já entende
Mesmo o boneco falando
A voz não o surpreende
O ventríloquo é um boneco
Qu’outro boneco suspende.
–
Quando esta luz se acende,
A luz da sabedoria,
E vê-se além do que é visto
Ciente da fantasia
A lua ultrapassa a noite
E o sol subjuga o dia!
–
Você usa a poesia
Para ilustrar a dureza
De despir a ignorância
E promover a surpresa
De ofuscar a mentira
Com a luz da verdade acesa!
3. Me meti a adaptar para a Literatura de Cordel “A Metamorfose”, aquela
história do Franz Kafka. Mas expliquei aos editores que meu plano é um
cordel-quadrinhos no qual cada sextilha corresponde a um quadrinho,
expostos lado a lado. Entretanto o quadrinho não quero o quadro desenhado
explicando nem representando a sextilha, nem um retrato da situação. Deve
ser a leitura do ilustrador. Os seus sentimentos diante do escrito, assim
cada quadrinho não deve representar a narrativa e talvez tenha mesmo um
outro olhar estranho, uma outra história. Os editores acharam muito
complicado e me acuaram a desistir do projeto.
4. “O Rio São Francisco estava ali bem na sua frente. Era o primeiro rio
de verdade que Pedro via. Tinha água marrom. Eram águas de inverno. Do
lado de cá uma cidade chamada Juazeiro, do lado de lá, Petrolina. Viu
coisas que nunca imaginara ver. Viu uvas e mangas, morangos e cajus.
Alguém comentou que aquelas frutas eram produzidas ali mesmo com água do
rio que tinha nome de santo. Tudo que ouvira até ali sobre o Nordeste é
que era uma terra seca, de famintos. Mas uva e morango? Ali? Aquilo não
era o que chamavam de sertão? Pedro começava a ver as verdades
amadurecendo em seus olhos!” Escrever é cortar o “que”! Tente quem quiser!
5. “Justifica-se essa proposta pela urgente necessidade de serem
corrigidos equívocos e enganos no trato com a poesia oriunda do Nordeste.
Como foi dito na Introdução, toda a produção poética nordestina é
confundida com um todo chamado Literatura de Cordel, quando, em verdade,
esconde particularidades e peculiaridades despercebidas inclusive por
estudiosos diligentes e pesquisadores corretos.” É isso mesmo!
6. Não venha para cá conversar besteira. Sei que você não leu a “Peleja
virtual de Glauco Mattoso com Moreira de Acopiara”! Muito menos as
“Traquinagens de João Grilo” de Marco Haurélio. Tampouco “As Aventuras do
Matuto Zé Ruela” de Cacá Lopes. “O Cangaço Sustentado Pelos Coronéis” de
Varneci Nascimento, então, é alienígena para você. Não leu, né? É pedir
demais para você, não? Pois bem, meu filho, esse seu preconceito, essa sua
falsa cultura, essa bazófia sua, tudo isso, que você alardeia, até suas
leituras esquizofrênicas sobre Heidegger... Você já leu Costa Senna?
7. Senhores, esta é minha última coluna para a Revista Confraria. Agradeço
aos que me lêem e me guardam. Várias coisas levo, além dos amigos, dos
quais não me afastarei. Sou grato à toda equipe da revista e da editora,
foram benevolentes e pacientes e outros entes. Mas está na hora de uma
licença sabática, como digo sempre. Aos poucos leitores, continuo rondando
e sabem onde me encontrar. Vou montar um restaurante de comida japonesa e
uma casa de banhos e banhas!
8. Os sulcos de minha vida
têm se tornando mais planos
Ficarão mais rente ao solo
Com a passagem dos anos.
E quando chegar a hora
Em que eu precise ir embora
Pro outro lado do muro,
Haverá coisa certeira:
O coração da madeira
Será meu porto seguro!
ADERALDO LUCIANO é
paraibano, nascido em Areia, poeta e sushiman.
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