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victor paes


a morte de um performer



 

“Bullet strikes the helmet’s head”, sua canção. Seria um exagero, se ele realmente não visse as cabeças dos artistas sempre a prêmio – pagar com vender objetos usados pela nova aspirina da cabeça dos outros. E porque o exagero tem mais com o cotidiano do que com a morte.

Seu nome não cabe aqui. Talvez o último (avós e quintais), mas ainda assim eu estaria, segundo ele, interpretando-o mais uma vez.

Debaixo dos arcos da esquina teria o ladrão da rua enterrado, uma única vez, os resultados de sua coragem. Enterrado tão uma única vez, que não era mesmo para que alguém encontrasse. Isso ainda entre chupetas e mamadeiras, sabor, cheiro e vertigem do mistério. Um. Não adianta, Nietzsche, por exemplo, não retorna a cada vez que é lido, não é isso. Isso é o máximo a que relegamos as presenças, permanência. Nietzsche está lá neste exato momento, dentro de sua vida, vivendo-a uma única vez (não interessa se acha que por um milhão delas). E nem isso ainda seria “o mistério da fé”. Ele me disse que tinha pesadelos com Nietzsche. Nietzsche é sempre um bom exemplo.

Performance 3: algo na madrugada, que não pessoa, que não objeto: algo que estivesse tão entre um e outro, tão no meio disso, que não fosse os dois ao mesmo tempo, mas nenhum deles, nada. Algo que não fosse nada: em pé no meio da rua, nem pessoa (calçada), nem objeto (carro). Em pé, sem figurinos e adereços, nem esperar nada, nem a morte – a forma da morte é ser uma só, mas essa coisa decomposta pelo espaço da vida toda. O momento da morte em si não importa nada.

Apenas na cabeça, subverter a ordem dos mapas, que ninguém soubesse o quanto ele tinha a dar. Conheci-o afogado, cinqüenta pessoas sobre ele na areia. Jurou-me que não se lembrava de seu nome. Jurou-me que não era performance. Mas eu sabia ainda pouco disso e duvidava. Estratégia de jurar para que tudo fosse mesmo ficando inverossímil, como seu endereço e seu nascimento, no funeral de um tio morto por eutanásia. Gana pelo inigualável, não aceitava essa história de que tudo que acontece poderia já ter acontecido igual, ou poderia um dia acontecer igual, ou, o que era pior, estar, no mesmo momento, acontecendo igual, com as mesmas pessoas, em outro país. Se é outro lugar, já não é exatamente igual. Chegou quase aos tapas, quando lhe disseram que talvez na pré-história, ou na idade média, poderia ter havido alguém com o corpo exatamente igual ao dele, quem sabe com o mesmo DNA. Não, para tudo só havia uma única chance. Mesmo para o que é pensado para ser repetido, uma foto, uma gravação, uma filmagem, tudo é improviso, performance única perpetuada na própria impossibilidade de repetição. Não era exigência de exclusividade, mas eram os fatos. Encorajava-se.

Encorajado sempre, acabou nunca me contando por que decidiu não fazer na vida apenas uma performance, mas três. Três.

Performance 1: cansado de ser virgem, foi um dia para sua faculdade de belas-artes com um cinto de castidade e quilos de chaves sobre o corpo: quem achasse a chave certa herdaria-o. Mas o preço da curiosidade de fazer uma tentativa era o do acerto e do que deveria se aceitar fazer depois. Conseguiu. Quem acertou a chave foi uma alegre funcionária da limpeza da faculdade. Ele me jurou a beleza dela. Mas o sexo, ainda da performance, deveria ser único. O que facilitou foi ela ter sido despedida.

Performance 3: a luz fraca dos postes ajuda muito a alguém que queira chegar perto de não ser nada. Como se faz para se saber de uma coisa que só seria o que é se ninguém soubesse? Enfim, tudo o que se conta é tão mais outra coisa, que tanto faz. Talvez apenas neste exato momento, em que posso dizer que ele era alguma coisa ali em pé na rua, ele não seja nada. Mas não, para todos os efeitos, isso nunca aconteceu.

No dia da formatura na faculdade inventou um dilema para si. Pois só aí decidiu pelas três performances – o máximo que me disse. Mas como já tinha realizado a primeira, o número três mostrou-lhe todo o seu vigor de não ser um ou dois. O um não poderia ser o mesmo um três vezes para chegar a três. Na verdade, nenhum número chegava a nenhum outro, cada um em seu infinito significado único. Mas isso não resolvia o dilema. Então, do pouco que me contou, concluía aí que deveria fazer exatamente assim, deixando para depois das três performances o dilema, agora inevitável.

Um dia me telefonou às quatro da madrugada me perguntando como eu poderia fazer para esquecer que ele havia me contado sobre as três performances... que a primeira tudo bem que soubesse, parte do dilema, mas as outras... Eu disse que era só não me contar quais eram as outras. Ele disse “ah, é...” e desligou. Uma semana depois me chamou para assistir à terceira.

Marcou comigo exatamente às quatro da madrugada em uma rua perto de casa. Nos falamos na esquina, ele me disse uma coisa sobre a segunda performance e pediu para que nunca contasse a ninguém e nunca contei e nunca contarei. Aquela terceira eu poderia até contar, mas não o que ele me contou sobre a segunda. Mas nem a terceira contei e não estou contando agora.

Performance 3: em pé no meio da rua, de olhos fechados, parecia tentar nem mesmo respirar. E eu confesso que por algumas vezes fiquei preocupado em ser assaltado ali naquele lugar.

Quem me ligou um dia foi seu pai, de ter remexido nas coisas dele e de ter encontrado, nenhum caderno ou papel, apenas uma caderneta de telefones, na qual apenas meu telefone. Ele me inquiriu se isso eram drogas. Eu disse que tudo que sabia dele poderia um dia escrever em um texto com no máximo duas páginas e, mesmo assim, ornamentando bastante. Seu filho é um artista. Artista de quê? Queria ter dito de performance, mas não podia.

Performance 3: em pé no meio da rua, de olhos fechados, não viu – e mesmo eu quase não vi – como as coisas se tornaram definitivamente diferentes do que tinha preparado. Imaginei se talvez, em vez de estar não sendo nada, estivesse pensando em quanto tempo mais deveria ficar ali, ou se um dia o seu dilema o levaria ao suicídio. Talvez tenha deixado uma dessas palavras pela metade, quando uma motocicleta veio do nada, levantou-o no ar, levantou também no ar e caiu, com motociclista e tudo, por trás de um muro. Apenas alguns segundos quebrados e sobrou o mesmo silêncio anterior. Mas, para todos os efeitos, nada disso aconteceu.


 

VICTOR PAES é escritor, editor, ator e professor. Publicou, em 2007, seu primeiro livro, O óbvio dos sábios. Tem seus trabalhos em diversos sites de literatura. Escreve também para teatro e sua peça Mara em um quarto estará em cartaz durante o ano de 2008. No momento, prepara seu primeiro livro de contos. Sua página na internet: www.victorpaes.blogspot.com
 


 

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