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paloma vidal
tununa mercado e os restos da viagem
A expressão “Narrar
después” serve de título a um livro de ensaios da escritora argentina
Tununa Mercado, que designa assim uma experiência comum a vários
escritores de sua geração que, como ela, se formaram nos anos 60 e
continuam escrevendo neste início de século XXI. A imagem sugerida por
Mercado é a de vulcões apagados. Ela se lembra “das noites febris de
estudante, quando dois ou três nos reuníamos na véspera de uma prova e
passavam diante de nossos olhos o ato gratuito de Lafcadio, a náusea
sartreana, a tábua de metal arltiana, o Sísifo albertcamusiano”. Talvez se
possa situar na queda da URSS o início desse “depois”, quando a
efervescência moderna desapareceu e “transportou no mesmo barco náufrago a
morte das utopias, da história, das vanguardas, da iconoclastia na vida e
na arte, o fim, em suma, da revolução”. Yo nunca te prometí la
eternidad, livro mais recente da escritora, publicado em 2005, é uma
forma de narrar depois. Como veremos, o que se narra ali não é mais a
viagem, mas os restos dela.
A escrita de Mercado responde, como se indica várias vezes ao longo do
texto, a uma incitação, um mandato, uma convocação do outro: “Escreva-me”.
O livro surge da apropriação de um trauma alheio a partir de uma vivência
própria. Desse encontro, emergirão “zonas que estavam escurecidas” tanto
para quem escreve como para quem é escrito. Exilada durante a ditadura de
1976, Mercado morou dez anos no México. Lá conheceu Pedro, filho de Sonia,
uma judia alemã forçada a fugir de Paris na primavera de 1940 com seu
filho pequeno, face à iminência da invasão nazista. O livro se desdobra a
partir de uma cena traumática: já na estrada, Sonia deixa Pedro no
caminhão que os transportava em direção ao sul para ir buscar água e
mantimentos numa cidade vizinha; diante de uma ameaça de bombardeio, o
caminhão parte, separando mãe e filho. É esse o “instante que rege esta
narrativa”, diz Mercado. Partindo dele, vai sendo construído um “arquivo
de memória alheia”, que conduz a narrativa em direções inesperadas.
A cena traumática aparece pela primeira vez em En estado de memoria,
livro que Mercado escreveu sobre seu exílio e o retorno dele, publicado em
1990. Uma série de deslocamentos marca o trecho da narrativa em que a
história aparece, intitulado “Visita guiada”. Mercado começa falando de
Pedro, “refugiado espanhol, mas de difusa nacionalidade” que “grudou” nos
exilados argentinos morando no México. Em seguida, narra a cena traumática
da fuga de Paris, a separação da mãe e o posterior reencontro, que por
mais feliz que tenha sido, não apagou as seqüelas do trauma. “Talvez ele
se unisse a nós”, diz Mercado, “porque a reprodução do vazio era o estado
próprio do exílio: carência, compensação da carência; nudez e
agasalhamento, mutilação e prótese”. E aí ela está falando de Pedro, mas
também de sua própria condição de desterrada, condição que a levará, assim
como a outros exilados, a visitar freqüentemente a casa de Leon Trotsky,
“o modelo máximo da maior tragédia e do desterro mais dramaticamente
interrompido”. Mercado conta então como eram essas visitas e termina o
fragmento referindo-se a uma “distante e imaginária casa ‘paterna’ que,
saltando as décadas, transmigrava para me abrigar”. Vê-se singularmente
nesse trecho o recurso do deslocamento usado por Mercado ao longo de todo
o texto como forma de narrar sua própria experiência.
Já no primeiro fragmento de En estado de memoria, intitulado “A
doença”, identifica-se esse recurso. Mercado narra o encontro com um homem
chamado Cindal, que na sala de espera de um consultório psiquiátrico busca
ajuda desesperadamente. “Diga a ele que faça alguma coisa por mim, que
faça alguma coisa por mim! Estou tendo uma úlcera, estou tendo uma
úlcera!”. A situação paralisa a secretária, o médico e os outros
pacientes, entre os quais está a escritora, que não sabem o que fazer
diante dessa dor que irrompe fora da ordem estabelecida. A dor de Cindal
vem “obscurecer a vida dos outros e socavar a plenitude à qual todos têm
direito”, diz Mercado, mas ao mesmo tempo ela traça uma “letra fulgurante
e vermelha”, que é uma forma de poder falar de uma experiência
compartilhada por muitos exilados, com a qual Mercado se sente
identificada e ao mesmo tempo da qual precisa se separar para poder
sobreviver.
“Estou escrevendo um livro que sai de En estado de memoria, de um
resto que retomei e que ganhou uma nova dimensão”, diz Mercado numa
entrevista em relação a Yo nunca te prometí la eternidad. A cena
que Em estado de memória era um desdobramento de seu próprio
desterro e de seu próprio desamparo aqui será o meio para se descolar de
si e narrar a história de Sonia. Lemos na primeira página da narrativa:
“Sonia, uma pátina que descolo das paredes de meu recinto, onde entrei
para habitar, como quem separa de uma superfície o que permanecia
descascado e fragmentário e se propõe a uni-lo numa composição paulatina e
de crescimento imprevisível”. Dá-se, assim, ao invés de um deslocamento,
um descolamento, que se manifesta de maneira muito explícita num
momento no início do livro, quando Mercado passa a utilizar a primeira
pessoa não mais se referindo a si própria, mas a Sonia: “Carrego num ombro
todo o peso de uma bagagem improvisada, na minha mão direita livre levo a
esquerda de um menino. Ele é Pierrot, meu filho, e tem sete anos”.
Tanto em Yo nunca te prometí la eternidad como em En estado de
memoria, trata-se de recolher restos de viagens, configurando um
trabalho específico com a memória. A memória que a escrita pretende
recuperar não é conciliatória, apaziguadora, compensatória, mas a memória
“que se sofre por intempestiva, a que nos desvela quando se eclipsa, a que
se exerce como um mandato ou se elude por autocompaixão”, como Mercado diz
no texto “Histórias, memórias”, incluído em Narrar después. Isso
exige da escrita uma experimentação com seus próprios meios. Afinal de
contas, a recuperação de certas “zonas escurecidas” da memória ao invés da
reprodução do que já se cristalizou não está simplesmente dada. Assim,
acompanhamos nos textos de Mercado o surgimento de uma escrita da memória
em que a alteridade é um mecanismo propulsor, que funciona como abertura
do sentido, permitindo resgatar um material que parecia destinado ao
silêncio.
No artigo mencionado, Mercado narra três momentos em que histórias alheias
“fizeram memória nela”. Trata-se nos três casos de histórias de êxodos,
que “estavam em mim e no pano de fundo de minha própria escuridão,
entretecendo um manto entre cujas dobras eu também existia”. A primeira é
a de Eva Alexandra Uchmany, sobrevivente de um campo de extermínio
nazista, que aceita ser entrevistada por Mercado quando fica sabendo que
ela é uma exilada argentina. “Ela me contou sua história porque eu estava
esperando escutá-la”. Eva conta então a Mercado como escapou da câmara de
gás em Auschwitz graças a uma mulher que a escondeu debaixo de sua
camisola. A segunda história é a de Gondi, republicano espanhol, que se
refugiou no México quando Franco tomou o poder e se tornou chefe de
redação da revista Tiempo, onde Mercado trabalhava. Ao decidir
fazer uma viagem à Europa em 1979, Mercado o convida a ir com ela, mas ele
se recusa, pois sentenciara que nunca voltaria à sua terra natal. Ela
decide fazer a viagem por ele e visita a sua cidade, Sama de Langreo, em
Astúrias, onde Gondi é conhecido como o filho de Perfecto, fuzilado pelos
fascistas. Antes de falecer, Gondi entrega a Mercado a carta que seu pai
mandara ao irmão antes do fuzilamento, da qual ela reproduz um fragmento
no seu texto. A terceira história é a de Sonia e a de sua separação de
Pedro, que confiaria a Mercado os diários de sua mãe depois de ler a cena
relatada em En estado de memoria. Seguindo os rastros dessa
escrita, Mercado conta que começou a escrever um texto que ainda não sabe
se será literatura.
Encontrar uma definição de gênero é o que menos importa em Yo nunca te
prometí la eternidad. O que está realmente em jogo é a elaboração de
uma escrita da memória, para a qual o diário de Sonia, que Mercado traduz,
é o ponto de partida. Ela retorna a ele várias vezes na narrativa, em
busca de informações sobre a viagem que está tentando reconstruir. “Já o
escrevi várias vezes, mas preciso reiterá-lo, talvez para me convencer da
pertinência de intervir neles: essas notas tinham um tipo especial de
incompletude”. Uma incompletude que pede ser completada, ela dirá, que
exige uma nova escrita para preencher os espaços abertos pelas elipses, os
cortes, os resumos, os tracinhos entre uma palavra e outra: “Sexta-feira.
14. junho. Depois das 6hs monto guarda na Praça Carnot. Compro sandálias e
calcinhas – Delegacia – Prefeitura – Gendarmaria – nada – a estação –
procuro os banheiros – Jacques e Jean, rua Desnoyers – no café – Delegacia
– saem para Bordeaux – Angoulème – mensagem para Ro. Durmo nos Halles
Praça Carnot”, lemos em uma das entradas.
No dia 20 de junho, surge a inicial W e novos rastros a seguir. Sonia
escreve: “inesperado encontro com W – incrível – ‘o mestre’ – discussões:
Shopenhauer, Nietzsche”. A referência a uma discussão filosófica nesse
contexto intriga Mercado. Num livro intitulado Para Walter Benjamin,
com testemunhos, entrevistas e artigos de homenagem ao escritor, ela
encontra alguns fac-símiles de mapas nos quais um possível encontro entre
ele e Sonia começa a se desenhar. Mercado segue as pistas desse achado. No
capítulo seguinte, recolhe os restos dessa outra viagem, que levaria à
morte. “WB queria falar”, ela escreve. Mercado imagina um breve convívio
entre Sonia e ele, travados pelas circunstâncias, acossados por uma Europa
que não os quer. “De montanhas em montanhas, da Alemanha até o ponto que
os havia reunido depois de anos de exílio na França, a grande massa
européia havia ido perdendo seus objetos, numa operação de esvaziamento: a
mesa fora ficando desocupada e eles, os hóspedes, os últimos comensais,
estavam literalmente de pé no último contraforte em declive de um
altiplano”. Nessa situação-limite, WB acaba optando pela morte. Ela
imagina os pensamentos desse homem cuja casa são agora seus papéis, seus
escritos, sua obra, que ele carrega numa maleta da qual nunca se separa,
usando-a como almofada durante a noite. Mercado tenta se aproximar desse
momento inimaginável da morte, como se quisesse evitá-la. “Há em meu pesar
por essa morte uma absurda vontade de impedi-la”, ela diz, “de romper o
não-retorno e levar as coisas de volta a um antes”.
O texto todo é movido pelo desejo de recuperar o irrecuperável. A Pedro,
filho de Sonia, Mercado solicita fotos e objetos, como se quisesse tornar
a história mais palpável e mais próxima. A escritora se torna uma
colecionadora de cartas, livros, cadernos. Seu método de trabalho é a
disseminação. “A escrita chama a escrita”, ela diz. Mercado fala de
“trajetos que se abriam em toda as direções”. Surgem vários outros
personagens: Jeanne, Omri, Ro, Gertrud, Bertha, Monica. “Progressivamente
o universo de Sonia se povoou”, lemos. A escrita é como um tecido
infinito, em que se entretecem narrativas, imagens, relatos que o fazem
aumentar de maneira insuspeitada. “A constelação se abrira quando WB
apareceu com suas letras entrelaçadas no manuscrito de Sonia, ampliou-se
nas revelações que Ro fez a Pedro e continuara crescendo em remissões
múltiplas que começaram a encher as últimas páginas dos livros, aos que
por sua vez me remeteram outros nomes e outras circunstâncias”. A analogia
entre escrever e tecer se torna explícita no final do livro, com a
referência à fábrica de tecidos para decoração que Sonia abriu no México,
atividade com a qual a própria escritora se familiarizou quando morou
nesse país.
Outra analogia marcante é a da escrita com a caixinha “portadora de
infinito” que Pedro carrega consigo na fuga de Paris. “O conteúdo era
evidentemente uma viagem ou, para dizê-lo melhor, um percurso, duas
instâncias que estavam já incorporadas no menino ainda que ele não fosse
consciente disso. As narrativas para ele eram não só ‘de viagens’, mas
viagens em si”. Assim como para o menino, para Mercado a narrativa é uma
forma de viajar. Ela conta suas idas e vindas ao México para conversar com
Pedro, assim como uma viagem a Port Bou, que duplica a viagem de Walter
Benjamin, em busca de alguma pista de sua morte. “O olhar quer isolar
alguma coisa, um signo, uma atmosfera do tempo que se deteve nesse lugar,
na noite do dia em que WB ainda pensava que chegaria à Espanha”. Há
igualmente uma viagem a Israel, onde ela se encontra com Omri Lernau,
filho de Hanan, único irmão de Sonia, que partiu da Palestina nos anos 20.
“Ainda que não tivesse surgido nada desse encontro e eu tivesse retornado
só com as vagas lembranças de um homem já desentendido do passado, que
nada quisesse ter a ver com a família de seus pais, só o fato de
conhecê-lo teria bastado para instaurar novas condições”.
Yo nunca te prometí la eternidad se dobra constantemente sobre si
próprio. A pergunta sobre as condições de possibilidade da escrita é, em
última instância, seu fio condutor. Como recuperar uma história que não
nos pertence inteiramente? Como escrever a partir da experiência e da
memória alheias? O que resultará dessa busca será literatura? “Entre a
realidade e a invenção”, Mercado situa sua narrativa. Atravessar as
fronteiras de gênero se torna uma necessidade. Entre o diário, a ficção, o
ensaio, a biografia, a correspondência, insinua-se a possibilidade de
construir uma memória. Passamos a narrativa toda com a sensação de que
talvez os caminhos percorridos não levem a lugar nenhum e, num certo
sentido, não levam. Tudo o que temos são restos, mas são eles que valem.
Eles são a narrativa. A escrita é como um “álbum”, propõe Mercado. “Um
álbum tem sempre páginas em branco”, ela diz. Ou ao menos, poderíamos
dizer, tem sempre espaços em branco, impossíveis de preencher, como no
diário de Sonia. Tudo entra nessa história, mas ao mesmo tempo há um todo
que nunca se completa. A história de Sonia nunca se fecha. É a história da
guerra e da imigração, de um mundo provisório e precário, em última
instância irrecuperável. Mas essa impossibilidade é precisamente o que
move a escrita de Mercado, entre a “epifania do encontro” e o “pesadume da
perda”.
PALOMA VIDAL nasceu
em Buenos Aires, em 1975, e atualmente mora em São Paulo. Além de tradutora e editora
da Revista Grumo, é escritora, tendo publicado o livro de contos A duas
mãos, em 2003, e participado das antologias 25 mulheres que estão
fazendo a nova literatura brasileira (2004), Paralelos: 17 contos
da nova literatura (2004) e A visita (2005).
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