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vicente franz cecim


o cesto e a lança, um fragmento

 

 

 

 

e tendo dito isso Oniro,


agora ele lembraria o vento: o Vento, que estaria passando e dizendo, insistindo
- O animal é uma falta de tudo para sempre

E olhando aquelas asas, negras, brancas, negras se ferindo no céu,
se perguntaria: O que é a dor?


E perto dele agora longe dos Livros o omem de areia ouviria essas palavras
- O que é a dor?
E repetiria:
- O que
dor?
Com um grão de voz

Que água em eco agora viesse umedecer aquela areia umana?


Mas não seria da dor que Oniro falaria.

Em vez disso, ele diria:
- Orino, duas coisas eu quero te dizer sobre os teus passos pela vida,
a oculta com luzes

A primeira,
é que estando só em teus passos pela vida, não estás.

Ouve, a revelação do Amigo em ti


Tu nunca deves sair sem companhia, a Companhia, através dessas ascensões e

quedas que sempre ondulam diante de um homem.

Mas como farias isso, se fosses um só?
Pois o que eu te digo é que não és um só, sendo, mas podendo ser dois em ti, o

duplo Orino.
 

o?o

Assim, quando saíres pela vida, através dessas ascensões e quedas que sempre

ondulam diante de um homem, leva contigo o teu Amigo, aquele que irá cuidar de ti

se caíres, te erguendo com mãos longas de amizade e novamente te pondo mais

próximo do céu do que estiveste como ser caído na terra: e é isso a Amizade da coisa em si pela coisa em si, que também balbucia em nós, como em nós balbucia, querendo nascer, a Amizade da coisa em si pelas coisas que as outras coisas são em si fora de nós.
 

Se caíres, pede:
 

- Amigo, me ergue.
 

Se tiveres sede, diz:
 

- Amigo, me dá de beber.
E se tiveres sono,

       mas com olhos muito abertos dentro de ti que não querem porque não querem se fechar, nessa agonia de estar desperto sem remédio que às vezes tortura um animal humano,

        implora, com voz infantil:

- Amigo, me põe para dormir
em ti.


       Esse amigo, Orino, é em ti aquele outro que sendo tu mesmo em ti num outro ama a água mas não a sede, o céu mas não a terra, os olhos fechados mas não os olhos abertos, e muitas coisas mais que não te digo porque não sou ele, sendo, como sou, a amizade por ti por fora, enquanto ele, o teu Amigo em ti, é o teu amigo por dentro.

Entendes? Isso? Ainda que sejamos em nós oos?
E entendes que não podes sair sem ele através dessas ascensões e quedas que

a vida sempre põe diante dos passos de um animal?

Pois, e se caíres? E se tiveres sede? E se tiveres sono sem sono?
Quem há de te erguer da terra, de dar a água, te fazer dormir?

Então, pede a ele, Orino:

- Amigo



       - Eis agora, Orino, diria Oniro, a outra coisa que eu quero te dizer sobre os teus passos pela vida,

a oculta com luzes.
A segunda.


       Avançando apenas tu, pela vida, não deves avançar tão sozinho, o Sozinho. Outras coisas devem te acompanhar, que não são, nos dias, a tua sombra e, nas noites, a ausência dela

não, não é ela, a que se afeiçoa às noites e nas noites te abandona

       Essas são coisas que ainda não tens e precisas construir com as tuas mãos, de lã e luz, para esse teu longo avançar apenas tu, o Sozinho, pela vida

Ouve, a revelação chamada O Cesto e a Lança para teu uso a cada passo

       Tu nunca deves sair sem eles, o Cesto e a Lança, através desses desvios um para a esquerda e outro para a direita que sempre dividem o caminho diante de um homem que vai, o um em si, o Sozinho.

Mas como farias isso, se não tens ainda o teu Cesto e a tua Lança?

Pois o que eu te digo é, sob este céu de estrelas negras:

       senta agora mesmo e tece o teu Cesto com tua mão de lã e palha, a Serena, e talha a tua Lança com tua mão de luz e lâmina, a Sangrenta, e guarda contigo o teu Cesto e a tua Lança, Orino.
       Então, quando saíres pela vida, através desses desvios um para a esquerda e outro para a direita que sempre dividem o caminho diante de um homem que vai, o um em si, o Sozinho, leva contigo o teu Cesto e a tua Lança,
        e, o teu Cesto, usa para ficares só contigo, nele, fora da vida por fora em silêncio e calado, o Quietamente, desnascendo-te, sendo-te fora do ser-te, entendes
        e, a tua Lança, usa para saíres de ti para penetrar mais fundo na vida fora de ti, com ela, com muitos uivos, o Agitadamente, renascendo-te, sendo-te ainda mais fundo no ser-te, e penetrando mais na vida,

 entendes.

 

        E como farás isso?

       Se indo através desses desvios um para a esquerda e outro para a direita que sempre dividem o caminho diante de um homem que vai, o um em si, sozinho, estiveres levando contigo o teu Cesto e a tua Lança,

 


e o caminho for se dividir para ti,
pergunta ao caminho ainda Um só antes da divisão diante de ti:
- O caminho será este ou aquele?
E se o caminho, antes da divisão diante de ti, disser

 

       - Cesto,

       te deixa ficar onde estás, sem mais um passo, senta ali mesmo e fica re-tecendo o teu Cesto com tua mão de lã e palha, a Serena. E usa o teu Cesto para ficares só contigo fora da vida por fora em silêncio e calado, o Quietamente, desnascendo-te, sendo-te fora do ser-te, entendes.
       Mas se perguntares ao caminho, antes da divisão diante de ti, o caminho ainda Um só:

- O caminho será este ou aquele?
E o caminho, antes da divisão diante de ti, te disser

 

- Lança,
então aperfeiçoa a talhada com tua mão de luz e

lâmina, a Sangrenta
       e usa a tua Lança, e sai de ti, para penetrar mais fundo na vida fora de ti com muitos uivos, o Agitadamente, renascendo-te, sendo-te ainda mais fundo no ser-te,

entendes

 

Entendes?
Tu não podes sair, Orino,

      através desses desvios um para a esquerda e outro para a direita que sempre dividem o caminho diante de um homem que vai, o um em si, o Sozinho,

sem teu Cesto e a tua Lança,
ele, tecido com tua mão de lã e palha, a Serena,
ela, talhada com tua mão de luz e lâmina, a Sangrenta,
pois se saíres pela vida

       ah, esses desvios, uns abismos para os lados, no ar, sempre ao nosso redor, um à esquerda, o outro à direita de nós, esses que vão, os uns em si, sozinhos,

e o teu caminho se abrir,
se levas contigo o teu Cesto e a tua Lança,

       então te salvarás se usares o teu Cesto para ficares só contigo fora da vida por fora em silêncio e calado, o Quietamente, desnascendo-te, sendo-te fora do ser-te, entendes
       ou a tua Lança, para saíres de ti para penetrar mais fundo na vida fora de ti com muitos uivos, o Agitadamente, renascendo-te, sendo-te ainda mais fundo no ser-te,

entendes

 

 

Pois se a vida é um Rumor que se abre em rumos

o que fazer, indo na vida:

o Cesto ou a Lança?



E houve a noite em que Oniro teve a febre

Orino se afastaria de Oniro.

       Não se incendiasse ainda mais aquele corpo em chamas, se ele, Orino, cedesse à tentação de lançar nele a lenha humana do seu corpo

 

Se veria de longe aquelas chamas.
Oniro ardendo, iluminando a noite.
Oniro. Uma outra estrela aqui na terra, humana

Que o omem de areia olhava de perto, sem temer ser queimado por ela,

       como Orino. Sim, pois se Orino havia se afastado com medo de ter suas lenhas incendiadas,

 ele havia ficado ao lado de Oniro, o omem de areia

       e queria ao menos uma gota de água amarga em seus olhos para poder apagar aquele fogo.

Mas nos seus olhos, só lágrimas de areia



       E em sua febre Oniro, O ardente, já não falava para ninguém. Agora O ausente, naquelas chamas, era consigo mesmo que Oniro falaria. E se dizia:

- É essa a serpente em adiantado estado de vertigem: a vida

- A gente nasce antes de haver nascido, investigando o caminho, Oniro

- A coisa escura ensina mais que a coisa clara

- Tenho medo de não Ter mais medo de mim, Oniro

- O Um não interdita nada aos homens. Sabe, Oniro


       - A gente pensa que é sem fim, mas só o pensamento em nós de ser sem fim é que é sem fim
 


- O corpo, coitadinho, O coitadinho: um osso só, partível


       E dizendo isso, suas lágrimas compensassem agora os olhos vazios do omem de areia, caindo nas chamas aquelas lágrimas, mas se evaporando logo


Chorasse em vão pelo corpo, Oniro,
enquanto seu corpo um incêndio só, visto de longe



       - Confia na tua sombra, suspeita do teu corpo, essa sombra de carne, Oniro, se dizia

Esse sozinho corpo faz sombra de si só por Ter companhia

Se dizendo Oniro


E:

- Ao léu, toda essa Lenha, se queimando: o corpo, O incendiado de si


       - Oniro, se dissesse Oniro, agora ausente Orino, dê graças a dois: ao Um e ao Vários em nós, Lá, é bem longe

Onde? Aqui

 

 

Ainda se diria Oniro
- Primeiro, foi um ave de rapina.

       Depois, foram muitas aves de rapina pousadas em nosso cérebro querendo que nós fôssemos homens


Ainda se diria Oniro

Uma manhã nascendo. As chamas se apagando. Uma brisa, vindo, o curasse?

O dia, e as suas luzes, frias




 

VICENTE FRANZ CECIM é jornalista, escritor e cineasta, nascido em Belém do Pará, Amazônia. Em 1979, iniciou sua obra: o não-livro Viagem a Andara oO livro invisível. Segundo ele, revelado através dos livros visíveis de Andara que escreve. Sob esse título, foram publicados 7 livros de poemas em um único volume (iluminuras, 1988). Agraciado com o Grande Prêmio da Crítica da APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte, publicou o volume Silencioso como o Paraíso (iluminuras, 1994), reunindo mais 4 livros. Em 2001, lançou Ó Serdespanto (Íman Edições, Lisboa) com 2 novos livros de Andara, apontado pela crítica portuguesa como um dos melhores livros do ano. Já sua filmografia conta com 6 filmes, entre os quais se encontra Maráa Yaí Makuma – Aquele que dorme sem sono (2007). Clique aqui para assisti-lo. Os poemas acima são inéditos no Brasil.

 


 

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