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roberta calábria
anfitriãs mortas
O mais íntimo de nós que,
transcendendo-nos
força por sair,
sagrada despedida:
quando o íntimo nos
envolve
como o mais exercitado dos longes,
como o outro lado do
ar.
Puro, gigânteo, já não habitável.
– Rainer Maria
Rilke. A Música.
Falar das obras de Waltercio
Caldas é como falar do silêncio. Do silêncio... é aceitável? Se o silêncio
obriga-nos a admitir uma grande ausência, sua presença ocupa inteiramente
qualquer noção que se queira de espaço. De alguma forma, a maneira do
silêncio, de se apresentar por ausência, torna possível estar em silêncio
ao lado delas.
Silenciar. Falar de arte.
Ficar em silêncio. Não é simplesmente uma escolha. Eternizadas em seu
repouso, as obras de Caldas subtraem embates, ganhos ou perdas. O que se
oferece continuamente é a tarefa artística que recusa sobras, excessos,
barulhos; tornando o próprio silêncio a matéria que ele usa para compor as
obras. Nesse sentido, ao olharmos uma delas, nada se ouve, tudo se escuta.
Nossa capacidade sensível de ouvir é descartada e toda faculdade de escuta
é pressentida. Foi sempre silêncio, antes, agora, e sempre será.
Distância. Cada uma de suas obras tem uma marca distinta em silêncio, em
poética. Obras caladas, constituídas por diferentes angústias provenientes
do pressentimento da escuta.
Seria possível, então, admitir que a escrita que aqui se faz exige o
silêncio como companhia? Escrever sobre a obra do artista, portanto,
talvez seja a única maneira de desfazer a própria angústia que o
pressentimento da escuta parece requerer. Sendo o pressentimento da escuta
a antecipação de futuro que a compleição das obras instala, lembrar
antecipa o porvir da arte que elas reclamam como tal. As obras de Caldas
são acontecimento de memória, o que significa não ser meramente um aspecto
dela, mas exercício mnemônico da própria arte.
A quem as olha, as obras chegam nascidas adultas, acabadas, habitando
inicialmente a morada da lembrança do artista: arte; lembrança quase
atávica, memória que, enquanto histórica, traz em si toda a força de
coesão da arte; tarefa artística implementada pela existência da obra. É
este o gesto de Waltercio Caldas, seguir contrário ao caminho escolhido
pela maior parte dos artistas contemporâneos estes, envoltos pelo
ceticismo da artisticidade atuante, assumem a postura, por muitas vezes
inerme, de negar antecedentes. Isso significa dizer: Waltercio Caldas não
esquece. Lembrando assiduamente, enfrenta a história da arte, permitindo
que ela viva - o que nada é além de diálogo.
Lá, na memória, as obras habituam-se a existir, respondem-se, espalham-se,
resolvem-se. Sobem, então, às mãos; surgem: prontas. “Sua lembrança é
ampla e espaçosa, as impressões não se modificam nela; entretanto,
habituam-se à sua morada, e quando de lá sobem às mãos, é como se fossem
gestos naturais destas mãos” Surge a obra de Waltercio Caldas e, por cima
da evidência plástica, o que nos falta é ar, enquanto procuramos o porte
de invisíveis operários que parecem ter feito o trabalho de muitos homens.
Suspensão. Quase temor.
marca
Para além dos pré-requisitos
técnicos necessários à feitura delas, aqui se trata da certeza das obras,
do modo como se entregam imponentes e silenciosas. Independentes de nossa
presença, as obras continuam ali, olhando nossas costas quando vamos.
Soerguem-se diante de nós como exemplos de tempos eternos petrificados.
São, como diz Walter Benjamin, “marca no espaço”, rasura, ruptura, provas
vivas de toda a existência.
Existência essa que, no rastro de Benjamin, pode ser compreendida como
marca absoluta – sendo o absoluto o caráter de todas as marcas – que
transita em oposição ao signo. Ou seja: o signo é algo que se imprime,
enquanto a marca se levanta. Na medida em que o signo se encontra inscrito
sobre objetos inanimados, as marcas aparecem sobre o homem, distinguindo-o
com as fissuras ou manchas da terra. O espaço ativo na obra do artista é a
marca que se ergue. Marca que se define como uma lembrança da falta, não
no sentido de ausência, mas no de falha, fissura.
modo
Segundo Ronaldo Brito, “há um
dispositivo Waltercio Caldas” – dispositivo que se definiria a partir de
um modo específico de operar plasticamente. Dispositivo Waltercio Caldas,
não dispositivo de Waltercio Caldas ou em Waltercio Caldas.
Algo além do artista, que seria ele mesmo, diretamente, e ausente de sua
pessoa, acompanhado por algo que só poderia ser a história da arte.
Seriam, então, todas as obras a mesma? Não. O artista Waltercio Caldas
seria específico em seu modo Waltercio Caldas de ser arte; e assim seria
por tantas e tantas vezes, todas que fossem necessárias para, por
repetição, alcançar a perda completa da noção básica de reconhecimento da
linguagem plástica: ser obra. Assim o dispositivo existe, tangenciando a
história da arte e sua crítica, a partir da questão que procura descobrir
o que faz de uma obra de arte ser obra de arte.
Enquanto aquele que assina as obras, o artista é reflexo perfeito (uma
contradição em termos) de sua vontade: dispositivo. Ser específico em seu
modo trás à superfície a querela moderna sobre identidade, autoria, sobre
os limites da assinatura intelectual. Elevar um modo de operação ao
estatuto de silêncio poderia ser compreendido, por pura apropriação, pelo
sentido dado por Hölderlin ao lirismo quando o define como “metáfora
contínua de um sentimento”. Podemos pensar, portanto, como, a partir do
trabalho de Waltercio Caldas, a questão do lirismo na arte se acorda com a
contínua revelação de identidades artísticas ausentes.
Despersonalizar-se plenamente – para Fernando Pessoa -, é o ato
fundamental que permite a existência no mais elevado grau de lirismo.
Nesse grau, o artista sente e vive estados de alma que não lhe pertencem
diretamente, sendo sentidos imaginativamente, logo, vividos; ou melhor:
sentidos inteligentemente – sentir a inteligência, na inteligência e com a
inteligência, instintivamente. O fator principal para a compreensão do ato
se dá na definição da unidade do homem pelo que há de intelectual em seu
estilo. “O estilo é lírico quando a intuição intelectual é mais subjetiva
e a separação surge, predominantemente, das partes concêntricas, como na
Antígona”.
Segundo Hölderlin, a poesia ressona. Ou seja: é garantida pela condição
musical da sonoridade – ritmo. Poderíamos compreender como partes
concêntricas o princípio e o fim das obras de arte Waltercio Caldas. A
possibilidade de entender as obras como líricas se dá na concentricidade
das respostas dos dois instantes, que explicitam a condição anti-rítmica
da continuidade literária (musical) de sua arte. Melhor: início e fim se
libertam da cronologia para tornarem-se meros planos de fundo para o drama
histórico da arte, como se fossem sempre novas leituras dos
acontecimentos, possibilidades de que novos caminhos surjam nas escolhas
elaboradas por cada artista. Se em Antígona o que busca prevalecer
é o direito indestrutível de se enterrar os mortos, para Waltercio o
artista contemporâneo procura dar lugar específico – subterrâneo – à arte
do passado, como expressão de sua própria subjetividade. Constrói
catedrais.
O dispositivo Waltercio Caldas nos permite, por aproximação, compreender a
questão do ser lírico. Intelectualizando um sentimento que não lhe cabe, o
artista unifica-se com o dispositivo Waltercio Caldas,
despersonalizando-se de si mesmo, produzindo uma unidade artística
reconhecida apenas pelo intelecto; sendo deliberadamente anônimo, ou em
suas próprias palavras: “algumas obras de arte apresentam uma espécie de
‘desautoria’ estratégica”.
O que permanece, portanto, não é o “autor” da obra de arte, e sim a obra
no seu absoluto arte - se somos capazes de receber claramente a idéia da
desautoria, esta, vivendo melhor sem seu correspondente humano,
despedindo-se dele no momento mesmo de sua chegada, dá ao artista, talvez,
a recompensa de uma sobrevida. Se Waltercio Caldas não tem mais o direito
de ser o Waltercio Caldas, passa a ser, na complexa porosidade do mundo
criado pela obra de arte, Waltercio Caldas. Não há, por conseguinte,
contração de nenhum artigo com qualquer preposição que o defina. Sua vida
está, agora, como história da arte, como um conjunto de obras, de suas
obras, das obras Waltercio Caldas. O dispositivo torna-se uma espécie de
dramaturgo da própria história da arte.
evento
Joseph Beuys nos fala que
“qualquer coisa é criada a partir do nada (néant). Isso conduz o
homem a pensar, e esse pensamento é um evento plástico”. É preciso
considerar, entretanto, que o nada, aqui, toma o lugar do contrário do
ser, seguindo os passos de Jean Paul Sartre. Ou seja: a “coisa” é criada a
partir do que não é ser. É criada, porém, por alguém – pelo artista
despossuído de cordata subjetividade como nos apresenta Ronaldo Brito.
Invertemos, por conseguinte, o enunciado cartesiano: Existo, logo, penso.
A existência do artista-dispositivo antecede o pensamento e, este, se
materializa, se organiza, dando forma ao que já era – obra de arte.
A extrema concentração em si mesmo se dá no artista, a mesma concentração
do tudo do mundo da arte se dá na obra, e o que passa a ser, pela
plenitude de seu preenchimento, é arte. Todo o ser do artista se distancia
do sujeito individual que, em contato com o exterior, torna-se o limiar
entre o Eu e o Tu, o instante fugaz de silêncio e vazio entre a inspiração
e a expiração estética. Quem sou, porém, Eu-Tu? Quem és, porém, Tu-Eu?
ar
Por mais intenso que seja o
movimento de uma escultura, este sempre terá que retornar à obra; venha
ele de distâncias infinitas ou das profundezas do céu, o grande círculo
precisa fechar-se, necessariamente, o círculo de solidão no qual reside
uma obra de arte (RILKE).
Waltercio Caldas, em entrevista concedida à ocasião de sua exposição da
galeria Artur Fidalgo, ao ser questionado sobre futuros trabalhos,
responde: “mas o poeta Rilke me vem sempre à lembrança quando considera a
hipótese de haver um outro lado do ar”. Sim, para Rilke “a música é o
outro lado do ar”. O ar, ativo, capaz de carregar o som – do silêncio? –
preenche a escultura, tornando-a também movimento. O ar que preenche a
escultura é como o inverso de um anteparo, uma “impossibilidade ótica”
que, devolvendo o olhar aos olhos, prepara-o para assumir a envergadura de
uma peça construída artisticamente, mesmo nos tornando completamente
olhos. Construtora, melhor dizendo, “elemento ativo”.
As obras Waltercio Caldas são gestos de dizer sim ao mundo dizendo sim,
numa atitude total de acolhimento do Outro. Relação que engloba o Eu e o
Outro, tudo aquilo que nos pertence e o que nos é alheio; se nos é
possível admitir alheamento quando falamos e ouvimos arte.
casa
Existem esculturas que
trazem dentro de si, que absorvem e irradiam o ambiente em que foram
concebidas ou do qual são extraídas. O espaço no qual se encontra uma
estátua constitui para ela solo estrangeiro – seu ambiente encontra-se
dentro dela, seus olhos e a expressão do seu rosto se referem a esse
ambiente recôndito, oculto em sua figura. (RILKE).
A obra de arte é sempre radicalmente Outro. Façamos um acolhimento,
exibindo contraste literário entre autor e leitor, ambos passíveis de
configurar um eu, e perguntemos à porta de casa: qual é a relação entre o
autor e o que ele produz? Se entendermos o autor como criador, vemos que
esse termo, essa idéia, obtém rigoroso sentido no dispositivo Waltercio
Caldas, na razão direta de que a palavra artista se encontrar descrita por
sua familiaridade significativa à noção de artesão. Caldas é, de forma
quase que transparente, arquiteto; escreve espaços. Mas ainda resta: quem
é o Eu e quem é o Tu? Quanto há de humanidade no Eu do autor?
Gadamer, em Quem sou eu, quem és tu?, no qual trata da hermenêutica
nos poemas de Paul Celan, ao falar do eu lírico conclui que “este eu não é
unicamente o poeta mas é antes, em termos kierkegaardianos, ‘aquele
indivíduo’ que somos cada um de nós”. “Je est un autre”, nos fala
Rimbaud. Quando tratamos do autor Waltercio Caldas, “aquele indivíduo” é
justamente quem produz, alguém que independe do sujeito enquanto sujeito.
A obra de arte que resulta desse esforço do indivíduo não é puramente
arte, pois depende da relação do indivíduo com ele mesmo. “Aquele
indivíduo” é o dispositivo do qual fala Ronaldo Brito.
adeus
Nós existimos no mundo. A obra
existe no mundo. Acontece, porém, que o mundo da obra de arte, a
princípio, não nos pertence. Ao criar seu próprio espaço, transtornando o
lugar na qual é inserida, a obra de arte se transporta para um “outro”
mundo, o mundo do “círculo sagrado” da solidão. Nesse sentido, ao olharmos
a obra de arte Waltercio Caldas, estamos diante do penhasco. O passo
adiante é a única coisa que é nossa, ou melhor, decidir dar o passo é a
única saída, a passagem que nos leva a dizer sim à arte.
solidão
Elas nos dão adeus. E assim, a
solidão. De algum jeito, as obras Caldas chegam como mortas, no sentido,
já apreendido, de estarem acabadas, de não carecerem de nada além de si
mesmas, de suas próprias histórias que trajam o que as levou a serem o que
são. Logo, obrigam-se a ditar a vida novamente.
Se a morte está para nós como lei rígida da própria natureza, esta já não
é algo que se interponha entre a obra de arte e seu ser no mundo, o que
declara que, antevendo um possível confronto, a obra Caldas mantém-se
suspensa em vida. Contradição inexeqüível para nós, mas não para a arte.
O abstrato Ser em sua
abstrata idéia
Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna.
Eu e o Mistério — face a face...
(Fernando Pessoa)
Mistério esse, obra de arte,
Waltercio Caldas. Mistério esse, a obrigação do silêncio.
Catedral.
ROBERTA CALÁBRIA,
contista e ensaísta, cursou História da arte na Universidade Estadual do
Rio de Janeiro (UERJ). O texto aqui publicado pela primeira vez faz parte
de um estudo maior sobre a obra do artista plástico Waltercio Caldas e
será em breve publicado, a convite dele, no livro "Ao ar livre". Esse
trabalho também consta do novo catálogo de obras do artista, que será
lançado ainda este ano em São Thiago de Compostela.
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