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lima trindade
eu, james gandolfini
(ou jukebox)
Eu era o James Gandolfini naquele filme em que ele contracena com a Julia
Roberts. A noite estava quente e seca como o diabo e eu entrei no Caneca
de Prata louco por um chope cremoso. Antes mesmo de começar a beber, já
sentia o chope escorrendo pela garganta, molhando meu cavanhaque espesso e
ruivo, quase castanho. Os lábios, molhados da espuma cremosa do chope, não
para me sentir desejável ou sexy ou quente como aquela noite de outono.
Muito mais, eu pensei, eu penso, agora aqui sentado no balcão, muito mais
que não chovia há um bom tempo e eu não costumava avançar pelas ruas com
uma garrafa de conhaque debaixo do braço, oprimido pelo intuito imperioso
de encontrar alguém que me amasse como eu era – grande, gordo e calvo;
olhos bovinos, mas, no entanto, dentes brancos e perfeitos – porque eu me
cuidava de verdade, gostava de mim, gostava tanto que me mimava às vezes e
ouvia Charles Mingus e lia Caio com a paixão de quem faz tudo isso sem
comer morangos mofados. Se a gente deixa o mofo crescer e se espalhar pelo
pulmões, eles fazem um puta estrago dentro da gente. Todavia, ainda que,
pense comigo se não tenho razão, ler Caio – eu quase vejo ele em minha
frente: magro, alto, olhos bovinos, calvo e a pele esverdeada –, assim
como ler Hilda ou Trevisan – eu quase o enxergo também: os cabelos lisos,
espetados, os ossos da face, o sorriso e o olhar maroto – ou, me desculpe
se excedo, contudo, saiba, é absolutamente necessário que eu escreva, ou
ter conosco Lygia e os contos de Lygia, pense e admita, isso é a mesma
coisa que na solidão nunca estar sozinho. São quatro anjos pousados sobre
nossos ombros. E a gente pode chorar junto de felicidade, a alma saciada e
o corpo pedindo mais. O corpo gritando que a gente vá para a rua e entre
num bar como esse, onde a luz é parcial e se pode sentar bem de junto ao
balcão, mesmo sendo você o James Gandolfini ou alguém parecido com este
homem ao meu lado, baixinho, barba grisalha, pele morena e igualmente
gordo como eu. Contudo, repare, reparo, parecemos mais fortes do que
gordos, pois nossas carnes são duras, rijas e imponentes. Sim, é verdade.
Eu e o baixinho ao meu lado. Parecidos com esses aí das mesas ou aqueles
lá adiante, a conversar. Ou com o grupo de amigos em pé e do lado de fora.
Cães – melhor diria, ursos? – zelosos, protegendo a fachada do bar. Todos
eles lembram um pai perdido, um pai que, por um desentendimento qualquer,
juntou as tralhas e ganhou o mundo. Não caio nessa. Essa é apenas a
leitura mais fácil. A lógica pão-pão-queijo-queijo. Tão simples quanto
enganadora. O baixinho ao meu lado possui um olhar tristíssimo, apesar do
sorriso meigo e os gestos seguros ao levar a caneca de bebida à boca,
molhando a barba de espuma. Ele não parece meu pai. Quero dizer, todos se
parecem pais quando são ternos e acolhedores. Que se foda Freud e seus
complexos. Quando a gente quer trepar, ao contrário do que segredou minha
psicanalista (sim, eu faço análise), a última coisa que lembramos, lembro,
é dos pais. Eles nem passam pela nossa cabeça. Se passassem, brocharíamos.
Então, se acontece o lance da paixão, pouco me importa querer explicar
qualquer merda dessas. Sou eu e ele. Dois caras. Homens. Se amando. E o
baixinho é bem bonito. Há um quê árabe nele. Contei que amo os homens
árabes? Não? Não importa. Importa. Suas sobrancelhas são grossas e os
olhos amendoados. Ele me olha timidamente e enviesado, não diretamente,
estamos lado a lado. O baixinho me vê por meu reflexo. Olha minha imagem
no espelho em frente. Espelho que se faz de parede e abriga prateleiras
com inúmeras garrafas de uísque, vodca, martini. Espelho-parede que
reflete a procura, minha, dele e dos demais. Entre garrafas o vejo, bonito
como ele só. O garçom traz outra caneca de chope. Devo ter bebido quantos,
meu Deus? Sete? Oito? É hora de acender um cigarro. Estamos imóveis os
dois. Não respiramos. Lado a lado. Três jovens conversam numa mesa ao
centro. Falam de desemprego, crise econômica, corrupção política,
desespero. São minoria no bar. Nas demais mesas do salão reinam,
absolutos, os coroas. Ou maduros, se preferir. Os jovens são minoria, mas
se sentem à vontade. Um deles se levanta, deposita uma ficha na máquina
colorida do fundo do bar. Escolhe um tango antigo. Começa a dançar. Não é
Gardel. Nem Piazzola. Ele dança com um parceiro imaginário, os braços
envolvendo o próprio corpo esguio. O incrível neste bar é justamente isso,
nele você pode ser e querer o diferente. Dá-se ao luxo até de ser
melancólico numa noite seca de outono. E romântico. Em uma mesa perto da
entrada, um homem de bigodes bastos segura a mão de um senhor negro,
vestido de jeans e camisa de algodão branca. Fumo meu cigarro. Sou James
Gandolfini e posso me transformar em Jack Radclif de um instante para o
outro se desejar. Eu, James e Jack. Jack é um homem quase perfeito na
opinião de vários conhecidos meus. A salvação, para mim, é o quase. Não
gosto de perfeições. Nada mais pobre no mundo quanto algo perfeitinho
guardado numa caixinha de cristal para todos apreciarem e serem alertados
que não é permitido tocar, avançar a linha amarela ou fotografar. Pff! É
como a vida sem a loucura, a música sem a dissonância, a memória sem seus
vazios. De qualquer modo, viro-me em direção ao homem árabe. Ele pode se
chamar Kalil, Lázaro ou Marcelo. Viro-me. Viro minha cabeça e corpo,
esbarrando levemente o joelho em sua cintura, projetando minha vista para
além dele, para fora do Caneca de Prata. Estou suando. Permaneço nesta
posição alguns segundos, esperando. Ele não se move, o rosto voltado para
o maldito espelho que reflete outro espelho na parede atrás de nós.
Esquadrinha-me. Ri de mim. Posso jurar mesmo sem ver. Finjo esperar
alguém, encaro o relógio e volto para posição anterior, a cara enfiada no
balcão, sonhando com a morte. Fim do tango. Silêncio. Suspense. Uma nova
música se inicia. Ele se volta para mim. Toca One, do U2. Eu o
espio pelo espelho-parede, desenho fragmentado entre rótulos e vidros
coloridos de bebidas. É o momento de falar “oi, eu me chamo James
Gandolfini”. Reconheço a voz de Bono e balanço a cabeça no ritmo do som.
Ele espera um sinal, uma palavra, um gesto meu. Está de frente pra mim.
Esperando. Eu despenco. Adio. Faço-me prisioneiro. O pior: capaz de
perceber toda a doçura existente neste homem, sentir seu perfume misturado
ao sabor tenro de um bom charuto. Escurece dentro de mim. Estamos eu e o
árabe juntos. Recordo a cena de um filme, uma página lida em solidão.
Milhões de livros despencam de dentro da minha cabeça. Um passeio de
carruagem. O veneno e a palidez de um jovem casal. Vivo neles e eles em
mim. Lanço meu apelo, meu pedido de socorro, cego sobre os arranha-céus. E
não adiantam as telenovelas nos horários nobres, meu coração machucado
navega numa caneca gelada de chope. Se eu falasse, talvez seguíssemos por
um caminho conhecido, seguro. Nós brindaríamos sorridentes na madrugada.
Nossas palavras se emendariam e se complementariam, completando-nos.
Quando estivéssemos bem bêbados, pagaríamos a conta, acenaríamos para a
pequena imitação do David de Michelangelo na estante e avançaríamos São
Paulo adentro no meu velho carro prateado. Eu mostraria a ele minha casa,
as fotos premiadas numa exposição, minha banheira. E, antes do amor, eu
secaria suas costas com toalhas felpudas, exibindo toda a minha calma e
tranqüilidade. Depois, diria ao meu homem árabe que foi tudo muito mais do
que uma boa foda. Ele juraria um amor misturado a choro e bebedeira. Eu
acreditaria. Eu quero acreditar. Dividiríamos nossas horas entre filmes em
preto e branco e beijos intermináveis. Seria este o cenário. O amor,
novamente um clichê. Transformaríamos nossas vida num roteiro ruim. E
então, quando não sobrasse insignificância que não fosse conhecida, o
celular dele tocaria baixinho, quase sem alarde, sorrateiro. E de seu
ruído morno, o convite para a despedida. Eu não sou daqui, ele me dirá...
Eu não tenho amor... Sou da Bahia... De São Salvador. O telefone e um
chamado urgente. Eu mudo, diante do fim. Estarei no aeroporto e não terei
coragem de estender meus braços. Ele não olhará para trás, para encarar a
fúria e o desespero do meu corpo. E eu não estarei mais lá. Eu, um pobre
James Gandolfini abandonado. Ele, meu homem árabe. Ou, imagine, imaginem,
nada tanto assim. Talvez apenas eu e ele parados dentro desta noite quente
como o diabo, outonais. Estaremos no Caneca de Prata e o calor agitará o
ar até que espessas nuvens se formem, o vento irrompa sem aviso e grossas
gotas de chuva despenquem com virulência, alagando as saídas do metrô,
levando as árvores da praça e inundando nosso bar com a maior tempestade
de amor que existiu no mundo. É a mesma tempestade que me fez, me faz,
aqui, no Caneca do Prata, chamar o garçom e pagar a conta, deixando-o ali,
sentado no balcão. Tão distante e inalcançável como é belo o azul.
LIMA TRINDADE é autor de Supermercado da Solidão (Novela, LGE,
Brasília, 2005), Todo Sol mais o Espírito Santo (Contos, Ateliê Editorial,
São Paulo, 2005) e Corações Blues e Serpentinas (Contos, Arte PauBrasil,
2007).
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