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aderaldo luciano
quadrinhos, islã e guerra
Afirma Emannuel Todd na introdução do seu livro “Depois do Império — a
decomposição do sistema americano”:
O atentado de 11 de setembro fascinou os psiquiatras: a revelação de
uma fragilidade da América de certa forma desestabilizou em muitas partes
não apenas os adultos, mas também seus filhos. Uma verdadeira crise
psíquica desnudara então a arquitetura mental do planeta, da qual a
América, única mas legítima superpotência, constituía uma espécie de
cúpula inconsciente.
Ao arrolar os psiquiatras na seara dos atentados às Torres, Todd quis,
talvez, pensar o mundo a partir das imagens, dos símbolos e dos ícones. A
crise psíquica a que se refere tem longa história, longo olhar, longo
abraço. O 11 de setembro trouxe-nos da mesma forma um espectro há muito
celebrado, bem como há muito combatido. Arrancou de algum lugar a história
dentro da qual 4 mil judeus, trabalhadores nas duas Torres, não
compareceram aos seus postos naquele fatídico dia. O boato espalhou-se
como as imagens do atentado tomaram a mídia. Ao fundo, em off, a narração
dos locutores televisivos buscava nelas, as imagens, o substrato icônico
para a tragédia que a língua somente não conseguiria descrever, enquanto
nas ruas de New York, nas esquinas, o boato sobre os judeus alavancava
adeptos e ressuscitava “Os Protocolos dos Sábios de Sião”. Marc Levin,
seduzido pelos acontecimentos, começa assim a rodar o seu documentário “Os
Protocolos de Sião”. Mas é Will Eisner quem se aventura por mais tempo
nesse vasto e tormentoso oceano. Depois de 20 anos de pesquisa e trabalho
exaustivo publica em 2005, com introdução de Umberto Eco e posfácio de
Stephen Eric Bronner, “O complô — a história secreta dos Protocolos dos
Sábios de Sião”. Certamente muitos aqui já ouviram falar ou leram a
respeito. Nas palavras do próprio Eisner: “um documento supostamente
escrito por líderes judeus que descreve em detalhes como eles conspiraram
para conquistar o mundo...” Acrescenta:
Ao longo dos anos, centenas de livros e competentes ensaios acadêmicos
expuseram a infâmia dos Protocolos. Esses estudos, no entanto, foram
escritos em sua maioria por acadêmicos e feitos para ser lidos por
pesquisadores ou pessoas já convencidas da sua fraudulência.
O trabalho de Eisner, assim, é narrar a arqueologia dos Protocolos naquilo
que ele denomina de Arte Sequencial, os quadrinhos. Se os atentados à
América fascinaram os psiquiatras, os quadrinhos desesperaram educadores.
A genealogia dos quadrinhos e seus super-heróis é pródiga em catástrofes,
vilões e improbabilidades. E justo por isso, fascinante.
Confessamo-vos não ter esperado a ação do Super-Homem no combate aos
ativistas islâmicos sectários. Nem imaginá-lo sendo presidente da América,
pois ao que nos parece, a CIA, o FBI e os mariners a si se bastam na
guarda do mundo. Ou não? No número 110, de 1991, da antiga revista
Super-Homem publicada mensalmente pela Editora Abril Jovem o super-herói é
eleito presidente dos EUA e como tal passa a negociar diplomaticamente com
nações, regimes e governantes. Está lá:
O cargo de presidente dos Estados Unidos é a posição mais poderosa do
mundo... o que pode acontecer quando esse presidente é também o homem
fisicamente mais forte do mundo? O Super-Homem já era respeitado por todas
as nações... mas agora este respeito está acompanhado de uma certa dose de
medo. Medo de lidar com um homem que pode, de repente, aparecer em sua
porta... e citar as escrituras em sua própria língua.
Ou seja, o mundo ficcional dos quadrinhos é irrigado pela realidade. Ao
abdicar da força física e, como presidente, embrenhar-se pela diplomacia,
o Super-Homem, mesmo com a citação de países imaginários, rege-se pelo
viés realista, distanciando-se do milagre de sua força sobrenatural e de
sua origem interplanetária. Deixa de ser mero entretenimento e reveste-se
de entendimento e atuação política, assim como o Capitão América, criado
como propaganda de estado, e protagonista da Segunda Guerra, quando fica
frente-a-frente com Hitler, em seu número de estréia.
O caso do Novo Incrível Hulk é outro exemplo dessa tendência. Na revista
que leva o seu nome, os números 148 e 149 de 1992, levam-no para a Guerra
do Golfo, liderando uma milícia libertadora. O país é assim apresentado na
introdução da história:
Este é Trans-Sabal, um país civilizado. Poetas e profetas nasceram
entre seu povo e mudaram o caminho da humanidade. Há alguns anos, contudo,
Trans-Sabal tem sofrido dificuldades. Poucos são felizes e muitos passam
fome. Os muitos se insurgiram e os poucos reagiram. Barreiras foram
feitas... e desfeitas.
Queremos acreditar que os dois países citados, o primeiro no caso do
Super-Homem, cujo chefe de estado pode ser surpreendido a escutar as
escrituras em sua “própria língua”, e este segundo chamado Trans-Sabal, se
confundem com países islâmicos. A “moda islâmica” inicia-se nos anos 90 e
atinge seu ápice nos nossos dias. A literatura e o cinema são seus
principais veículos. A enxurrada de livros, best-sellers, sobre o Islã
inundam as prateleiras das livrarias do mundo. Não os citaremos.
Estaríamos na redundância. Basta observar a lista dos dez mais vendidos de
qualquer meio de comunicação de massa.
Os passos dos super-heróis rumo ao realismo encontram elementos mais
distintos. Na própria América nos deparamos com dois autores clássicos:
Harvey Pekar e Robert Crumb, os anti-heróis americanos. Com roteiros que
privilegiam o cotidiano das ruas de Cleveland e seus próprios dissabores,
Pekar lança a revista American Splendor e transforma-se em paradigma dos
quadrinhos realistas. Ao encontrar Crumb, o desenhista contracultor maior,
acontece uma revolução nessa arte. Mas Bob e Harvey cuidam das pequenas
coisas, dos entreveros menores, do corriqueiro.
Enquanto a DC Comics e a Marvel se engalfinham pela produção em série de
super-heróis fantasiados, os dois apertam o traço sobre o cidadão comum e
seqüenciam em quadros a fotografia dos corredores de repartições públicas
e avenidas mal iluminadas povoadas por gente neurótica ou desvalida. Na
década de 90, com a febre islâmica, surge Joe Sacco com seu
realismo-jornalístico, cobrindo conflitos étnicos ao redor do mundo.
Publica em 1994 “Palestina — Uma nação ocupada” e depois “Palestina — Na
Faixa de Gaza”, aparecidos no Brasil em 1999. O conflito árabe-israelense,
como apontam os títulos são os objetivos das reportagens em graphic novel.
continua
ADERALDO LUCIANO é
paraibano, nascido em Areia, poeta e sushiman.
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