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victor paes
a morte de Yukio Mishima
Do outro lado da
calçada, florida com libélulas-morredeiras, na rua de Kimitake pequeno,
andava um moleque por socos e saltos, que aplicava, com uma falsa
precisão, em todas as crianças da rua. Durante um tempo, Kimitake
acreditou que talvez o garoto na verdade tentasse dançar, coisa de
criança. Começou a assisti-lo em busca de traços de ensaio. Quando
comprovou que tudo era improvisado, escreveu em um dos bilhetes que
enviava para a mãe: “... no entanto, se ensaiasse, lutaria com mais
liberdade.”
O corpo devia crescer para fora, tudo atado contra hemorragias, tosses e
lamentações.
Agora, perante os honrados membros desta base, pergunto: quantos de vocês
sabem que estão de braços atados? Quantos de vocês têm consciência da
maldição que se torna essa insubordinação a uma força maior e protetora?
De que valem seus corpos, se não forem tratados e expostos em toda a sua
força de serem vistos?
O corpo do pequeno Kimitake havia crescido pouco. Para sempre ao alcance
das mãos do pai. Então, chamar-se Mishima. Mishima cresce.
Um dia, teve a idéia de uma série de fotos de homens morrendo. O momento
exato em que passam efetivamente, e agora para sempre, a serem os
protagonistas de sua própria vida. Ali do outro lado, em um palco
construído à beira da margem distante.
“O tenente sempre ficava bem de uniforme, mas agora, contemplando a morte
com o rosto severo e os lábios cerrados com firmeza, era a personificação
do que a beleza masculina tinha de mais soberbo.
– Está na hora de partir – disse o tenente, afinal.”
Escrever não é compartilhar suor? Para quase todos os autores, não. E isso
é seu erro. É no corpo que tudo se dá. As idéias se dão no corpo e
responde-se a elas com o corpo. O menor gesto é feito com todo o corpo.
Todo gozo é o maior gozo que o corpo já teve e é resultado do suor, da
violência que prova que ele está ali. Tudo é treino. Apenas a morte não
pode ser representada mais de uma vez.
Quantos de vocês ouviram que não tinham corpo suficiente para lutar e
precisaram montar seu próprio exército? Isso eu jamais direi a vocês que
ouvi. Pois temos o corpo que queremos e decidimos como e até quando.
Decidimos para que até nosso senhor aprenda a decidir. O seu senhor. Para
que saiba dizer quando devemos deixar que ele decida por nós.
“O mundo está cheio de faltas de engrenagens. Não sei da sua máquina, mas
para mim, pelo menos no que se refere a este globo, a única coisa que o
mantém girando suavemente é essa falta, aqui e ali, de uma engrenagem.”
A mão toca a delicadeza da atadura envolvida na espada. A língua prova a
textura acre-doce da lâmina. Dentro do estômago, algo se move, quente,
frio, às vezes sólido. Na respiração, uma acidez velada. Os ombros já
queixosos. Nem pernas, nem ouvidos, somente a lâmina.
Quantos santos imitam deuses? Quantos chegam à perfeição dos olhos de um
deus? Os santos só são santos quando pintados. Em suas vidas, vivem como
os deuses, assim, como quem tem um corpo. São Sebastião, por exemplo,
morreu no melhor sentido do esculturado, só não lhe sendo possível o
absurdo de atirar flechas em si mesmo (coisa que talvez nunca lhe tenha
ocorrido). São Sebastião foi um homem para ser homem. Na verdade, meu
primeiro homem.
Minha esposa não assistirá a meu ritual.
Tenho plantas nascendo em minhas costas, pois sou sangue de sangue e tempo
do mar, morte por sol e sol de sangrar.
Caos sobre a cabeça quando a espada atravessa o ventre esquerdo e, entre
intestino, gordura e rim, crava um ponto da parte interna de um músculo
das costas. Sua coragem só alcançou mais coragem. E medo. A idéia de um
verbo que não soubesse conjugar, em japonês, em inglês, ou qualquer
língua, pareceu-lhe interessante, mas percebeu-a ocidental demais, além de
desviá-lo da dor.
Tenho a impressão de ter ouvido um apito de fábrica. “O som da produção –
é como chamam nossos industriais. Pobres tolos, por mais que vivam, jamais
compreenderão que um artigo só adquire valor à medida que se torna velho,
obsoleto e inútil. Fabricam aquelas coisas baratas com maior rapidez e
depois de uma vida inteira, perseguidos pela pobreza, morrem e tudo fica
nisso.” Palavras de um vendedor de antigüidades.
“Pareceu-lhe incrível que, em meio àquela terrível agonia, as coisas que
podiam ser vistas ainda fossem vistas, as coisas existentes ainda
existissem.”
O olhar de um rosto que não vai mais envelhecer não está só em uma cabeça
cortada. Com essa atenção, Mishima desliza a espada do ventre esquerdo ao
direito, com apenas um rosto, contendo um turbilhão de outros cinqüenta.
Uma parte de seu intestino cai-lhe sobre o colo.
Natsu, sua avó, neta ilegítima do mestre Matsudaira Yoritaka, acolhida
pela casa do príncipe Arisugawa Taruhito, ensinou-lhe que um nome fere
mais que a luz do sol. Não vai brincar no sol, vai brincar de bonecas com
suas primas. Bonecas não significam mais que bonecas. Bonecas não são
princesas enfeitiçadas que retiram toda a masculinidade dos moleques para
tentarem reviver. Como uma personagem não retira nada do autor. Mesmo
quando são o mesmo. No máximo, um nome. A ferida mortal de todo agir.
Riam, compatriotas, podem rir mesmo, por minha grandiosa saudação ao
Imperador, por minha sugestão imensa de restituir-lhe o poder, por meu
poema de morte que recitei e que vocês nem bem entenderam... podem rir.
Riam, principalmente por jamais imaginarem que eu sempre soube que ririam.
Um cheiro amargo no ar. Mishima expele um incontrolável ar rouco, que
tenta, com uma torção de cintura, não deixar parecer um gemido. Seu fiel
discípulo, então, para ajudá-lo, corta-lhe a cabeça.
VICTOR PAES é
escritor, editor, ator e professor. Publicou, em 2007, seu primeiro livro,
O óbvio dos sábios. Tem seus trabalhos em diversos sites de
literatura. Escreve também para teatro e sua peça Mara em um quarto
estará em cartaz durante o ano de 2008. No momento, prepara seu primeiro
livro de contos. Sua página na internet:
www.victorpaes.blogspot.com
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