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a via excêntrica | ronaldo ferrito
II
Para mais entender o
que se nos dá como passo e seu marco, é preciso acatar o que, na passagem
de cada destino, se nos diz comoção. Tal empenho, sempre único e porquanto
solitário, é a marcha que delimita e declina - da abrangência celeste dos
elementos - a determinação telúrica do caminho sagrado, ou seja, suas
múltiplas figurações. Sua tarefa essencial nos faculta dispor ainda de um
outro sentido, do espírito e do corpo, que reúne tanto a escuta quanto a
convocação do que há de aparecer (e somente o caminho pode aparecer) ou -
de um modo mais próprio - figurar como parte de nós, por ser de nossa
própria figura, naquilo que se encerra sob a égide e nome da
excentricidade. Enquanto espírito, nos deixa na unidade de seu centro e,
já corporificada na concreção do passo, enseja a descentralização
realizadora de um outro. Aí, na permanência unitária de nosso deixar
destinar, está também o campo latente das constantes conversões. A
comoção, palavra que guarda, além da cumplicidade, a regência de um
mover-se ao mesmo tempo nosso e alheio (a moção), é - no empenho do
caminho - a solicitude que sentimos ao retirar o calcanhar da terra para
flutuar, a partir da mesma, na área de latência das possíveis
determinações do que ainda não se fez, mas que nos apela à concreção de
seu cumprimento figurador: a sua Realização.
Essa força excêntrica, na propensão natural de sua origem biunívoca,
nomeia não só a correspondência ética a um apelo de realização (o ato
inalienável daquele que deve cumprir-se pelo acatamento), como a uma
ausência prefiguradora - posto que já imperiosa - da presença daquilo que se
há de realizar. Nessa encruzilhada do próprio real, onde o ato e a
ausência se encontram e se celebram como unidade totalizante do que é e do
porvir, se desfaz a condição inautêntica da separação para se refazer o
mistério das realizações. Vemos, desse modo, que realizador e realizado
são de um mesmo, pois aquele é também o realizado e este o que realiza,
embora de nenhum seja a realização. Esse mistério, sumariamente
participação, e por isso litúrgico, não se alude à satisfação de uma
vontade e de um poder conhecer - embora tudo nele seja essencialmente
satisfeito -, senão a um doar-se às coisas que deve e se abre à
necessidade de uma lembrança (admonitio) nossa e desde sempre
esquecida no outro. A prática da admoestação, olvidada nos oráculos e
necessidade perene do seguimento, permanece presente agora enquanto dito
realizado da linguagem. Desta maneira, aquilo que se obra na realização, a
obra da linguagem, nos faz pensar e lembrar (admoneo) de nosso
próprio destino, que é também ser outro que não nos seja. Admoestação,
reversamente a um conselho de adequação da vida a uma vontade e a um
conhecimento, quer dizer o lembrar-se daquilo que, no que somos, ainda não
dominamos, nem podemos abranger. Sendo esse desempenho atinente ao
realizador e ao realizado, chega-se a redescoberta do que obcecadamente se
negou até agora na trajetória atual do ocidente metafísico em prol de sua
afirmação do sujeito: que a obra não se concorda (adaequatio), mas
admoesta ao destino. Na via, esse já se encontra imerso no esquecimento
que define o ser outro e, portanto, já não se pode esquecê-lo.
Partirei de algo que há muito desconcerta o espaço coeso do ocidente
racional em sua linearidade de homogêneo que a tudo acredita abarcar pelo
atributo da extensão. Falo de um lapso nessa materialidade já há muito
firmada (res extensa), ou de um lugar que não se pode mensurar,
senão com a abertura de um nome capaz de dizê-lo sem a circunscrição de
seus limites. A esse sinal de revelação do sagrado chamamos, para que em
sua palavra reconheçamos sua origem e preternatureza, de caminho de
Compostela. Temos que, pelo mapeamento das linhas de trânsito que nos
levam a esse nome, não é possível avançar até ele, pois as cercanias que o
colocariam contíguo e ao alcance dos pés daquele que as transita, abrem-se
no abismo celeste daquelas pedras sagradas que foram construídas, não na
firmeza seqüencial da razão, e sim na força realizadora das estrelas (Campu’stellae).
Os peregrinos, ao repousarem os pés no princípio dessa estrada,
precipitam-se no mistério de sua liturgia que os impele à andança e à
passagem de seus próprios destinos, que começam a figurar juntamente com o
caminho e com ele se transformam comovidos. A correspondência em trilhá-lo
é a busca do firmamento enquanto aquilo que há de mudá-los e ainda realizar o
novo do que não se sabe sobre si; a essa mudança à qual nunca estamos
preparados (por isso nos pode mudar em seu desconhecimento e espanto, o
sobressalto) sobrevém um ato necessário e trágico de nosso destino. Na
via, todo ato realizador e figurador de nosso destino e de seu derredor
encerra o que os gregos chamaram Hamartía.
No próximo número,
retomaremos Santiago e a pedra.
RONALDO FERRITO é
poeta, ensaísta e um dos editores da Confraria. Participou de algumas
antologias de contos e poemas, como a Asas e Vôos (Guemanisse,
2006) e publica com freqüência em revistas eletrônicas.
A via excêntrica era o título de seu livro inédito de poesia
(atualmente Hagiopoética), mas agora tornou-se o título do livro de
ensaios que começa a ser preparado aqui.
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