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regina guimarães


quando os dias ficam maiores

 

 

 

 

Havia uma pessoa nua e crua
que na realidade se perdera
como dorme o tratador
dentro da jaula sem fera.

Havia um ser um será
que sem querer nos dirá
- era o que ele dizia -
ter sido cauda e cabeça
do motim da simetria.

Dum lado da barricada
metade ou menos respira
e a própria noção do todo
das cinzas renascerá
ardendo em sonho de pira.

Uma criatura havia
de sete vidas carente
que velava em cabeceira
de cama já sem doente.

Havia um era um seria
que sem querer confessava
- logo a seguir calará -
ter andado ao deus dará
do lado que não havia.

Por detrás da barricada
a frente se faz fachada
e a própria noção do sopro
por fim se apagará
pois que de fogo me morro.

 


*

já sem proveito se lê nas entrelinhas
os olhos perdem rigor
a mondar ervas daninhas

a frase estorva a leitura
cortando todas as pontes
com a paisagem da língua

de mulher, língua, a minha
molhada em tinta retinta
ficou a falar sozinha
 



*

Quando os dias ficam maiores
o coração deita-se ao comprido
para ver passar as nuvens
para se sentir vigiado por nuvens
afagado por fumo
banhado em orvalho
e pisado por pés sem peso

Quando os dias ficam maiores
o coração rola num chão de papilas
gustativas
de papoilas
dormideiras
de ideias muito vagas, vagarosas,
avessas a moldes e molduras
onde não cabem inteiras

Quando os dias ficam maiores
o meu amor traz luz debaixo do braço
e ficamos a ler até tarde, até a letra
se fazer miniatura, até se fazer pura
figura.



*

Reconheço um vestido meu
em trapo de limpar o pó.
Reconheço uma alcunha
talvez a minha
que designa agora um céu de chumbo
fardado de soldadinho azul.

Está mudada, a casa mãe,
mas não sei bem em quê.
Posso visitá-la
ora cave dum museu,
ora celeiro
crivado de luz e de metralha.

Reconheço as ferramentas em repouso,
um cheiro a sereia no esgoto
e a rastilho de rato em seara.

Reconheço a ocultação do corpo
e o cadáver em exibição.

Mas já não sei quem me deu
o que é ou já foi meu
- vestido, alcunha, museu, celeiro -
e o que jamais foi ter sido
- sereia, seara,
cheiro, rastilho,
o pai morrendo em seu filho.

Conheço a tristeza das ferramentas
e a certeza de terem sido usadas.



Velhos Filhos

quando se dobram gemendo
apanham coisas
de há muito banidas
que quase se confundem
com a rasura do chão aromático
e a agudeza queda das esquinas

quando brincam com as mãos
relembram jeito
de há longos anos em desuso
e hesitam entre o simples insulto
o fermento da injúria adiada
e um recuo recheado de vénias

quando refrescam as têmporas
com seus lenços da mais alva imundice
estão para morrer
e se a olhos vistos vivem
é por penitência
ou por
 


 

REGINA GUIMARÃES, também conhecida como Corbe, nasceu na cidade do Porto em 1957. Além dos seus poemas, publicados em edições pouco mais que confidenciais, tem desenvolvido trabalho na áreas do Teatro, da Tradução, da Canção, da Dramaturgia, da Educação pela Arte, da Crítica, do Vídeo. Foi docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e na ESMAE e orienta atualmente uma cadeira de Processos Narrativos na ESAD. Co-fundadora e diretora da revista de cinema A Grande Ilusão, publica o jornal PREC. Com Ana Deus, fundou a banda Três Tristes Tigres e realizou inúmeras experiências em torno da palavra dita e cantada. Vive e trabalha com o cineasta Saguenail desde 1975.

 


 

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