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joan navarro


pequeno tratado da luz

 



 

Hölderlin
 

a partir de ‘A loucura’ de Pere Salinas
 


1

Desde o fundo, muito profundamente, desde o magma crepitante da alma, do rio que dilui seu nome, os nomes do mundo, as doces colinas e as vinhas silvestres, sarças fulminadas, abre-se o vazio do tempo, o silêncio que queima os campos ao entardecer, o fulgor da fria harmonia da luz.


2

Como um astro vermelho entre as dobras do cérebro, assim a saudade se arraiga e se alça como um hino até os confins da negra nebulosa. O cheiro de madeira. O caminho entre os bosques que os deuses esgrafiaram no muro da torre. Os marcos acesos junto às praias do discernimento. O olho e as moléculas de todos os olhos.


3

Além do olhar vislumbras os metais e os mármores do Pentélico, a azinheira d’água, os vales sagrados e as sagradas cinzas. Tua voz é agora o eco de outra voz, sombra de bétula, golpe seco de malho sobre uma bigorna: o outro que em ti habita. Desnorteada mente. Arquipélago de fogo no crepúsculo da estância.


4

Ao entardecer enovelas a claridade de todas as luas, o ouro das frutas do verão, o trânsito calado das esferas iridescentes, o fio que cose a enorme brecha. Fresta de luz. Clara cicatriz do horizonte.


 


Pequeno tratado da luz
 

a partir de ‘o peso da luz’ de Anna Montero

 


Escrevemos o poema ou o poema nos escreve? Desliza-se o tempo dos rios ou é o rio que flui pelo desfiladeiro sem tempo do poema? Somos a sombra ou o pássaro, a raiz ou o fogo da sabina que arde enquanto dança a neve e a névoa se agrisalha?


(Novas estrelas nascem em Órion e já não são nem polvo nem a aresta daquela luz tão clara.)


Dizemos medo e somos o medo, o áspero caroço envolto da chuva, o pântano que dilui as formas e as cores da terra: O transcurso do poema no instante que não dura.


Dizemos abismo e somos o abismo, a concavidade da ausência, a escuridão do espelho sem chama nem olhar: Semente que germina no barreiro do poema: A herança das palavras: A mãe do nome: Nome de meu nome: Solidão do caminho: Travessia gelada. E o vôo do melro e aquele pássaro branco invisível à hora da alvorada. E o eco e a música e o vazio da estância e a fugidia luz.


Dizemos poema e somos o poema: O fluxo da luz atravessando a caverna: O trânsito jubiloso do fértil olhar.


Raptados pelo poema enchemos de claridade as cisternas da alma: A silvestre memória: E se iluminam os círculos: E sentimos todo o peso da luz extasiada.



Omphalos
 

Ondas do mar de Vigo,
se vistes meu amigo!
Martim Codax

A J.S.F
 

A noite deu à luz o ovo na alvorada, à beira das águas frias e dos bosques de carvalho, à beira das dunas de areias luminosas que as névoas enchiam de lágrimas. A lua minguava sobre as ondas do mar de Vigo e as constelações rutilantes respiravam insones. Um peixe elétrico havia cruzado a pele da tela como um aerólito, memória do fogo celeste, mensageiro da alegria, alquimista do enxofre e do mercúrio, barro do desejo, embrião de ouro dentro da caverna cósmica, âncora sólida, suco seminal do amor, lótus.

Se estivesses aqui a jacaranda e a mélia do jardim floririam em janeiro, e escutaríamos a voz dos bambus quando cai o dia, e amadureceriam as maçãs de coração estrelado e as nozes que chocam a pedra d’Armênia. Órfãos da ternura, logo seremos onda e baía, taça e lábios, chuva e algibe. Druida do olhar, poço de água viva, escada das sete cores, arqueiro e butim, esmeralda, crisálida dos belos dias que virão.
 



Como um relâmpago


        Como um relâmpago. Em Berlim chorei contemplando uma pintura de Mark Rothko, transportado pela cor, dentro da solidão da cor.

                                                                                                                Num dois de janeiro vimos as cúpulas de Veneza completamente nevadas. Agora és farinha de diamante em algum lugar do planeta.

                                                                        Os dados rolavam pelos campos do ar, ferrugem da luz.

        Como um relâmpago. Dentro da terra fresca haviam plantado a semente. Dezembro de cobre e gengibre. Talismã das horas felizes.
                                                                                                                       

                                                                                                                        Dentro do seio da terra o caroço irisado da luz.

        E as chagas de Joseph Beuys.
                                                        Mostra a tua ferida.

                                                                                                Três copos de bronze. Bomba de mel. Tumba de lebre. Telefone de terra.
                                                                                As tuas cinzas navegando até a baía.



        Em Grande Sol os bois aram os desertos da água.
                                                                                       Que retornes são e salvo.

        Esperam-te as bétulas dos bosques, o chuvisco da alvorada, as pálidas vinhas,
        pedras que brilham nos rios sem fundo, vegetais esmeraldas.
                                                                                                                   Somos e não somos. Plenitude e ausência. Colar de luz duma estrela já morta.
                                                                                                                Memória do tempo que virá.
        E também as almas evaporam-se das águas.
        E retornam ao fogo, exalação ardente.

Como um relâmpago. Aquele mergulho nas águas marinhas. Navegante sem navio. Cérebro ao léu. Adeus? E te foste com os polens do ar sem poder dizer-me adeus. Para sempre. E subiram-me desde o ventre da água, marinheiros da leva, à terra dos homens.
                                                                      E não pude, pai, dizer-te adeus, e te foste na barca de cedro até os limites do tempo.

        Tu navegas
        porque tens de navegar.
        Tente navegar, tente
        navegar.

        Em Santa Maria della Vita bramavam desconsoladas as terracotas. Bologna, polpa de névoa, alegria do lírio-do-vale nos cais de abril.
                                                                           Via Santo Stefano, via Solferino, via Saragozza, via dell’Unione.

        E crescias,
        e incubavas no coração a alquimia das cores,
        o segredo das formas,
        a saudade do amor que ainda não havia chegado:

luz que provém da luz.

Ecbátana,
                a das sete muralhas pintadas
                com as sete cores dos planetas,
                orgulho da Pérsia.

        Suger triturava safiras para fazer azul de vitrais.
        Cromática esfera de Klee:
                                                  Olhos deslumbrados pelas cores.

        No horto, os limoeiros embebiam a claridade do meio-dia.

        A terra fecunda. As escuras turfeiras. As pedras preciosas. Os astros brilhantes no fundo da gruta.

        E se me fala, lhe falo.
        E se me sorri, lhe sorrio.

        Não havia posto ele ainda uma pedra branca no caminho.


        Um rio de barcaças repassa a planura ao clarear o dia.

        E o fevereiro metálico chegou como um relâmpago.
                                                                                       Onde repousa o ouro das uvas?
                  Como um relâmpago. Vendaval que arranca pela raiz o juízo e despenteia os sentidos. Sem trégua. Como um relâmpago fulminante.

        E o sul diz: tenho um amor ao norte e um sol em um cesto.
        E o norte diz: tenho um amor ao sul e una noite estrelada.

        E se o teu nome fosse rio?
        E se o meu nome fosse delta?

        Que faremos até o cair da noite?


        O tempo que não é tempo. As horas que fogem. Saudade da saudade. Que faremos até o raiar do dia? Órfão de ti sem ser tu o meu pai. Vinho dourado que madura na vinha. Refúgio do meu corpo. Tranqüila baía. Enérgico solavanco.

        Os talvegues cobertos por névoas terreiras.

        E as cores cresciam e se abriam as formas.

Os azuis de arquipélagos. Os vermelhos feridos. O alento que escapa. Os brancos de harmonia. A neve da cinza.
                                            A dor abissal pela completa ruína. Obscura é a greta.
                                                                                                                        Parem todos os relógios, desconectem todos os telefones.

                                                                                                                        Onde estás agora, amigo? Viajas pela Ásia? Tu te perdeste pela Índia? Vives feliz no coração de uma duna? És esporo fecundo de liquens da Islândia? Enorme a pancada de garra. Os mares flamejantes. O amarelo dos milharais.
            Os campos sem limites diante dos seus olhos, já sem nome à beira do Neckar. A nuvem de fogo que arrebentada agora chora.
                                                                                O tempo dos sarmentos.
        Mercúrio vivente. Horizonte de prata.

        Chegado o momento, te borrifarei com leite branco,
        e lançarei erva verde
                                           à lua que nos olha:

os augúrios, então, nos serão favoráveis.

        Como um relâmpago entraste em minha vida. Como um relâmpago.


a Pere

 

Traduzido por Fábio Aristimunho
 

 

JOAN NAVARRO, poeta, editor e filósofo catalão, é autor de vários livros de poesia, entre eles, Vaixell de folls (1979), Bardissa de Foc (1981) e Magrana (2004). Seus poemas foram traduzidos para o espanhol, italiano, alemão, basco, esloveno, japonês, português, hebraico e francês. Em 2005, recebeu o Premio de la Crítica de los Escritores Valencianos. Editor da revista sèrieAlfa, publicou inéditos e traduções de poetas contemporâneos de várias partes do mundo. Atualmente desenvolve o projeto conjunto Atlas, em parceria e diálogo com o pintor Pere Salinas.

 


 

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