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marcus motta
tal homem da simples leitura
(segunda parte)
No que me diz respeito
direi que não tenho aquela coragem de ir ouvindo a aldeia de Caeiro. Não
houve nada que me provocasse a alegria que tal homem sentira e se ele se
apresentar, como está, aos meus olhos, tendo aquela leitura expressa na
face, idêntica a minha, espero ter, ao menos, a franqueza de afirmar sem
rodeios: tenho medo de tal leitura; coloca-me diante da imagem sem
precedência e nego-me, por este motivo, a examiná-la; e se eu estou com a
razão, serei castigado por mim. Se, na suposição, de que o homem da
simples leitura foi recriado nos versos, tenho como fato a cara da
verdade; não sei, realmente, se conseguirei calar em mim a efusão que ele
me provoca. Pensando nisso, guardaria silêncio na confissão de tê-lo visto
em minha face, pois não se deve iniciar um outro tão idêntico em
considerações dessa natureza. Contudo tal homem não representa um caso de
prestígio; ele não conseguirá a fama ao dormir em mim e nem mesmo a deve a
um acaso do meu destino. Pode, porventura, dizer-se com franqueza de tal
homem, sem correr riscos, que ele extravia em mim o proceder dele. Se eu
não tenho a sua coragem, o melhor é não falar dele, e, especialmente, não
o enxovalhar fazendo da sua simples leitura uma tática para as minhas
ambições intelectuais. Porém se faço dele o efeito do que é como um valor
absoluto da simples leitura, se a encaro pelo que ela é, julgo que posso
discorrer sem perigo sobre a alegria que não lhe é estranha; porque pela
simples leitura ele assemelha à vida em lugar de um reles assassino desta,
como assim tendo a me encontrar. Posso portanto discorrer sobre tal homem,
pois as coisas do mundo visível jamais provocam dano quando nós as
encaramos com a elevação de olhar para coisas sem nos confundirmos com
elas em pensamento – isto ele quis me ensinar. Se me deliberassem a pregar
esta situação, colocaria o homem da simples leitura como o eleito.
Contudo, quem é assim? E se houvesse um alguém, após ter compreendido a
grandeza daquela simplicidade, e também a alegria, de tal homem, de se
aventurar ouvindo na aldeia de Caeiro, eu albardaria os meus pés para
segui-lo. Em cada parada, antes de atingir a aldeia de Caeiro, eu lhe
diria que tinha ainda a liberdade de retornar, para arrepender-se do
engano de se julgar chamado para lutar ao lado de tal homem. Depois que
desse modo tivesse falado e comovido o meu ouvinte, até lhe fazer sentir
os contrastes dialéticos da leitura e sua gigante simplicidade, procuraria
não fazê-lo incorrer no erro de pensar: “que imensa leitura possui aquele
tal homem! É-me suficiente tocar na orla do seu hábito”. E ajuntaria: “de
maneira alguma possuo desse modo a simples leitura; a natureza
favoreceu-me com uma boa cabeça e os homens como eu sentem imensa
dificuldade para realizar o movimento de sair de si e caminhar sozinho.”
Não desconheço as atitudes que o mundo admira como sendo grandes e
generosas; elas encontram eco em minha alma; mas esta atitude de tal homem
me põe humildemente convicto de que ele luta também em minha defesa, sem
alcançar qualquer acendimento entre nós; digo isto a mim mesmo fitando-o.
Adentro dos caminhos do homem da simples leitura, na aldeia de Caeiro, me
possuo atingindo o cume, tornando a cair em mim, pois o que ele me
apresenta consiste num paradoxo. De maneira alguma advém daí que, aos meus
olhos de leitor, a simples leitura se constitua com algo medíocre; pelo
contrário, tenho-a como a mais sublime de todas as leituras e é indigno
que a intelectualidade reinante a troque por outro assunto e a converta em
escárnio. A intelectualidade não pode e nem deve dar a leitura; a sua
missão é entender-se a si mesma, conhecer aquilo que oferta; nada furtar à
vista, nada ter como simples ninharia. Embora, não tenha a experiência de
alegria das coisas ditas por Caeiro, ao caminhar com o Menino Jesus, como
tal homem a tem, ouvindo-as, a minha visão é tal e qual a minha
imaginação, sendo exatamente aquilo que não sou: uma criança ocupada no
decorrer do dia com as suas brincadeiras, das quais me fala,
longinquamente, com sabedoria à noite e com tal esperteza que preciso
abrir os olhos do sono. Com estes meus olhos enxerguei coisas horríveis no
pensamento de cada um de nós e recuei em pavor flácido; porém sei
suficientemente bem que se as enfrentasse sem temor, não decorreria daí
que a minha coragem me venha da leitura – isto não se assemelha em coisa
alguma com a graça de tal homem do simples ler. Não posso empreender o
movimento da simples leitura, não posso abrir os olhos do sono, tenho-os
cerrado pela minha intelectualidade. Atirar-me como ouvinte na aldeia de
Caeiro, cheio de confiança no absurdo da vida, isso me é impossível; porém
não me glorio pelo fato. Presente em mim está à fé de tal homem, sinto-me
inefavelmente venturoso; ausente, estou ansiando por ela – seja da vida ou
da simples leitura – mais desesperadamente que a amante pelo o objeto do
seu amor; porém não tenho a vida livre das minhas escolhas, apesar do meu
interesse por ela, não possuo tal coragem de percebê-la sem amarras.
Será que existe alguém, entre meus coetâneos, que possa realizar os
movimentos da simples leitura como tal homem fez? A não ser que me engane
em demasia a esse respeito, eles tendem a envaidecer-se de cumprir o que
pretendem e, portanto, julgam-me diplomado em não ser tal homem, conforme
a sua capacidade: o imperfeito. Pelo meu lado, sou por natureza averso ao
hábito tão comum de falar sem humanidade das coisas humanas; de tais
coisas falo preferentemente como homem; enxergo-as como se tivessem
ocorrido na frente dos meus olhos, que na distância, da qual vejo, eu,
assisto sua grandeza – nela pressinto a sua altura ou sua sentença. Se,
pois, como tal homem, tivesse lido daquela maneira simples, realizando
audível a viagem à aldeia de Caeiro, sei muito bem o que faria. Não me
intimidaria a ponto de ficar de pé na minha intelectualidade; não me
definiria no caminho, não deixaria de olvidar a voz do o deus que faltava,
para inventar uma ligeira demora à audição; estou quase certo de que
estaria a postos no instante alegre e que tudo ouviria: talvez mesmo
chegasse mais cedo a aldeia para ver o cenário todo antes. Contudo, no
instante de montar sobre os meus pés e seguir o caminho em audição dos
versos Caeiro, refletiria com meus botões: agora tudo está como aquilo que
não posso viver. Quiçá nos dias atuais, alguém, em seu zelo intelectual
fosse suficientemente louco para supor e fazer acreditar que procedendo
assim dessa forma, eu teria cumprido a tarefa mais alta daquele tal homem.
Efetivamente este meu intenso procedimento aos olhos daquele alguém
pareceria mais repleto de ideal e poesia do que a simples leitura de tal
homem. Isso é, contudo, a maior falsidade, por que aquele procedimento
seria, não obstante tudo, somente um sucedâneo da minha leitura.
Conseguintemente, não poderia fazer senão o movimento para achar-me e
outra vez descansar em mim mesmo, nem amaria a vida como algo que tem a
mesma desfiguração da leitura. A determinação de realizar o movimento
mostraria, a rigor, o meu valor intelectual. O amor que tenho à leitura
forma o pressuposto com o qual assassino a vida; pois, eu não amaria tanto
quanto tal homem porque certamente teria resistido a ler simplesmente,
chegando muito cedo à aldeia de Caeiro.
Que fez, então, tal homem? Não chegou muito cedo, nem muito tarde. Selou a
si na leitura, nos passos dos versos, e rumou determinado na simplicidade
em que lia. Durante o tempo infindo manteve-se lendo, mesmo quando só
caminhava ou via, creu que a leitura só exigia dele sua simples
humanidade. Creu neste absurdo, porque isto não faz parte do cálculo do
que é ser humanamente. E como a vida não se calcula, vai com ela, pedindo
da leitura nada no momento seguinte. Esteve na aldeia de Caeiro, no
momento em que o Menino Jesus brincava como uma criança levada. Acreditou
ouvindo que isto era a leitura lhe vivenciando. Então, com a segurança
simples de estar a viver, deixou-se surpreendido com ela, porém já nessa
segunda oportunidade recobra por movimento de leitura o estado simples da
candura e foi por este motivo que a recebeu com a mesma alegria que
sentira pela primeira vez quando nem se sabia ainda criança.
Acredita-se geralmente que o fruto da leitura, ao invés de ser uma vida, é
duro trabalho intelectual reservado à natureza dos privilegiados; nada
menos verdadeiro. A dialética da simples leitura é mais sutil e notável
entre todas as leituras; possui uma criação da qual eu posso fazer apenas
uma idéia, porém nada mais do que isso. Posso perfeitamente realizar o
salto para ela. Atiro-me à vida intelectualmente, porém para o salto
seguinte, na vida, não consigo realizar. A verdade é que, se, no momento
em que leu o canto VIII, tal homem tivesse dito: já que estou perdido para
mim tanto faz ler aqui, na minha mente, como realizar a audição da viagem
até a aldeia de Caeiro – se assim fosse não teria nada como eu tenho
quando leio. Que ele não esteve entregue a tais reflexões, dá-me prova a
profunda alegria que o inundou quando foi recriado. De outra maneira ele
teria amado a leitura, porém não seria um homem da simples leitura – pois
amar a leitura sem o movimento simples é refletir-se na leitura.
Devo confiar com sinceridade que nunca o encontrei no correr de minhas
observações no espelho – embora sua face seja a minha. Inutilmente,
durante muitos anos busquei o sinal dos seus passos. Contudo, se
porventura descobrisse aonde mora tal homem, iria, com os meus próprios
pés, ao encontro dessa maravilha que representa para mim o interesse
total. Não o deixaria um só momento; em cada instante que transcorresse
observaria seus olhos ao ler, ouvindo seus lábios, e veria os secretos
movimentos de sua estada auditiva na aldeia de Caeiro, e, tendo-me sempre
como rico, dividiria o meu tempo em duas fases: uma para observar
atentamente e outra para me preparar de tal maneira que, por fim, apenas
me empenharia em admirá-lo. Torno a dizer: jamais encontrei tal homem,
mesmo quando o pressinto na minha face; entretanto, posso muito bem
representá-lo. Aí o temos: está iniciada a simples leitura, fui lhe
apresentado. No mesmo momento que o fito, afasto-o de mim, recuo
instantaneamente, uno as minhas mãos à cabeça e digo em voz embargada:
“meu Deus! É este o tal homem! Porém ele o será verdadeiramente? Tem a
aparência completa de um professor!” Entretanto, é ele. Adianto-me um
pouco, vigio os seus menores movimentos procurando surpreender algo de
natureza diversa: um íntimo sinal telegráfico da comum intelectualidade,
um olhar de superioridade, uma expressão da fisionomia já morredoura, um
gesto descomprometido, um ar de melancolia gasosa, um breve sorriso de
escárnio. Porém, nada! Observo-o com vagar, buscando por onde se escape o
cinismo da inteligência. Nada! É um bloco sólido de simplicidade. O seu
procedimento? Firme, integralmente dedicado a ser o efeito da simples
leitura. Alegra-se por tudo e por tudo toma interesse. Sempre que põe os
olhos em algo, procede com perseverança própria do homem recriado pela
leitura, cujo espírito está ocupado pela simplicidade e cuidados em
palavras. Ele integra-se ao efeito que é; de um modo sadio e possante ao
cantar o canto VIII.
Tal homem saboreia o finito da vida com tão pleno prazer como não tivesse
necessidade de nada mais. Não dá mostra de sofrer inquietação ou temor,
diverte-se com uma calma tal que dá a entender que nada existe de mais
certo que essa vida finita. Freqüentemente, realiza o movimento infinito
da simples leitura, com tanta precisão e confiança que incessantemente
consegue o finito da vida sem que possa suspeitar a existência de outra
coisa e revê tudo e por tudo. Tal homem é um dançarino ao qual não falta
elevação. Salta para o ar quando escuta os versos Caeiro e logo torna a
cair. Contudo, sempre que torna a cair não pode, no primeiro instante,
manter inteiro equilíbrio. Por momentos hesita, sem indecisão de leitura,
o que logo demonstra que é estranho ao nosso mundo por ser uma forma
desfigurada da vida. Essa vacilação é mais ou menos acentuada de acordo
com sua mestria, porém nem o mais hábil intelectual pode dissimulá-la
inteiramente. É inútil vê-lo no ar. É bastante, para qualquer sábio de
sentidos, atentar para o instante em que toca e se afirma no solo, é aí
que se reconhece a sua absoluta singularidade, exprimindo o impulso
sublime num passo terreno – aí está a única maravilha de que somente tal
homem é capaz. Como tal prodígio pode levar ao erro, vou fazer a descrição
dos movimentos em um caso exato capaz de aclarar sua relação com a
realidade – pois o essencial do problema está aí. Apaixonou pelo que
simplesmente leu e, de tal modo, que a substância de sua existência está
concentrada neste amor. Os intelectuais de plantão exclamarão certamente:
que disparate este amor à leitura! Deixemos que eles o acusem. Tal homem
não os ouve, nem pela maior glória deste mundo renuncia ao seu amor. Sente
a alma bastante sadia e orgulhosa para permitir que o acaso se apodere da
mais ínfima parcela de seu destino de simples leitor. Sente então
deliciosa voluptuosidade, deixando-o vibrar em cada escuta daqueles
versos; entretanto sua alma vive a mesma solenidade que aquela voz Caeiro
ao preencher um meio-dia com cada gota do deus que faltava...pois este
momento é vida e morte. Quando desse modo absorveu inteiramente a simples
leitura e nela mergulhou, sentindo pela segunda vez a vida, olha as coisas
no segundo de existência e cumprimenta-as com palavras. E caso os
pensamentos retornem, como tristonhos mensageiros da improcedência de sua
leitura, conserva-se calmo como as nuvens, agradece-lhes sorrindo e,
estando só, recomeça o seu movimento simples: lê os versos.
continua
no próximo número
MARCUS MOTTA é
escritor e professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
onde atua no programa de pós-graduação em literatura portuguesa e em
história da arte. Concluiu, em 2001, o pós-doutorado na Universidade
Lusíada em Teoria da Arte. É autor de Desempenho da leitura - sete ensaios
de literatura portuguesa (7Letras, 2004) e Antônio Vieira - infalível
naufrágio (Editora FGV, 2001), entre outros. Dedica-se, principalmente, a
duas linhas de pesquisa: Arte Contemporânea e Patrimônio Cultural; e A
questão de artisticidade na arte de Fernando Pessoa: perfeição abstrata e
cartografia heteronímica.
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