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flávio viegas amoreira


Irene Ramalho Santos e o atlantismo redentor

 

 

 

I never saw a moor,

I never saw the sea;

Yet know I how the heather looks,

And what a wave must be.


 – Emily Dickinson
 

Esse é ensaio sobre-quando Alta Literatura é interpretada à luz da emoção: sou poeta atlantista. Carecia erudito que me codificasse. Livro-farol. Fui apresentado ao livro por Márcio-André como fosse estudo acadêmico e de repente sinto por seu conteúdo identidade visceral, epidérmica: ''Poetas do Atlântico''- 'Fernando Pessoa e o modernismo anglo-americano' de Irene Ramalho Santos é um tratado insuperável da sensação uterina, atópica e trans-literária de disponibilidade da escritura para o Oceano carreando as tradições continentais para um 'mix' orgiástico interpenetrando tradições e vanguardas: o Atlântico como minha ''Sodoma divinizada.''


Irene começa implodindo conceito de literatura estanque por identidades nacionais: diz-no de inter-literatura, e é essa obra-prima transmoderna com prefácio de Harold Bloom que me faz evocar pontes lançadas desse porto santista de Brás Cubas, Hans Staden e do marítimo Vicente de Carvalho: a autora faz-me discorrer inter-sexualmente com obras-erotizáveis de Walt Whitman ( esse estranho que sempre me passa ), Emily Dickinson, Hart Crane e Pessoa donde desdobro para único déficit desse monumento: ausência de 'atlantistas' brasileiros : Sousândrade, Jorge de Lima e Murilo Mendes para ficar na poética onde circundo faróis, baias e párceis entre outras ilhas : Saint-John Perse e por que não Lautreamont? O Oceano-Mar configura-se como amalgama do estilhaço, deliberação do sujeito navegante nas profundezas da fenomenologia lírica: Oceano-Mar que dissolve sem diluir repondo espojos em novas tessituras: interrupções intuitivas, alumbramento e intelecção líquida cozendo vagas de ambigüidade entre o desejo obsessivo e impossibilidade de algum projeto estético totalizante. Whitman é vital nesse compreendimento : o bardo atlântico mirando longe alinhava conceitos fluídos : '' harmonia aglomerante complicada'' / ''escolheu incluir as coisas / Que uma nas outras estão incluídas, o todo''; Whitman abarcante dum uranismo generoso, vate da fraternidade dos companheiros: o que é em Pessoa é ligação homoerótica com esse mesmo rio salgado de efeito dúplice : se Machado de Assis dizia ter ciúme do Mar, eu também sou feito o lisboeta: tenho telúrico tesão por sua proximidade: trato-o como amante difuso-envolvente, tal como Policarpo Quaresma com elemento 'terra'.


Do romantismo em Keats e Shelley aos decadentismo pessoano esticando ao gozo urbano-cósmico de Ginsberg, Irene fala-nos desse sentido ou propósito inacabável de entendimento ou significação pela curtição da-e-pela linguagem: ''universalização que é uma descorporização violenta da experiência humana no seu todo. Além de Pound e preceito das formas, o 'atlantismo' faz-se pelo Império cultivado da sensibilidade sem descuidar das polissemias, da mitografia transplantada ao moderno e a sedução logopaica dum sebastianismo racionalizado pela decantação do excesso navegante. Ocidente reinventado pelas bordas: a Europa bastarda emergindo no espelho ianque e trópico do Tejo, homologias e sintagmas conteudais extraídos da '' imaginação que é , numa palavra, espermática'' : Irene instaura a poética do transbordo, regurgitofágico pós-oswaldiano, transação heteróclita entre culturas distintas convergindo pela ânsia de amplitude: poetas desterrados , quase claustrofóbicos na fisicalidade que excedem por sua Obras além do Brooklyn ou do Chiado resgatando Império anímico pela Arte que transcende até o que seja tão somente escritura.


Homero e Camões já anunciavam esse quase-sinonímia entre epopéia náutica e aventura dum solipsismo decodificado: encontro entre existência e espanto criativo; a disponibilidade do paradoxo entre tanto-de-nós e paroxismo-de-mundo-mar é profundamente pederasta: androginia condensada em espírito marujo, fidalguia, arrebatamento e natural sedução por totemismo liquefeito. Só outro tomo de ensaios me causou tanta impressão quanto ''Poetas do Atlântico'': a coletânea ''Ora (direis) puxar conversa!'' de Silviano Santiago do mesmo selo Humanitas; em Auden e Silviano Santiago tenho esmiuçado significações aos meus desvios de rota da rota ortodoxa e no crítico mineiro encontrei preciosa interpretação à Carta de Caminha: ''Uma carta. Poderia ter sido uma carta de amor, escrita à semelhança de uma cantiga medieval no estilo da tradição galego-portuguesa. Ela circula por entre as mãos humanas, de aquém e além-Atlântico, como se vivenciassem o tempo circular e infinito do navio-fantasma...'' Assim também se refere Irene Ramalho aos eixos supostamente periféricos que realizam o sonho da centralidade sócio-cultural pela intertextualização da Busca do ser no desvario do pensamento errático posto que à serviço do rizoma imagético.


Comentando Harold Bloom pergunto-me se existe conceito mais atlântico que 'maturidade cavalheiresca' , dionisíaca lança ao Absurdo: a civilização mesmo que eivada de elementos barbarizantes é um signo de intento: rasura na aposta cega do niilismo ou nas absurdidades metafísicas. O Império se instaura na locução, justaposição ondular do fraseado eriçado e na superação do atemorizante abismo pré-camoniano : Whitman à Pessoa é sempre o convite à viagem, 'papel passante', ode convocatória mesmo sem estender das linhas o traço zarpando de Long Island ou da Ribeira: o indescoberto significando na presentificação da memória no manifesto régio: o poema numinoso, celebratório, operoso triunfo da vontade sobre o infortúnio complacente. Vontade como presságio e tanto insiste Irene : 'interrupção'; todos são grandes poetas de pontilhão destacados dentro da tempestade.


Recorro ao Heidegger da interrupção como 'clareira' ( die Lichtung) : ''Nunca, porém, a luz primeiro cria a clareira; aquela , a luz, pressupõe esta, a clareira. A clareira, no entanto, o aberto, não está apenas livre para a claridade e a sombra, mas também para a voz que reboa e para o eco que se perde, para tudo que soa e ressoa e morre na distância. A clareira é o aberto para tudo que se presenta e ausenta.'' Clareira, senda, vereda aquosa :


Porta para tudo!

Ponte para tudo!

Estrada para tudo!

Tua alma omnívora...


Pessoa canta Whitman; sinto-me num sótão ou num sítio arqueológico espanando raridades: por Irene Ramalho Santos dispus-me nu e refeito : espreitando Tadzios não mais em Veneza, repondo Thomas Mann em Paraty materno: eu refletido feito Kaváfis, Mário Faustino ou Hart Crane salvo do golfo: inteiriço em meu atlantismo, whitmania, heteronomifilia, homoerotização costeira, submisso aos ventos de salitre e maresia. Luso, tristetropicano, santense : atlântico vivendo entre a serra e o cais cantados por Levi-Strauss, Neruda e Elizabeth Bishop: grato Irene! Fez-me redimido o 'sentimento atlântico.'


Mais que da posição deliberadamente arrogante de poeta transmitida por Pessoa e do aristocratismo dos eleitos antenas da raça, Irene Ramalho nos dá um ideário do interpretante: '' A verdade é que os poemas não existem realmente enquanto eu os não interrompo e os repito uma vez mais, nas palavras do mundo em que me situo, e os faço falar uns com outros.'' Não só mais o interpretante, temos agora o polifônico restaurador de precária harmonia entre as injunções do desassossegado e as influências instigantes desse que repõem dispostas segundo Coleridge as melhores palavras na sua melhor ordem doando-se ao entendimento possibilitado. Sem cair na cabalística visão criptográfica ou de poeticidade por teoremas enfeixados em charadas, norteia-se a pensadora entre Novalis : ''Poesia como autêntico real absoluto'' ou Jakobson : '' Poesia como linguagem voltada para sua própria materialidade''- sem dogmatismo o que se estabelece é a Poesia enquanto Arte que não discute mas exprime : o nada-que-diz-tudo de Pessoa saído dum ''Breviário da Decomposição'' de Cioran: ''Neste matadouro, cruzar os braços, ou sacar a espada são igualmente vãos'', ao que redargüimos com João Cabral de Mello Neto : ''Fazer o que seja é inútil. Não fazer nada é inútil . Mas entre fazer e não fazer mais vale inútil do fazer.''


Deus é um impasse lingüístico, a linguagem para ter termo será nosso Alcacér-Quibir donde há de vir o Encoberto da vastidão do Mar ; as coisas em sua virulenta virtualidade estão então em ponto de serem Poesia: serem ''coisas'' móbiles, artefatos, inutilezas nessa tal ''fissura entre o dizer, o dito e o não dito''. Na extrema des- sensibilização ocupemos refrear o que perpassa vago ou interdito como em Pessoa : ''Há momentos em que a vacuidade de se sentir viver atinge a espessura de uma coisa positiva.


''A poeticidade é efígie, diamante azul do fracasso: cadinho de oxímoros, predomínio do vazio refletido na luz do nada: essa positividade não fixada, inapreenssível . O poeta é alçado à excepcionalidade por tangenciar alguma realidade sem conformidade com dados passíveis de logicidade aparente: a palavra já não é tão o Nada que viceja, precipita-se sem estar sendo. As ondas na rebentação são ecos do primevo que oprimem em urgência e fugacidade: ''Gosto de dizer. Direi melhor, gosto de palavrar''. A escolha é o que suprime , no ocaso do abarcamento : digo, refiro, parafraseio, gloso: tento por inventário tomar o rol das cousas mergulhando na inclusão: assim Whitman, Pessoa: multidões, heterônimos, anônimos pressentidos em existências inventadas.


As obras atlânticas são mais ancoradouros que baleeiros entre estreitos bravios: receptivas, baías aconchegadas, armazéns de especiarias semiológicas ou tesouros de metonímias. Fragmentos, formas auto-interruptivas, a aventura de dizer impõem contenção ao campo retórico: amoldamento monológico exercício de expressão iluminada. A Poética modula o desespero sem torna-lo dispensável: já nem sequer sou poeta, vejo! Pessoa entoa o cântico de Nereu ou Tritão : polimorfo, multifome, dissonante marulho ecoando solitude. O chamado é martírio e alívio: ''Viajar é ainda viajar e o longe está sempre onde esteve – Em parte nenhuma , graças a Deus! '' A essencialidade é algures de mim , ao menos soubesse quando cessa do poeta a estafante lida.


Lanço-me ao Atlântico como quem navega nuvens: tencionando a redentora vindicação da Grande Aurora além do Parnaso dos nefelibatas. Quando vai fundo o verbo escoa...Quando a 'sombra' cai pela cidade , por dentro intimíssimo o poeta evade-se e esboça alguma unidade no Atlântico: o que nele rumoreja do estilhaçamento: Oceano-Mar inteiriço, mesmo inconcludente. ''Poetas do Atlântico'' : um marco ensaístico, quase um libelo algum futuro literário possível; a Universidade Federal de Minas Gerais deu-me um eterno presente. Referência aqui no berço dos Andradas. Como é ótimo! Quando os muros da academia vão de encontro ao livre-pensador, ao escritor libertário, ao poeta sedento.


 

FLÁVIO VIEGAS AMOREIRA é poeta, contista, romancista e crítico, nascido em Santos em 1965. Com importante atuação no panorama cultural do Litoral Paulista, escreveu os livros Maralto (2002); A Biblioteca Submergida (2003); Contogramas (2004) entre outros. Em 2007, publicou seu romance Edoardo o Ele de Nós.

 


 

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